A Pintora e Seu Du escrita por Limnomys


Capítulo 1
Capítulo Único




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Três jovens corriam com a máxima velocidade que seus pés conseguiam. O primeiro era baixo, atarracado, com o pouco cabelo da cabeça arrepiado e desordenado. Vestia uma camiseta amarela e jeans. O segundo era ligeiramente mais alto e muito magro. Usava um gorro preto que escondia completamente o cabelo, em conjunto com uma camiseta laranja, calção jeans, meias roxas erguidas até a altura das canelas e tênis. O terceiro era o mais alto dos três, e o mais forte também. Tinha os cabelos muito curtos, usava uma camisa verde musgo aberta com uma camiseta de listras horizontais brancas e vermelhas por baixo. Os três possuíam o mesmo nome e, para diferenciá-los, cada um atendia por um apelido diferente: Du, Dudu e Edu.

Corriam os três, desenfreadamente, pois que, logo atrás deles, vinham também todos os demais jovens da rua, raivosos e gritando para que parassem. A fim de ganhar dinheiro e poder comprar balas de caramelo, Edu inventou um brilhante sistema de lavagem de bicicletas ao custo de meros vinte e cinco centavos. Todos da rua se interessaram e buscaram o serviço, mas uma pequena falha técnica terminou com todas as bicicletas avariadas. E agora os empreiteiros corriam.

Edu, que vinha na frente, apenas desviava dos obstáculos e seguia em frente. Dudu, logo atrás, se arrependia de ter, mais uma vez, ajudado o amigo. Procurava um meio de sair da trajetória da multidão enfurecida e encontrar um lugar para refletir e buscar uma solução. Du, por último, sequer desviava dos obstáculos, simplesmente derrubando tudo o que se colocava em seu caminho.

Após correr por alguns metros, Dudu avistou uma tábua faltante em uma cerca alta. Em meio a corrida, passou pela cerca, entrou por uma porta destrancada que logo fechou atrás de si e esperou. Ouviu ainda Du passar correndo e todos os gritos se aproximando e se afastando novamente. Quando o silêncio reinou, respirou fundo e observou o lugar onde se encontrava.

A primeira coisa que reparou foi em como aquele lugar era grande. Ele estava parado no que parecia ser uma sala de estar, onde havia apenas um sofá verde e uma televisão. A sua direita podia ver uma cozinha e, a esquerda, um quarto. A primeira coisa que lhe passou pelo pensamento foi “Eu invadi a casa de alguém!”. Em seguida percebeu que aquilo não fazia sentido, pois não lembrava de ter entrado em uma casa. Adentrou lentamente em direção ao quarto. Haviam três camas.

A cama mais afastada da porta ficava próxima a uma penteadeira. Haviam muitos produtos de beleza e maquiagens por ali. E roupas por cima da cama, também. A segunda cama estava soterrada por livros. A grande maioria de ciências exatas e biológicas, livros escolares e cadernos. Já a cama mais próxima da parede estava com os lençóis sujos de tinta. Haviam pinturas em tela encostadas na parede e diversos desenhos. Algumas pinturas retratavam pessoas famosas, outras pessoas que ele nunca vira antes. Haviam paisagens, também. Todas com uma perfeita harmonia de cores e formas e a mesma assinatura no canto inferior direito: M.K.

Dudu se perdeu em pensamentos por um momento, observando com atenção as pinturas. Ele não era nenhum artista, pelo contrário, era um homem da ciência. Talvez fosse justamente isso que observasse, a perfeição dos detalhes das folhas das árvores, como cada músculo do corpo humano era perfeitamente delimitado nas linhas daquele pincel. Mas então, enquanto apreciava aquele talento desconhecido, ouviu o barulho da fechadura. Olhou para a porta, e finalmente entendeu onde estava e o que estava acontecendo: Aquilo não era uma casa, era um trailer. E quem passava pela porta e o observava com um largo sorriso no rosto era a menina de cabelos azuis, ninguém menos que Marie Kanker.

As irmãs Kankers perseguiam os três garotos havia muito tempo, sempre com o intuito de beijá-los. Edu as repudiava fortemente, Du não gostava delas, Dudu, por outro lado, tinha outro problema. Ele tinha medo. Muito medo delas. Dudu não gostava de contato corporal, más maneiras, barulho alto. O ato de imaginar uma das Kankers o segurando a força e tocando os lábios – que sabe lá por onde andaram! – em sua pele limpa e higienizada lhe causava horror! E ele era o preferido de Marie Kanker, que já vinha em sua direção.

Como reflexo, se escondeu atrás do quadro que observava e começou a falar mais rápido do que conseguia raciocinar:

— Por favor, me desculpe, eu não fiz de propósito eu já estava de saída não me machuque!

E antes que pudesse fazer qualquer outra coisa, sentiu que duas mãos tocavam as suas enquanto ouvia a voz cínica da garota:

— Se você queria me ver devia ter telefonado, menino bobo. Eu teria arrumado um pouco a casa. Agora solte esse, é um dos meus favoritos.

Dudu foi pego de surpresa. A garota falava baixo e puxou de leve o quadro, que ele prontamente soltou. Sem abraços indesejados, sem beijos forçados, apenas pegou o quadro e colocou de volta encostado na parede, junto dos outros. A menina era um pouco mais baixa que ele e vestia uma blusa completamente preta, recortada por ela mesma e uma calça caqui. Diferente das outras vezes em que se encontraram, ela parecia estar muito tranquila. Com um pouco mais de calma, Dudu começou a se explicar.

— O Edu teve uma ideia pra ganhar dinheiro lavando bicicletas, mas alguma coisa não saiu como o planejado e agora todo mundo quer a cabeça dele. Aí eu vi a porta aberta e entrei para me esconder, eu sinceramente não sei porque eu ainda participo das armações dele, não consigo lembrar qual foi a última vez que elas deram cert...

— Tudo bem, eu entendi. Eu vi o estrago nas bicicletas. – A garota interrompeu os devaneios do outro antes que se prolongassem ainda mais – Pode se esconder por aqui mais um pouco. Ainda estão procurando vocês. Minhas irmãs só chegam mais tarde.

— Você não vai tentar me agarrar, vai? – Perguntou, genuinamente receoso.

Ela riu. Um riso franco e divertido que ele nunca vira antes, completamente diferente da gargalhada cruel que estava acostumado.

— Não tem graça sozinha. É uma coisa com as minhas irmãs, sabe?

— Eu não vejo graça alguma.

— Ah, não é tão ruim assim, é? – Respondeu, com o sorriso maligno que ele conhecia tão bem – São só uns beijinhos.

— Acontece que algumas pessoas possuem algo chamado “Espaço pessoal” que elas não gostam que seja violado dessa maneira.

— Você realmente acha tão ruim assim?

Dudu criou coragem para olhar nos olhos da menina pela primeira vez desde que iniciaram a conversa. Reparou que ela parecia realmente surpresa com a reação dele. Que talvez para ela tudo aquilo fosse de fato uma mera brincadeira. Que ela jamais imaginou o mal que causava todas as vezes. Todo o pânico, todos os banhos apressados, as esfoliações, os cremes.

— Bom, na verdade sim. É uma experiência realmente dolorosa para mim.

Instaurou-se no quarto um silêncio constrangedor. Dudu observava ao redor, constrangido. Marie olhava para os próprios pés, refletindo no que acabara de ouvir. Ela sempre gostou de brincar com as irmãs, e ela sempre acreditou se tratar de uma brincadeira inofensiva. Agora observava o garoto ali, completamente acuado e amedrontado pela mera presença dela. Ela não era perdidamente apaixonada por ele, como afirmava. Era só uma brincadeira. Mas não podia deixar de gostar dele, de alguma forma. Ele era bonito. Bom, charmoso, talvez, com aquele diastema, aquele gorro engraçado e as meias na altura das canelas. Ok, ela não precisava mentir, ela gostava de coisas estranhas.

— Esses quadros são muito bonitos – Ele disse, para tentar melhorar o clima – Onde você os conseguiu?

Ela sorriu, mas comentou com o sarcasmo habitual:

— Você gostou mesmo ou só está querendo me agradar?

— Perdão, mas acho que não entendi o seu questionamento.

— Ora, fofinho, eu pintei eles. Vê aqui? Marie Kanker – disse, apontando para as iniciais assinadas nas pinturas.

— Eu não sabia que você pintava. É um dom muito bonito e complexo, mesclar a capacidade imaginativa das formas e das cores com a coordenação dos músculos afim de dar forma a algo completamente novo. Percebo que você adota um estilo realista, quais são suas influências? Manet? Breton?

— Ah, por favor, isso tudo é com a May. Ela que devora os livros, e as técnicas e nomes e tudo o mais. Eu só... sinto, sabe? Eu faço o que me inspiro a fazer. Sem pensar muito. É só uma forma de me expressar um pouco. Quando eu pinto alguém, eu pinto alguém que sinta o que estou sentindo ou que me transmita o que quero sentir. O mesmo pra lugares.

Dudu jamais poderia imaginar uma cena daquelas. Ele e Marie Kanker, no quarto dela, conversando civilizadamente sobre arte. Quando não estava sendo uma pessoa terrível a garota parecia até mesmo agradável. Ela, por outro lado, não refletia muito sobre a situação. Se sentia bem por estar conversando com alguém diferente. As irmãs não eram muito bem vistas no bairro e as vezes ela cansava dos mesmos assuntos de sempre.

— E você, docinho – perguntou ela – o que você faz para se expressar?

— Ora veja bem, eu sou um homem da ciência. Eu não me expresso. Eu estudo fenômenos e animais, procuro saber sobre os mistérios da vida e do universo, almejando alcançar um estado de conhecimento muito além do que sonha nossa vã filosofia.

Marie riu.

— Você devia conversar com a May. Ela também prefere ficar estudando.

E Dudu também riu.

— São meios diferentes de lazer, acredito. Mas um não invalida o outro. Toda a ciência do mundo seria inútil se não houvesse a arte para alimentar os nossos corações. O seu papel no mundo é muito importante, Marie.

— Sim, faz sentido. Da mesma forma, arte sem conhecimento é apenas distração. Eu procuro mesclar os dois. Aqui, veja – e pegou o retrato de um homem de meia idade – vê as rugas de expressão? Onde os músculos contraem? Precisei de ajuda dos livros da May para fazer certinho. Aquele outro ali, encostado na cabeceira da cama, eu precisei esperar por mais de meia hora até o sol se pôr para que eu conseguisse ver a refração da luz no vidro da janela.

— Marie, tudo isso é incrível. Você também estuda, de certa forma. Da sua forma.

— Bom, eu vi a engenhoca que você fez para lavar aquelas bicicletas, não venha me convencer de que você não é uma espécie de artista também.

— É, de certa forma.

E riram.

— Senta aqui, deixa eu te mostrar os outros.

Marie arrumou os desenhos e as telas enquanto Dudu se sentava ao lado dela. Por um momento ele até esqueceu do medo que sentia. Esqueceu que estava em uma casa estranha, esqueceu até mesmo de limpar a cama antes de se sentar. Marie mostrava suas obras de arte uma a uma e Dudu só conseguia se impressionar.

— E essa outra aqui é minha tia-avó. Eu estava bem-humorada e queria pintar uma pessoa feliz. Ela já tem mais de oitenta anos, mas ainda faz piadas sobre dever de casa. Está sempre rindo. Vê o detalhe das marcas de idade? Foi um sacrifício pintar essas bochechas, mas eu fiquei muito feliz com o resultado.

— Que retrato maravilhoso! Todos eles! Eu estou surpreso e encantado de estar ao lado de uma artista tão boa quanto você. Acho até que você devia fazer uma exposição com suas obras e...

— Não! – Ela gritou, interrompendo e assustando Dudu – Quero dizer, eu não posso.

— Por que não? Suas obras são lindas.

— Porque eu estaria me expondo demais. Eu estaria expondo o que tem de mais profundo em mim e todos saberiam que eu sou mais do que aquela menina malvada e mandona que conhecem.

— Mas isso não seria bom?

Ela abaixou os olhos, pensativa.

— Não. Deixar que os outros te conheçam permite que os outros te machuquem. Se você não deixar ninguém entrar na sua armadura então ninguém nunca vai te ferir.

— Mas Marie, você mostrou suas pinturas para mim.

E ela olhou nos olhos dele. E sustentaram o olhar por talvez mais do que três segundos.

— Porque eu não acho que você seria capaz de me machucar, docinho. Você nunca faria mal a ninguém.

E sem saber como reagir diante daquilo, sem saber ao certo o porquê de estar fazendo o que fazia – mas com a certeza de que haviam hormônios envolvidos no processo – Dudu lentamente ergueu sua mão direita até a altura da orelha de Marie. Vendo que ela não se afastava, passou lentamente a mão por seus cabelos e pela lateral de seu rosto. A textura dos cabelos era macia e o contato com a pele da moça fez com que o jovem inteiro se arrepiasse. Tentando organizar os pensamentos e achar alguma explicação para o que estava fazendo, olhou para ela e disse:

— Eu gosto de azul.

Por dois segundos, o mais absoluto silêncio reinou no quarto. Como se o universo inteiro estivesse atento a cena. Logo em seguida, a moça explodiu em uma gargalhada e Dudu escondia o rosto entre as mãos, percebendo a bobagem que dissera. Ela terminou de rir. Voltou a rir. Segurou a barriga e respirou fundo.

— Desculpe – disse – Mas você é tão lindo e tão delicado e tão...tão...fofo! Desculpe por tudo de ruim que eu já fiz para você. Eu não sabia.

— Tudo bem, eu na verdade não sei ao certo o que está acontecendo comigo, entrando na casa dos outros dessa maneira e permanecendo desse jeito – e foi se levantando, acompanhado por Marie – eu acho que está na hora de eu ir. O pessoal já deve ter cansado de procurar e meus pais vão ficar preocupados.

Ele falava rápido e desviava o olha. Ainda assim, era nítido o desapontamento no rosto dela. Ela não queria que ele fosse. Ela gostava dele. Era uma boa pessoa. Era sensível. Sistemático e neurótico, mas sensível. Se ela deixasse ele sair naquele momento, então tudo voltaria ao que era antes. O medo, o nervosismo, o isolamento.

— Dudu...

— Sim?

— Posso pegar na sua mão?

Dudu sabia que as pessoas costumam tocar umas nas outras. Ele não podia evitar o contato o tempo todo. Ele sabia que não podia se manter limpo o tempo todo, mas fazia o possível. Se pegasse na mão dela, ainda levaria quase dez minutos para chegar em casa, onde poderia se lavar adequadamente. Mas, por outro lado, foi feito um pedido. A menina que costumava agarrá-lo a força e beijá-lo por todo o rosto pedia se podia tocá-lo. E ele tocou nela sem permissão. Com esforço e um pouco de medo, permitiu.

Lentamente, Marie envolveu a mão direita de Dudu nas suas e trouxe para junto de seu peito. Deu um passo para mais próximo dele e levantou de leve o seu queixo, afim de olhá-lo nos olhos. Um milhão de pensamentos e sentimentos corriam e se bagunçavam na mente dele. Nada daquilo fazia sentido do começo ao fim, entretanto, ali estava ele, junto de Marie Kanker, após conversar animadamente sobre arte.

— Dudu, geralmente é o garoto que faz esse tipo de pedido. Digo, geralmente as pessoas captam os sinais, mas eu acho melhor ser franca com você. Eu quero te envolver em meus braços e beijá-lo, tipo, de verdade. Não como das outras vezes. Eu quero fazer certo.

Dudu não era apaixonado por Marie Kanker. Ela sempre foi uma criatura amedrontadora que lhe fazia mal deliberadamente. Entretanto ali, frente a frente, ela parecia pequena e frágil. Desamparada e, ao mesmo tempo, tão confiante. Tão diferente de tudo o que ele era.

E Marie Kanker não era apaixonada por Dudu. Sim, ela gostava de provocar e de beijá-lo, mas era brincadeira. Era algo dela e de suas irmãs. Ele era o favorito dela porque ela jamais imaginava o quão mal lhe fazia. Mas agora ele estava ali, em frente a ela. De verdade. E ele parecia tão frágil e tão complexo. Como um cristal delicado, como um vitral e, também, como uma caverna a ser explorada e conhecida.

Quando perceberam, os dois se envolveram em um caloroso beijo, entregando-se aos braços um do outro. Desajeitado e nervoso no começo, sem saber o que fazer com as mãos e língua. Mas logo se arrumaram e melhoraram. E riram um pouco. Eles ainda não sabiam bem o que fariam e nem como continuariam a partir dali, mas teriam muito tempo para praticar, para melhorar e para, dia após dia, descobrir o quão apaixonados podiam ficar.


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