Eu estava aqui o tempo todo escrita por Paty Ninde


Capítulo 1
Na sua estante




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Vinte e sete de Dezembro nós completaríamos dois anos de "namoro". E o mais incrível de tudo, é o fato de que nunca, neste interregno de tempo, nos aproximamos o suficiente. Algo nunca permitiu que estivéssemos juntos de fato, de modo que eu sempre me vi tentando, inutilmente, vencer a camada espessa e resistente, que bloqueava o acesso aos seus reais sentimentos.

Te vejo errando e isso não é pecado

Sobre nós? Bem, você sabe....
Não vivíamos de acordo com os padrões impostos pela sociedade. Éramos um casal diferente. Por isso, tudo sempre acontecia às escondidas.
Então às terças você me pegava em algum ponto qualquer, próximo à um bar vagabundo, cheio de pessoas estranhas e luzes bruxoleantes.
E eu nunca reclamei do pouco que recebia, do medo, estampado em seus olhos cor de abeto rosso, de ser visto comigo; nunca reclamei das migalhas que você me jogava, acreditando que estava se doando.

Exceto quando faz outra pessoa sangrar.

Eles não sabiam que você vinha me visitar, tampou que nos encontrávamos três vezes por semana.
Sua família morreria se soubesse que estávamos juntos, seus amigos te lançariam numa fogueira inquisitorial, e seus vizinhos, bem, eles teriam nojo de lhe dar "bom dia"

Eu era a doença. A escória.
Você era o vício.

Nossas noites eram rápidas. Você sempre estava com pressa, com medo de ficar tempo demais e criar expectativas impossíveis de serem atendidas. Em decorrência disto, nunca tive a oportunidade de saber como era o seu cheiro pela manhã, se você preferia o lado da parede, se falava durante o sono.

X
Eu sempre soube que nós éramos considerados o caso errado, a fôrma redonda para o objeto retangular, ou a camisa de manga 3/4 que você tanto odiava, porque ficava no maldito meio termo, sempre deixava uma parte do braço exposta demais para dias frios, mas não o suficiente para ser agradável nos dias de calor.
Pois você nunca me supriu de forma plena, pensando no que os outros poderiam dizer, preocupado em receber, mas muito ocupado para oferecer. E eu, em contrapartida, me doei demais, num desespero tangível, de ser quem você quisesse, desde que pudéssemos ficar juntos.
Por essa razão, depois de tanto ponderar, eu peço licença para partir.

Você está saindo da minha vida
E parece que vai demorar...

E estou partindo, sem olhar para o dia em que bebemos todo o vinho chileno que você daria para o seu pai, e cantamos Rolling Stones em alto e bom som, como se fossemos donos do mundo, e ele só continuaria girando enquanto nos beijássemos. Sem me lembrar dos soluços guturais, que voavam de sua garganta, após incontáveis doses do líquido púrpura, lamentando a família irredutível e conservadora que você tinha.

Sem me lembrar de sua fragilidade.

Pois nos nunca funcionaríamos. Não num universo onde você insiste em fingir não me conhecer, enquanto passa pelo meu local de trabalho. Não em um mundo em que eu sirvo tão somente para aplacar sua carência e oferecer conselhos nos momentos difíceis.
Porque eu sempre quis mais. Nestes “quase dois anos” eu sempre urgi pela sua presença, pela sua atenção, por um carinho que se revelasse desmedido, inteiro, exclusivo.
E você nunca pôde me dar mais do que um cartão, pelo correio, desejando feliz natal ou feliz aniversário.

x

Hoje, mais um cartão chegou. Este é natalino. Um papai noel sorri, enquanto segura a grande barriga com as mãos enluvadas. O conteúdo do cartão, porém, não transmite essa felicidade e calor.
As palavras lacônicas e superficiais decoram o grande espaço branco, atingindo-me como um arpão enferrujado, lembrando-me que você não me pertence. Reforçando a necessidade do “adeus”; golpeando, golpeando e golpeando, até abrir uma cratera onde deveria estar meu coração.
Deveria...
Porque ainda está com você.
x
Só por hoje não quero mais te ver
Só por hoje não vou tomar minha dose de você
Cansei de chorar feridas que não se fecham
Não se curam
E essa abstinência uma hora vai passar

 


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