Entre cigarros e Morangos Mofados escrita por Izabell Hiddlesworth


Capítulo 1
Marlboro Reds


Notas iniciais do capítulo

"Sinta os sentimentos como se fosse uma respiração profunda após um trago de um cigarro de barzinho de esquina. Viva intensamente e sofra muito."
(Philipi Estevão)



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                – Ah, eu não consigo – Thiago afastou o dedo da campainha pela terceira vez.

 Roger sabia que precisava ter paciência: era a primeira vez do amigo num grupo assim. Mas seu dia fora cheio, além do estresse habitual no estágio e na faculdade, ainda tivera de lidar com uma cagada de pombo. Ficar plantado no topo deserto do morro do Instituto Schaumann, com Thiago reclamando sem parar e o frio abraçando seu corpo desprotegido não seria o melhor desfecho para a noite.

                – Você quer ou não fazer isso? – Roger passou à frente, levantando o dedo para tocar a campainha.

 Porém, alguém tocou primeiro. E no espaço de tempo entre o interfone ser atendido pelo segurança na guarita e o portão ser destravado, ele conheceu:

                – Victor – disse o sujeito para o interfone. – Vim para a reunião do grupo de apoio.

 Thiago parou de gemer sobre não conseguir encarar o julgamento de um bando de estranhos. O tal Victor passou por eles para entrar no Instituto, com as mãos bem enfiadas na jaqueta escura e os cabelos compridos balançando com seu andar acentuado – Roger pensou que era um eufemismo para dizer que o sujeito mancava na perna direita.

                – Acho que está bem frio para ficar lerdeando aí fora – Victor atirou para eles, já ganhando a varanda do prédio.

 Só então Roger se lembrou do quanto seu suéter era fino e que Thiago precisava de ajuda.

                – Vem logo – agarrou o amigo pelo pulso, arrastando-o para dentro do Instituto.

                – A gente precisa mesmo fazer isso? – Thiago choramingou cabisbaixo, deixando-se levar.

                – Você precisa fazer isso – Roger sacou um pequeno pedaço de papel com o número da sala de reuniões do bolso. Quando entraram no hall, achou seguro soltar Thiago. – Ok, acho que a sala vinte fica no segundo andar.

 O amigo tomou-lhe o papel por um instante para checar a anotação, depois o devolveu.

                – Quais as chances de esse prédio acabar e não chegarmos no segundo andar? – Ele revirou os olhos.

 Roger o ignorou, encaminhando-se para as escadas de madeira. Do lado oposto do hall, sobre um imponente pilar de pedra, a enorme estátua de um anjo chorando os vigiava.

                – Caraca, Roger, precisava ser num lugar macabro desse jeito? – Thiago fez o sinal da cruz no corpo, embora de religioso não tivesse nada.

                – Como você é cuzão, puta merda – Roger resmungou, começando a subir as escadas.

                – Quem arrasta o melhor amigo para um grupo de alcóolicos anônimos numa sexta à noite? – Thiago bufou, enfiando as mãos nos bolsos do casaco como uma criança birrenta. – Você deveria me arrastar para um cabaré, um show de uma banda ruim ou um porre.

 Roger revirou os olhos, concentrando-se em encontrar o número da sala de reuniões nas placas sobre as portas no corredor. O segundo andar do Instituto estava silencioso e escuro, praticamente sussurrando que era o andar errado.

                – Se eu fosse um amigo egocêntrico e infantil, abre parênteses, como você, fecha parênteses, eu faria exatamente isso. Mas eu sou um cara legal com um coração altruísta e estou sacrificando todas as minhas noites de sexta, por tempo indeterminado, para te ajudar – Roger disparou, refletindo que seu sobrinho de dois anos era um ser mais responsável e maduro do que Thiago. – Agora, por favor, cale a boca e tente parece simpático.

 Eles chegaram ao final corredor, onde a última porta exibia a placa com o número trinta.

                – Roger, temos um erro significativo de pelo menos dez salas – Thiago apontou para a placa, pulando na frente do amigo. – Tenho certeza de que isso é o sinal para irmos para sua casa jogar videogame.

 Roger fechou o sobrecenho.

                – Descobriu isso sozinho, Einstein? Nossa, você merece ser indicado ao Nobel de Matemática do ano que vem.

 Ele girou nos calcanhares, iniciando o caminho de volta no corredor. Depois de um lance de escadas, mais portas e reclamações desnecessárias e uma cotovelada bem dada nas costelas de Thiago, eles chegaram à sala vinte.

 Na porta, um homem de meia-idade os recebeu com um sorriso amistoso. Suas roupas sociais e os óculos de aro de tartaruga passavam uma impressão autoritária e paternal.

                – Boa noite, eu sou o Maurício, o monitor do grupo dois – ele apertou a mão dos dois, entregando-lhes um pequeno folheto. – Esse é o nosso programa do grupo, vamos debater sobre ele na reunião de hoje.

 Roger esboçou um sorriso de agradecimento e arrastou Thiago consigo para o círculo de cadeiras no centro da sala. Quase todos os lugares já tinham sido ocupados, mas as conversas se resumiam a burburinhos tímidos e curtos. O clima estranho e engasgado de primeiro encontro pairava no ar – sendo terrivelmente acentuado pela música ambiente que soava através de um pequeno rádio no meio do círculo.

 Victor estava lá, largado numa das cadeiras com os braços cruzados contra o peito e uma cara de poucos amigos. Roger decidiu que não gostava dele. O que raios poderia vir de bom de um sujeito com aquela aparência de desleixado?

 Passou-se pelo menos dez minutos até o monitor encostar a porta e ocupar sua cadeira no círculo. Cinco lugares ainda estavam vazios, mas ele não pareceu se importar. Com um sorriso acolhedor, seus olhos varreram cada membro do grupo cuidadosamente, absorvendo as  expressões inseguras.

                – Boa noite, pessoal. Como eu já disse, eu sou o Maurício, o monitor de vocês. Vamos ficar juntos até o final do semestre e, depois do retiro de vivência, talvez me deixem ficar com esse grupo na segunda etapa – sua voz continha uma pequena dose de animação, encorajando algumas pessoas a relaxarem mais em suas cadeiras.

 Maurício explicou sobre o projeto de reabilitação de pessoas viciadas em drogas e como aquelas reuniões ajudariam o grupo a não precisar disso. Roger só percebeu estar tão disperso quanto Thiago quando ouviu alguém dizer “o rapaz de camiseta azul” e sentiu os olhos o enquadrando.

                – Desculpe? – Ele sobressaltou-se, procurando uma dica do que estava acontecendo.

 Sua mente tinha vagado para o trabalho pendente no notebook em seu apartamento, o gato que deveria estar com fome e todos os eventos de sexta-feira que ele e Thiago perderiam naquele semestre. Estivera tão desligado que só conseguia se lembrar de ter ouvido Maurício dizer que era o monitor.

                – Seu nome, idade, o que faz da vida, como veio parar aqui... vício – Maurício sorriu para ele, incentivando-o. – O Iago escolheu você para ser o próximo a se apresentar.

 Então já estavam nas apresentações.

 Thiago o fitou na cadeira ao lado, claramente segurando uma risada escandalosa com toda a força de vontade que tinha.

                – Hm, vamos ver... Eu sou o Roger, tenho vinte e quatro anos. Estou no último ano de engenharia civil e estagio na área – ele pigarreou, tentando ganhar tempo para ordenar melhor as palavras. – Soube do projeto através de um cartaz no mural de avisos da universidade e resolvi procurar ajuda para o meu amigo aqui – como uma pequena vingança, deu um tapa ligeiramente forte no ombro de Thiago. – Ele pode ser o próximo a se apresentar.

 Thiago remexeu-se desconfortavelmente na cadeira, torcendo os lábios e o nariz de maneira nervosa.

                – Eu sou o Thiago. Tenho a mesma idade e faço as mesmas cosias que o Roger. Ele me arrastou até aqui porque acha que eu preciso de ajuda – Thiago apontou para o amigo com o polegar, mantendo uma postura fechado e pouco à vontade. – Como se o fato de você fumar maconha algumas vezes por semana fosse motivo o suficiente para precisar de ajuda.

                – Bom, Thiago – Maurício retirou os óculos para limpar as lentes, ficando com os olhos pequenos como azeitonas pretas –, você pode estar frustrado com o Roger agora, mas tenho certeza de que vai agradecê-lo por isso no futuro.

 Roger sorriu com gosto, como uma criança que apronta mas é dada como inocente.

                – E quem você acha que deveria se apresentar em seguida?

                – Acho que meu amigo Roger gostaria de saber mais sobre o Victor – Thiago indicou o dito cujo do outro lado do círculo com o pé.

 Victor lançou um olhar curioso e surpreso para Roger, que não sabia onde enfiar a cara depois daquilo.

                – Prazer, Victor Prestes, trinta anos. O resto, sem querer sem grosso, mas não interessa a vocês. Pelo menos não agora – direto e reto.

 Maurício recuou em sua cadeira como se tivesse acabado de levar um tapa no rosto.

                 — Não me leve a mal, monitor. Mas eu sou um cara difícil – Victor sorriu de canto, descruzando os braços e endireitando-se na cadeira.

 Maurício precisou de ajuda para retomar o fio das apresentações. O próximo homem a se apresentar discursou sobre cigarros eletrônicos por tanto tempo que Roger nem mesmo conseguiu guardar seu nome.

 O resto da reunião se seguiu entre resmungos impacientes e comentários desnecessários de Thiago, com uma outra risada discreta por parte de Roger. Ambos se sentiram aliviados quando Maurício bateu uma palma e anunciou o fim da reunião. Bateram palmas com os outros membros do grupo, fingindo empolgação pelo sucesso do primeiro encontro.

                – Que grupo, que reunião, que noite! – Thiago lançou o punho para o ar numa comemoração, enquanto eles se misturavam àqueles que seguiam em direção ao andar térreo.

 Roger meneou a cabeça negativamente, rindo da graça do amigo.

                – Você poderia disfarçar melhor a falta de interesse – ele comentou quando chegaram no carro, salvos dos ouvidos alheios. – Está todo mundo no mesmo barco que você.

                – Ah, por favor – Thiago deu um muxoxo, sentando-se apressadamente no banco do motorista. – Aquele cara do cigarro eletrônico é pirado e a stripper lá precisa de mais do que um grupo de apoio. Sem falar do senhor eu-sou-bom-demais-para-vocês.

                – O Victor? – Roger colocou o cinto de segurança. – Bom, você meio que deu motivos para ele agir assim, lerdeando no portão e praticamente dizendo para todo mundo que eu quero pegar o cara.

 Pelo retrovisor, ele viu dois faróis piscarem do outro lado da rua. Uma moto cantou pneu ao lado do carro e sumiu na descida do morro. Roger não conseguiu desviar os olhos a tempode evitar a troça de Thiago.

                – E você não quer?


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Notas finais do capítulo

"...o amor saiu pra comprar um cigarro, e nunca mais voltou!
Bandido!"
(Mell G.)