Um conto cinza escrita por Waver


Capítulo 1
Um já morto fazendeiro




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Ninguém ouvia as rodas rasgarem a lama da trilha estreita e invisível, em meio a escuridão e as árvores deformadas. Ninguém ouvia o galopar feroz e amedrontador dos cavalos de guerra do carrasco, que puxavam a caixa de madeira, velha e em pedaços. O chicote, nas mãos do cocheiro, que açoitava as feras inquietas também não podia ser ouvido. A densa escuridão daquela noite envolvia a cena, uma escuridão tão espessa que nenhum som escapava, assim como nenhuma forma poderia ser distinguida, além dos vultos, silhuetas perturbadoras evocando as lendas dos livros infantis e o medo dos incrédulos. O carrasco rangia os dentes, tanto por frio quanto por raiva. A cidade era um lugar de silêncio, como um imenso altar de uma cerimônia que nunca acabou. Mesmo em meio as tochas fracas e a movimentação escassa, nenhum lugar onde os ratos do Primogênito alcançassem seria um lugar seguro o bastante, forçando os rebeldes a se refugiarem nas sombras dentro das sombras, em fazendas e florestas, esgotos e corredores nunca usados. Elmyrod sentia ódio, ódio insaciável e, por isso, seu semblante permanecia perturbado, como o de um doente. O carrasco e o cocheiro eram os únicos que se aproximariam da fazenda. Não por serem os únicos a terem conhecimento de sua localização, mas por diversos outros fatores que a tornavam uma péssima ideia. A proximidade à borda, a sua história, a doença. Mas ninguém sabia quem repousava nos antigos quartos de um já morto fazendeiro orgulhoso. Ninguém sabia que tipo de monstro caminhava pelo assoalho, cantarolava, lia e se alimentava em seus interiores. Elmyrod ia se encontrar com um velho conhecido e, por isso, seus dentes rangiam.

O carrasco sentiu os cortes da madeira com os dedos conforme alguns pingos de água — resquícios de uma chuva recente — caiam sobre o teto, lá do alto das árvores, passando pelos vãos e gotejando, levemente, na madeira enegrecida da antiga carroça. O cheiro da lama inundava a cabeça de Elmyrod com pensamentos negativos. Ele sentia saudades dos antigos salões de entrada, das areias secas do deserto e dos campos verdes do outro lado do mar. Em todas essas ocasiões sua carroça fazia companhia, fiel, mas agora estava velha, cheia de cortes e aos pedaços, tal como seu dono. A caixa velha era uma importante cicatriz, lembrando o torturador do seu estado e seus objetivos, já que há muito ele abdicara do hábito de se olhar no espelho.

A frente de Elmyrod, um buraco na carroça — onde em outra época havia uma janela — dava para o cocheiro. Elmyrod se pôs a encarar o buraco sem desviar o olhar, esperando o anúncio de sua chegada à fazenda.

Mais alguns minutos foram necessários, até o cocheiro dar o último açoite e uma ordem de parada. As feras, criadas para guerra, pararam e urraram para o céu. O torturador, com ajuda de sua bengala, desceu da caixa velha e ajustou seu casaco surrado. Suas botas afundaram na terra fofa e o cocheiro murmurou algo inaudível para os cavalos. Elmyrod olhou para o homem e deu a ordem:

— Mantenha sua posição. Nada te fará mal, que não a chuva. Não tema o monstro que habita a casa e muito menos os fantasmas que choram no solo, ambos já estão do nosso lado — com um gesto, Elmyrod pediu ao cocheiro que o entregasse a tocha. — Se quiser, acenda uma também, mas apenas uma. Acredito que não deseja mais companhia além dos cavalos.

O carrasco olhou os arredores, tomando conhecimento do território. O estábulo, o celeiro, uma casa menor e o grande casarão da família. Todas as construções do terreno em estado deplorável, com exceção de algumas cercas. O torturador caminhou, com cautela, até o grande casarão. Uma enorme casa com dois andares, uma construção surpreendente simétrica, com um padrão de janelas seguido de forma rigorosa. Antes de entrar, Elmyrod aproximou a tocha das paredes desbotadas e mofadas que já foram brancas. As janelas eram fortes, madeiras sólidas feitas para aguentar as tempestades frequentes, mas agora, as que não caíram, apenas pendiam em poucas dobradiças de um lado para o outro, conforme o vento ordenava. O carrasco suspirou e, já com pouca paciência, entrou pela porta destrancada.

A troca de ares e odores, de longe eram positivas. O cheiro de terra úmida era substituído por um cheiro putrefato, invadindo suas narinas como um vulcão em erupção e se entrelaçando em seus miolos. Com a outra mão buscou seu lenço no bolso do casaco. Se apoiando de costas na parede, segurou com força contra o rosto e amarrou, para amenizar o sofrimento. Agora dentro da casa, Elmyrod tomou a sala de jantar como destino, já sabendo que o hospede não estaria em nenhum outro lugar.

Seus passos faziam eco pela casa vazia, deixando uma trilha de barro por onde passava. Ignorou os sussurros do vento, forçando sua entrada pelos vãos, ignorou seu instinto, acusando olhos invisíveis em cada cômodo lúgubre e ignorou os vultos distorcidos que a tocha projetava a cada passo manco que dava pelo chão mofado daquele ninho de sombras. A severidade do mal cheiro não deixava brechas para dúvida: o monstro estava lá. O carrasco olhou para uma das janelas, e tábuas pregadas nas paredes impediam a visão do mundo exterior, assim como em todas as outras janelas. A pequena fresta entre duas madeiras permitia uma visão da lua, a qual Elmyrod estranhamente se apegou e, ao se deixar levar, parou e observou. Ponderou se o seu velho conhecido fazia o mesmo, se ele tinha consideração alguma pelo seu passado. A lua, como era hoje, tinha um significado profundo, cravado na vida do torturador. O monstro sentia o mesmo?

— Nunca foi de fazer cerimônias, velho Roddy, será que não o conheço mais? – Uma voz distorcida clamava pela atenção do velho, vinda do centro da sala de jantar. Elmyrod apertou o apoio da bengala, com a voz soando como um arrepio na espinha. Sem desviar o olhar da bloqueada janela, respondeu:

— Não seria uma surpresa, considerando que o tempo mudou a todos nós, de uma forma ou outra. — respondeu com firmeza.

— De uma forma ou outra, carrasco. Agora sente-se, na sua idade ninguém deveria ficar de pé.

O torturador não escondeu desagrado diante da tentativa de humor do monstro. Antes de se juntar à mesa, retrocedeu alguns passos no corredor e depositou a tocha em um suporte. Retornou a sala de jantar e se sentou, por fim, de forma desleixada, no extremo oposto da mesa retangular. Encarou o anfitrião com um semblante duro.

— Eu ofereceria um pedaço, mas tenho dúvidas sobre o seu paladar rude. – ironizou, o monstro, sem pausar sua refeição. A proeminente arcada dentaria aparentava ainda maior, com a bruxuleante e fraca luz à distância. A criatura se alimentava com prazer, regozijando a cada pedaço grosso de carne que destroçava com seu focinho deformado. Elmyrod estava fascinado, ao mesmo tempo que provava da mesma emoção que sentia sempre que via a criatura... decepção.

— Como eles estão? – perguntou por fim, encerrando a observação.

— Famintos, Roddy.

— Ótimo. Espero que continuem assim até o prato principal entrar em cena.

A criatura riu para dentro, levemente.

— Quer vê-los? Não sente a curiosidade?

— Não. Já vi porcaria demais na minha vida e prefiro manter-me na margem do real desta vez. Deixo essa tolice sobrenatural na mão de malucos, como você, por um motivo.

O anfitrião, ao terminar sua refeição, sem desviar os olhos dos restos, tateou a mesa em busca de alguns farrapos umedecidos, os quais usou para limpar os restos de comida impregnando seu rosto e mãos. Encarou Elmyrod diretamente nos olhos e perguntou, escarnecedor:

— E qual seria esse nobre motivo?

O velho se ajustou na cadeira, usando o mínimo de esforço possível. Devolveu o olhar para a criatura e respondeu com firmeza:

— Segurança. Gosto de estar vivo, pode crer nisso.

O monstro não se conteve e riu com desdém. Um sopro de vento escapou pela janela e oscilou a tocha, tornando suas presas ainda mais ameaçadoras.

— Preza pela sua vida e ainda dá continuidade a este trabalho? Volte a suas torturas infundadas, carrasco, segurança já nos abandonou faz eras!

— Eu odeio a merda da minha vida, mas estar morto seria muito pior. Não vou ficar sentado ou adiantar minha partida desse buraco infeliz. Vou fazer o que tem que ser feito, e, nesse momento, isso é me assegurar de que o plano está indo para o rumo “certo” – Elmyrod, ainda desconfortável na cadeira, se movimentava novamente. Olhando os arredores, notou como a casa era ainda maior do lado de dentro. – Como é viver solitário nesse enorme ninho roubado cheio de histórias que você desconhece?

— O que quer dizer com isso?

— Você é como um parasita, se hospedando onde houve desgraça. Imagino como deve ser andar por esses corredores, escarnecendo o passado dos antigos, assim como você escarnece todo o resto. – respondeu Elmyrod, provocador.

O monstro sorriu.

— A casa menor que viu lá fora, quando chegou, foi a única coisa que o antigo proprietário levantou com as próprias mãos, sozinho. As cercas, o estábulo e os outros edifícios menores que o tempo varreu, todos foram erguidos com ajuda. Essa casa mesmo, a maior, foi feita por trabalhadores, o antigo dono sequer suou uma gota. Não leve a mal, era um homem trabalhador, apenas não levava jeito para edifícios. Quando o filho foi dado como moribundo, todo o dinheiro foi gasto tentando comprar algo que nós nunca vamos conseguir: uma segunda chance de viver. A estação passou, a colheita não cresceu. Dizem que o homem salgou a terra, em um ato de loucura. Os trabalhadores foram embora, da esposa ninguém teve notícias. O homem então ergueu sozinho aquela casa menor e lá passou seus últimos dias, na companhia do cadáver de seu filho. E é isso que essa casa é, o lar de um já morto fazendeiro. Nada mais — A criatura tomou um cálice em mãos e saciou sua sede, ainda com um sorriso no rosto. — E você, carrasco, o que sabe das pessoas que você tortura?

Elmyrod, com rosto fechado, respondeu perverso:

— Bem pouco, era você que passava mais tempo com Leahnar, não eu.

 O sorriso imediatamente sumiu do rosto da criatura. Seu semblante era uma confusão de indignação e repulsa. O carrasco se arrependeu em seguida, sentindo nojo de suas próprias palavras. Desviou o olhar para a mesa e procurou sua bengala com a mão. Ao encontrar, se levantou e começou a se direcionar para a saída, quando o monstro se manifesta:

— Tem algo que eu ainda não pude compreender. Você não precisava vir até o fim do mundo para saber se eles estão famintos ou não. Se quisesse tanto me ver, poderia ser mais sincero, ao invés de tão duro.

Elmyrod apertou com firmeza o cabo da bengala e, mancando mais do que de costume, se direcionou para a tocha. Um pouco antes de sair do cômodo, avistou a lua pelo vão, novamente, e sentiu o peso de suas memórias. Rangeu os dentes de raiva, raiva de si mesmo. Olhou para trás e viu seu velho conhecido fitando a mesa.

— Até mais, Danmor.

E então o carrasco percorreu a fria noite de volta para seu solitário lar.


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