Entre cigarros e Morangos Mofados escrita por Izabell Hiddlesworth


Capítulo 6
Derby


Notas iniciais do capítulo

“Gosto do gosto. Do gosto de cerveja, do cheiro de cigarro. Gosto do gosto amargo, do cítrico perfume dele.”
(Alice Petrochi)



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                – Tem certeza de que não podemos levar cerveja? – Thiago estava agarrado a um fardo de Brahma, usando sua melhor cara de filhote abandonado.

 Roger o censurou apenas com o olhar, estendendo um fardo de latinhas de suco.

                – Tente não ser tão ridículo.

 A contragosto, Thiago devolveu o fardo de cerveja ao freezer e aninhou o de suco nos braços.

                – Você é um puta de um estraga prazeres, sabia?

                – E você é um idiota, então estamos quites.

 O carrinho de compras estava cheio de calabresas, queijos, pacotes de palito para churrasco e molhos para carne. Roger revirou os produtos pelo menos duas vezes, checando se sua lista de compras tinha sido cumprida. Esperava que o pessoal do grupo fizesse o mesmo com sua parte – seria um ultraje esquecer o pão de alho ou a picanha por exemplo.

                – Vamos, já temos tudo.

                – Nem uma latinha? – Thiago apontou para o freezer das cervejas que ficava para trás. – Pode ser só uma, para mim, para comemorar meu progresso.

                – Você não está totalmente limpo – Roger fez questão de lembra-lo, enquanto encostava o carrinho no caixa milagrosamente livre –, só diminuiu as tragadas semanais.

                – Já é bastante coisa – Thiago protestou, puxando o cartão do bolso da jaqueta e o entregando à funcionária. – A Lígia disse que meus beijos quase não têm mais gosto de maconha.

 Roger terminou de colocar as compras na esteira rolante, virando-se para fitar o amigo – sob o olhar curioso da moça que contava as compras. Pensou na última reunião do grupo – feita somente entre os acompanhantes dos circulistas –, no apelo zeloso de Maurício para que todos se policiassem para dar mais atenção aos amigos viciados. Ele, Lígia e a família de Thiago estavam fazendo um bom trabalho para não perdê-lo totalmente, mas quem estava trabalhando por Victor – não havia ninguém respondendo por ele.

 O motoqueiro sempre fugia de perguntas que passavam perto de seus motivos para estar no grupo – bom, também não era como se houvesse muitos motivos para se participar de um grupo de apoio a viciados. Victor também não se abria nas reuniões sem ser interpelado, e, quando o fazia, suas palavras eram sarcásticas e agressivas. Ele tampouco parecia disposto a se livrar de seus vícios – Roger sempre encontrava duas caixinhas de cigarro nos bolsos da jaqueta de couro.

                – Terra para Roger – Thiago estalou os dedos diante de seus olhos. Munido das sacolas com as compras dos dois, ele estava impaciente para ir embora logo. – Você nem bebeu e já está viajando? Que lastimável.

 Roger riu, aplicando um soco brincalhão no ombro do amigo.

                – Vai, me passa uma sacola.

Do supermercado até o sítio do Instituto Schaumann – “Fica na serra, Thiago. Você precisa pegar a Dutra para sair da cidade”, Thiago desabafou como se sentia um completo idiota tendo de recorrer à maconha para ficar bem. Falou sobre a última conversa com Lígia e sobre as amizades ruins – armadas às costas de Roger – que desfizera naquela semana. Roger ouviu tudo em silêncio do banco do carona, literalmente deixando que Thiago pusesse as mãos no volante de sua própria vida.

                – Mas eu quero saber de você – o amigo terminou o depoimento com uma risada sem jeito. – O grupo te mudou em algum sentido?

 Subitamente, numa enxurrada de imagens, sons e sabores, Roger reviveu os últimos meses num looping. Ruídos coados de cigarros e baforadas apontadas para o céu escuro, cordas de guitarra sendo arranhadas, escapamentos de motos selvagens e vodca com limão. Um beijo na noite, uma carona perdida na noite, segredos sussurrados no telhado de um prédio abandonado no centro da cidade – “Eu frequento o grupo apenas para me sentir um pouco menos sozinho”.

                – Acho que sim – ele deu de ombros, abrindo um sorriso débil e sem propósito. – De algum modo.

                – Então é sério com o Victor? – Thiago desviou os olhos da estrada por um instante para fitá-lo de olhos arregalados. – Vocês estão juntos mesmo?

                – Não sei – Roger foi sincero, uma vez que seu coração não pesava com ânsia nenhuma por provação ou por algo concreto. – É sério de qualquer forma. Não sei se estamos juntos. Mas, mesmo que não dure depois do grupo, é amor de verdade. Não precisa ser eterno para ser de verdade.

                – Ok, o grupo te mudou em vários sentidos – Thiago riu.

 O carro virou numa estrada de terra no meio da serra e, após alguns trancos e resmungos de Thiago, os portões largos do sítio do Instituto sugiram entre postes de luz.

                – Estamos no lugar certo?

                – Diz “Instituto Schaumann” – Roger apontou para a placa de madeira no alto do portão principal.

 Um agregado do sítio ticou seus nomes numa lista antes de deixá-los passar. Thiago estacionou o carro onde o rapaz designou, reclamando da terra sujando seus preciosos pneus. Com certa pressa, ele e Roger apanharam as sacolas no porta-malas e se tomaram a trilha de cascalhos até o casarão iluminado.

 Maurício os recebeu na porta com um abraço gentil, introduzindo-os aos outros monitores. Roger não surpreendeu ao descobrir que havia uma professora da universidade entre eles – o cartaz no mural de avisos e a participação de Thiago no grupo de apoio eram graças a ela.

                – Vocês podem colocar a comida na mesa da cozinha – Maurício apontou para o cômodo ao final de um corredor largo, onde as pessoas se movimentavam atarefadas como formigas. – Perguntem à Lara no que vocês podem ajudar. Ah, e não se esqueçam de se enturmar com o pessoal dos outros grupos.

                – Lara é a stripper? – Thiago sussurrou quando já estavam na metade do corredor.

                – É, mas para de ser tão indiscreto – Roger revirou os olhos.

 O casarão tinha uma arquitetura antiga com o pé direito alto e o assoalho de madeira, mas sua decoração tinha um toque contemporâneo. Na cozinha, as cadeiras tinham sido encostadas numa parede para facilitar o acesso à mesa grande de madeira rústica. Roger reconheceu duas pessoas do grupo deles sem contar Lara, que provava um molho na bancada da pia.

 Ela tomou as sacolas dos dois e lhes ofereceu amendoins coloridos em uma tigela. Parecia outra pessoa no avental azul-bebê com bolinhas brancas.

                – Acreditam que o Maurício me fez usar isso porque meu vestido é “muito decotado”? – Lara imitou a voz paternal do monitor, revirando os olhos. – E é melhor vocês beliscarem um pouco – insistiu nos amendoins, apanhando alguns para si mesma –, a carne vai demorar a sair. Aliás, vocês podem ajudar o Victor lá fora com a fogueira.

                – O Victor é? – Thiago direcionou um olhar malicioso para Roger, cutucando-o com o cotovelo. – Nesse caso, só o Roger é o suficiente.

 Lara olhou de um para o outro com uma sobrancelha arqueada e os lábios vermelhos torcidos.

                – Então você fica ajudando com a louça aqui – ela apontou para as cubas da pia cheias de facas, recipientes e tábuas para corte.

 Thiago resmungou algo ininteligível, encarando sua enfadonha tarefa.

                – Você fica me devendo uma, cara.

 Roger lhe afagou o ombro, fingindo empatia.

                – Fico? Isso é você pagando suas dívidas – gargalhou, escapulindo pela porta dos fundos.

 Do lado de fora, o ar começava a ficar carregado com a fumaça da churrasqueira e com as tochas que ardiam pelo passeio de pedras do alpendre até um círculo de bancos. Afastado da área de churrasco, Roger distinguiu Victor ajoelhado na grama com uma pilha de lenha.

                – Nossa, pensei que homens da idade da pedra como você sabiam fazer uma fogueira – ele abaixou-se ao lado do motoqueiro, com um sorriso brincalhão.

 Victor forçou um riso sarcástico, fechando-lhe o cenho.

                – Sou só seis anos velhos do que você, pirralho.

                – Isso é uma vida – Roger tornou a provocar, ajeitando uma pedra no círculo que Victor havia delimitado para a fogueira. – Lara me mandou vir aqui te salvar.

                – Bom, se continuar sendo tão petulante, vai acabar precisando que alguém te salve porque você vai ser a lenha – Victor simulou um olhar assassino.

                – Vai, deixa eu ajudar – Roger apanhou um toco de lenha na pilha.

                – Você não parece do tipo que...

                – Au! – O toco de lenha rolou para a grama ao que Roger sacudiu a mão com força.

                – Que foi? – Victor largou as lenhas que tinha apanhado e segurou-lhe pelo pulso. – Vem cá deixa eu ver – um exame minucioso no olhômetro se seguiu com uma careta de incômodo estampada no rosto de Roger. – É só uma farpa.

                – Mas dói para porra – Roger reclamou.

                – Fica quieto. Eu vou tirar.

 Victor debruçou-se sobre sua mão, encostando os lábios ressecados em sua palma. Com cuidado e um pouco de dentes, a farpa saiu rapidamente e foi cuspida no gramado.

                – Pronto, fracote – Victor beijou-lhe a palma, sorrindo com certa malícia. – Vamos fazer logo essa fogueira.

 Enquanto as mãos dos dois se esbarravam entre a lenha e as pedras, ele contou como tinha demorado a encontrar a entrada certa na estrada principal para chegar até o sítio. Roger estava escutando, porém seu interesse residia nas linhas fundas do pescoço de Victor – na ondulação paralela de seus músculos sob a pele morena.

 Mais tarde, quando a fogueira ardia voraz e a comida ficou pronta, mesas e cadeiras foram armadas a céu aberto e a louça foi posta. Maurício e os outros monitores pediram que todos se reunissem lá e comandaram um abraço grupal. Houve música – Victor dedicou um cover de Caleidoscópio dos Paralamas para Roger –, sorrisos calorosos e explosões contagiantes de gargalhadas acompanhando os pratos.

 Nada das reuniões foi sequer mencionado. Era uma noite leve e alegre, para se comemorar um pouco e fazer novos amigos.

 Depois da sobremesa, a música continuou soando por uma banda formada com integrantes aleatórios dos grupos, enquanto o resto do pessoal dançava em volta da fogueira ou conversava à mesa ou no casarão. Roger encontrou Victor sentado no deque da piscina, olhando hipnotizado para a superfície inconstante da água.

                – Pensando no quê? – Ele se sentou ao lado do outro, cruzando as pernas como um índio e apoiando-se nos braços.

                – Já leu Morangos Mofados?

                – Duas vezes. O Abreu é foda.

                – É – Victor concordou, sem realmente olhar para ele. – Estou pensando no Caixinha de Música. Aquilo é sobre amor ou não?

 Roger refletiu um pouco, fitando as estrelas que brilhavam no céu límpido da serra.

                – Acho que não. O amor não pode ser destrutivo daquele jeito.

                – Realmente.

 Compartilharam uma tragada de silêncio, com o som da música no gramado chegando confuso e disperso como um murmúrio no escuro. Ali, perto demais da piscina e longe demais da fogueira, o ar era mais frio. Roger pensou em voltar até o carro e apanhar outro casaco, mas não queria perder um segundo sequer da companhia de Victor ou daquele céu incrível.

                – Você tem um cigarro?

 Victor agora também observava para as estrelas. Roger já tinha uma reprimenda na ponta da língua, mas então entendeu do que se tratava.

                – Estou tentando parar de fumar.

                – Eu também. Mas queria uma coisa nas mãos agora.

                – Você tem uma coisa nas mãos agora.

                – Eu? – Victor virou-se para ele, erguendo as sobrancelhas num falso misto de surpresa e curiosidade.

                – Eu – Roger comprimiu os lábios, tomando-lhe uma das mãos e a colocando sobre o lado esquerdo do peito.

 Victor acariciou seus cabelos crespos, escorregando o polegar por sua bochecha e então por seus lábios.

                – Me beija.

                – Te beijo.

 Roger foi acometido pela vontade louca e instantânea que as pessoas apaixonadas geralmente têm, não hesitando em tomar os lábios de Victor nos seus.

                – Você quer dormir comigo? – Ele perguntou naturalmente com o motoqueiro fundindo-se na volta de seu pescoço.

 Houve um momento de silêncio. Roger sabia que não seria rejeitado; Victor sabia que ele sabia. Era uma comunhão sutil como a de Júpiter e Saturno.

                – Isso é como perguntar se quero continuar respirando.


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Notas finais do capítulo

Aqui estamos nós. No fim. (-q)
Fiquei em cima do muro sobre fazer ou não o lemon. Mas acabei com não mesmo.
"O dia em que Júpiter encontrou Saturno" é bem místico e, de certa forma, fugaz (essa foi a minha impressão). Procurei reproduzir aqui uma atmosfera como a dele, sucinta, com diálogos meio "perdidos" e um compromisso descompromissado (eles falam sobre dormirem juntos, mas nada relacionado a horário, data ou qualquer outra coisa. A certeza de que vão fazer isso em algum momento é o suficiente).
A intenção foi deixar o final tão vago quando a fumaça de um cigarro (eu levo os temas do desafio a sério demais, socorro), so... É só isso mesmo.
2bjs