Moça, sai da sacada escrita por Felipe Araújo


Capítulo 1
Capítulo único


Notas iniciais do capítulo

Gente estava sem nada para fazer, olhando para o teto do meu quarto escutando a música Amianto do Supercombo e me veio uma ideia, espero que gostem.



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Assopro o café quente apenas para sentir o aroma subir com a fumaça. A porcelana branca da xícara aquecida entre meus dedos, me deixa anestesiado do dia intenso e cansativo que estou tendo. Aliás, é inverno, deveria estar sobre o colchão caro que parcelei em algumas vezes no meu pequeno quarto, lendo um bom livro e tomando esse mesmo café, entretanto a realidade é outra. O ar gelado consegue entrar mesmo com as janelas da livraria fechadas. Outrora sentiria frio, mas no momento não sinto. Este livro sobre a pequena mesa redonda de madeira e a xícara de café tiram essa sensação.

 

Gosto mais do clima do inverno, pois morando no centro de São Paulo convivo com centenas de tipos de pessoas, que no frio alimentam buscar o que realmente são. Não usam roupas para chamar atenção, usam para se proteger. Não são obrigadas a estarem felizes por passear em uma tarde, enquanto queria mesmo era assistir a um filme. Não são obrigadas saírem a noite para satisfazer amizades, apenas é necessário dizer: não vou, está frio. E voltar para seu aconchego. É tudo o que penso em dizer para certas pessoas, que o frio me alivia da rotina que não gosto de viver.

 

Aperto o casaco sobre o peito, deixo escapar um suspiro de desanimo ao olhar para o relógio grande e intimidador sobre meus olhos. Hora de voltar para o trabalho. Para quele escritório fechado com aglomerados de papéis que preciso separar para meu chefe. Não era isso que gostaria de fazer depois que me formei em administração, entretanto o que poderia fazer? Tenho que alimentar meu cachorro.

 

Deixo o dinheiro do café no balcão, onde uma moça bonita sorri para mim. A primeira demonstração de sinceridade no meu fatídico dia. Não consigo retribuir o sorriso com a mesma sinceridade, tento levantando o lábio para cima. Dou de ombros e sai da livraria sentido a rua barulhenta e medíocre. A primeira coisa que vem em mente quando acaba o meu horário de almoço.

 

— Quantas horas, minutos e segundos faltam para estar em casa?

 

Três horas, trinta minutos e cinquenta segundos. Ufa, que saco.

 

Dois quarterões até o grande prédio de escritórios que trabalho, no trajeto opto em andar de cabeça baixa, não olhar muito a minha volta. Sou do tipo de cara que não me dou muito bem com expressões faciais, pode ser que tenho algum problema, pode ser! Pois ao reparar muito nas pessoas fantasio o que elas possam ser, o que fazem, o que desejam… Quando criança lembro que minha mãe dizia para ser escritor já que criava histórias de todos que conhecia. Não deu certo, assim como muitas coisas em minha vida.

 

Por algum motivo não muito especial levanto minha cabeça para olhar o céu, que por sinal está uma droga. Cinza, sem sol, sem vida. E naquele momento meu coração congela, não pelo frio… O que é aquilo na sacada do Golden Village? Talvez seja o oitavo andar, consigo ver claramente. É uma garota sentada na grade, com as pernas penduradas a ponto de cair. Por que ninguém se importa com a garota na sacada?

 

Paro de andar e foco na moça, não consigo entender o motivo dela estar ali, todavia sei que se ela cair não terá volta. Empurro algumas pessoas que passavam pela calçada, aponto para cima e tento chamar atenção de alguém que possa ajudar. Todos me olham como se fosse um louco, não mudaram muito a face que tinham alguns segundos atrás, só o olhar que confrontavam minhas palavras.

 

— Que porra, a menina vai cair! — cheguei até a entrada do prédio comercial, onde um segurança faz o seu trabalho: ficar sentado em uma cadeira escutando música em um fone de ouvido preto. Tiro o fone dele com violência.

 

— O que você quer jovem?

— Tem uma garota no oitavo andar, ela vai se jogar.

— O que? — Antes dele levantar a bunda gorda da cadeira, corro para o elevador que está parado no décimo sétimo andar. Não espero, vou em direção as escadas.

 

Normalmente sou uma pessoa desinteressada pela vida dos outros, mal consigo cuidar da minha. Nos meus vinte e quatro anos de existência, não encontrei um amor verdadeiro, não ganho o suficiente para ter uma vida estável e muito menos sou feliz. Então qual o real motivo de meu corpo correr entre esses degraus sem cores ao encontro de uma desconhecida? Ela pode apenas brincar com alguém, não deve estar em perigo, contudo sou obrigado a entrar naquele lugar e impedir que ela cometa alguma coisa.

 

Quinto andar

 

Não parei de correr e muito menos alguém me segue, o que as pessoas desse lugar são? Não vão ajudar a garota?

 

Sexto andar

 

Minhas pernas tremem, não pelo esforço de subir tantas escadas, sinto medo e outras coisas indescritíveis.

 

Sétimo andar

 

Apenas mais um, não imagino como deve ser o rosto dela, apenas o medo que deve estar sentindo. Nesses poucos minutos alguma coisa muda dentro de mim, não sei explicar.

 

Oitavo andar

 

Empurro a porta de segurança das escadas e vou em direção a única entrada do andar que está aberta. Percebo que os cômodos que serviam de comércio ou escritório parecem vazios há tempos. Em alguns instantes paro em frente a sacada e vejo ela de costas olhando para baixo.

 

Veste uma jaqueta preta de couro, calça jeans desbotada até a canela e sapatos brancos, seu cabelo é longo da mesma cor que sua jaqueta. Dou um passo sem falar nada, com receio de assustá—la. Engulo o que está entalado em minha garganta, e a moça vira o rosto para mim. Arregalo os olhos ao ver seu rosto. Ela é branca, seus olhos claros como o céu que não estou acostumado a olhar. Tem lábios vermelhos, assim como a ponta de seu nariz, provavelmente de tanto chorar. Estico uma de minhas mãos para ela e tento dizer:

 

— Está tudo bem? — Minha voz trêmula assusta a garota, percebo.

— Não! — Ela responde em lágrimas.

— Eu me chamo Daniel e você? — Tento dialogar.

— Não interessa, nada interessa – ela estica os braços e pendura o corpo contra a morte.

— Espere, não faça isso, olhe para mim – vocifero – se cair tudo vai acabar, sua vida vai desaparecer e todos que a amam também.

— Quem é você? Por que veio me ajudar? — ela volta os braços segurando na grade da sacada.

— Sou um simples funcionário de um escritório atrasado para voltar do almoço, vi que uma linda moça estava em perigo e subi aqui para te entender.

— Ninguém nunca quis me ajudar, eu sempre estou a vista do mundo, mas me ignoram. O que acha que tenho que fazer? Nada faz sentido.

— O que deve fazer é colocar uma perna de cada vez para dentro da sacada, e perceber que a vida é mais interessante do que achamos. Eu por exemplo odeio quase tudo, não gosto de nada que tenho, mas me importo comigo e com as poucas pessoas que gostam de mim. — Ela parece mais segura conforme vou falando.

— Você nunca vai entender o que passei.

— Eu posso não entender, mas olhe em meus olhos – dou um passo a frente e estou há poucos metros dela, — eu sou a pessoa menos apropriada para te dar sentidos de não cair. Mas, sei que a vida é como uma mãe para nós, que nos alimenta de tudo e nos protege de todo mau, e nós somos como filhos rebeldes que querem criar asas e sair da vida dessa mãe que nos acolhe e nos conforta.

— Você me notou?

— Claro que te notei. Moça ai é muito alto para você cair...

— Por que não te conheci antes de fazer isso?

— Você ainda não fez, vamos saia dai. Vou te pagar um café e tentar te convencer…

 

Olho bem para aquele rosto delicado, aquele olhar de quem pede socorro por alguma coisa horrível que aconteceu. O que atinge aquela alma tão bonita? Uma jovem como ela não tinha que ter motivos de estar a se jogar do oitavo andar de um prédio. Me sinto melhor de encarar a situação dela e fazer parte de um momento dessa magnitude, já posso sentir o frio que me cerca, poderá ficar mais humano? Talvez. Ela me fez sentir assim, aquele olhar triste me fez feliz por alguns momentos, até escutar aquela frase saindo dos lábios vermelhos

 

 

Moço, ninguém é de ferro. Somos programados para cair. Obrigada. — Ela sorri um lindo e grandioso sorriso.

O segurança entra no cômodo que estamos.

 

— Jovem o que faz aqui? — pergunta.

— Estou convencendo ela a não se jogar, não percebe?

— Ela? — ele ergue uma das sobrancelhas.

 

Meu corpo se move sozinho, dou de ombros mais uma vez para aquele homem e quase desabo ao não ver ninguém na sacada. Me jogo a grade e olho brutalmente para baixo, nada. Não havia nenhuma moça caída lá embaixo.

 

— M-a-as!

— Não sei o que está acontecendo aqui garoto, esse andar está fechado.

— Tinha uma garota aqui na sacada, ela ia cair.

— Sim, mas isso faz um ano. Uma jovem se jogou da sacada desse andar e morreu.

— Não, ela estava aqui agora, eu tinha convencido ela…

— Não se sinta tão assustado rapaz, vou te mostrar uma coisa que achamos depois de Alicia se suicidar.

 

O segurança pega em meu ombro e me leva até o cômodo maior do andar, onde uma carta estava emoldurada em um quadro bem no centro da parede. Ele pega aquele quadro e entrega em minhas mãos, onde começo a ler ainda em estado de choque.

 

De Alicia

 

Hoje não sinto frio, não vejo a vida como ela deveria ser e muito menos sou notada pelas pessoas na rua. Não tenho amigos, família, motivos. Sei que um dia tudo isso vai terminar. Vou ser livre como o vento que bate em meu rosto e levam minhas lágrimas para longe de mim. Eu sei muito bem que a vida é como uma mãe, que a morte é como um pai violento tirando a felicidade de um filho indefeso. E esse alguém sou eu, sou inocente e indefesa para viver nesse mundo tão cruel. Minha alma sucumbirá a desgraça que farei e esperarei ansiosa para alguém me notar. Alguém me salvar e tirar esse peso das minhas costas. E nesse dia, sorrirei um belo e sincero sorriso que antes não conseguia. No dia que alguém me notar cairei da sacada, programada para um mar de felicidade intensa. E para esse alguém que me notar, desejo que encontre um aconchego nessa mãe chamada vida, pois encontrarei aconchego esse pai chamado morte. Obrigada, te espero para dar um sorriso sincero.

 

Lagrimas escorreram de meus olhos. E entendi o que aconteceu, ela apenas queria ser notada assim como eu.


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Notas finais do capítulo

O que acharam? Gostaria de saber. Obrigado :3