Guarda-roupa escrita por Waver


Capítulo 1
Guarda-roupa




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Ergueu-me então, a essa hora, a dor que me resta como única companhia. Vejo daqui, por entre as longas mortalhas que tampam as janelas de meu sepulcro, folhas sendo esfoladas por galhos, conforme o vento exige sua obediência. A tormenta noite cai, castigando tudo que lá fora rasteja. Não lembro da sensação da chuva, mas de seus sons e estrondos são feitas as cicatrizes mentais que tanto atrapalham meus delírios. Por infernos, me permitam delirar! Não possuo mais a capacidade de separar o castigo da doença do açoite da velhice. Ainda assim, sei que a tempestade tem nada que não inveja, pois o partir dos meus ossos ou a tosse desgraçada gritam mais alto que seus temerosos tambores celestes! Que visão gloriosa seria, antes de me tornar cadáver não só em aparência, servir como ofensa aos próprios anjos orgulhosos. Talvez, quem sabe, dessa forma, após servirem meu corpo como festim aos vermes da terra, eu seja bem-vindo aos portões da tragédia e maldizer, tornando minha existência em algo não tão vão. Vejo-me na cama, com pele tão pálida e frágil, que não surpreender-me-ia se, antes da alvorada, se desprendesse de meu corpo. Saberia me responder se existe algo mais enlouquecedor do que enlouquecer? Quando tudo foi tirado de mim, vi que não tinha nada. Resta-me agora apenas a consciência, essa que negligenciei através da vida inteira. Antes que até isso suma, contarei aqui a breve história de um rapaz que conheci, anos atrás.

Em meio ao cheiro de madeira mofada e mágoas afogadas em vinho, encontrava-me desacompanhado em um estabelecimento sem nome. Fria e cinza era tanto o dia quanto a noite, como sempre eram, até onde minha memória, agora senil, se estende. Não lembro o que passava pela minha cabeça, mas de certo era qualquer trivialidade tão sem importância quanto o nome da taberna. Ao longe, um grande e ancião relógio de madeira vermelha tinha seu pendulo enferrujado, rangendo um badalar pesaroso, não mais que um sussurro direcionado à minha angústia. Até mesmo a melodia melancólica da ferrugem era abafada pelas conversas rasas, me dando algum incomodo o qual não sabia como lidar. O gargalhar, típico dos embriagados, me irritava em especial naquela noite, fazendo-me sentir um formigamento incessante, junto com o leve desespero. Prestes a ir embora, repousei meu olhar sobre um rapaz que, aparentemente, estava tão desconfortável quanto eu. Nunca fui impulsivo, defeito esse (quem sabe qualidade?) que sempre foi nulo em minha família, nascido eu em uma longa linhagem de homens solitários e carrancudos. Não poderia culpar o vinho, então só me resta tomar como motivo o desespero, pois ao invés de desaparecer nas ruas e buscar o silêncio tranquilizador, atravessei o salão e sentei-me ao lado do rapaz cabisbaixo.

Após tentar dar início ao diálogo, minutos arrastados se passaram sem ter uma resposta positiva. Ele sempre era direto, apenas saciando minha superficial curiosidade, mais interessado em seus próprios pensamentos do que no álcool em seu copo. Surpreendi-me então, após fazer um comentário sobre suas fúnebres olheiras, quando seus olhos se arregalaram em repleto horror. Sua indiferença foi arrancada de uma só vez, como um manto, dando espaço para um desamparo infantil, ressaltado pela palidez fria de seu rosto. Quanto mais horror eu via em seus apavorados olhos, maior era a curiosidade traiçoeira que se enroscava em minha alma. Pois foi com muita cautela e compreensão em minha voz que perguntei: "— Qual o problema, jovem?"

Tamanha era a batalha interior que ele travava! Via seus lábios se moverem, mas sem força ou vontade em deixar som qualquer escapar. Tão inquieto era seu interior, para tal silêncio que o envolvia! Por fim, mesmo que sob o comando da Rainha Aflição, o desespero falou mais alto e ouvi sair em tom a fraquejar: "— A Voz. A Voz sempre me chama."

E assim começou uma longa noite de relatos, dos quais para sempre lembrarei. Hei de admitir que foi em meio as conversas mórbidas que me senti mais vivo.

Primeiro, contou-me ele, tudo começou aos nove anos. Desperto ao meio da noite, sem capacidade de distinguir realidade de ilusão, lhe atiçava uma Voz, rogando pelo seu aproximar. Doce, como veneno traiçoeiro, a voz escapava por entre os vãos das portas do armário, chamando, incessante. Repulsa e pavor tomaram conta, restando-lhe apenas procurar abrigo nos braços da mãe, dando por encerrada a noite. Assim foi o passar dos anos, com visitas esporádicas e macabros monólogos substituindo seus sonhos e repousos. Sentia-se observado no escuro silencioso, ouvia sussurros durante o dia. Nunca soube quando seria a próxima visita, mas sempre ela vinha. Por vezes tanto tempo se passava que tudo parecia um sonho distante, uma insânia infantil... mas antes que a poeira cobrisse as memórias, seu flagelo ressurgia imperador.  A Voz contava-lhe mentiras, inumeráveis contos, dos mais variados. Não importava o quão fervorosa, bela ou trágica seria a narrativa, o final permanecia sempre o mesmo: o convite singelo para abrir as portas do armário e conhecer o narrador.

Conforme o tempo passava, difícil era esconder meu encanto. As horas passavam, a taberna esvaziava. Restavam apenas eu, o rapaz, o ranger da ferrugem e o medo envolto como uma névoa. Confessou ele que, com o passar dos anos, o dia perdera o significado. A noite sombria havia se tornando tudo que tinha. Passava por elas em claro, com medo de ser desperto em surpresa. Fascinava-se com o próprio medo, por mais que nunca soubesse aquietá-lo.

Já tarde, com a história em seu desfecho e copos vazios, fomos andando até a saída. Vi o céu, adornado por suas nuvens a bailar, reforçar o relato nefasto de meu companheiro. Senti, sem motivo aparente, que aquela noite seria nosso primeiro e último encontro. Antes de me despedir, tinha uma dúvida a indagar: "— Por que não procuraste ajuda? Que motivo terias para permitir-se ser feito de refém do medo da Voz?"

Meu companheiro olhou fundo nos meus olhos, com melancolia e vazio profundo: "— Nunca tive medo da Voz." O silêncio dividia espaço com os badalares de um relógio invisível, como se o pendulo enferrujado estivesse cravado em minha alma. "Não era da Voz que tinha medo, mas sim de abrir as portas e não encontrar nada."

E assim, sem mais a adicionar, ele se virou e desapareceu no primeiro beco ou esquina que estivesse adiante.

O tempo passou sem que eu fosse capaz de entender suas últimas palavras. Tinha ele medo de ser louco? Ou hedionda era sua imaginação? O tempo passou e só fui entender na velhice e doença. Só fui entender quando tudo foi tirado de mim. Agora, sento aqui em minha cama, tão próximo da minha morte que poderia sentir seu abraço frio, preenchido de pavor. Pavor esse de abrir a porta, mas não encontrar nada.


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