Hipérboles Inocentes escrita por Horologium


Capítulo 1
Capítulo Único




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A cidade, como a complexa dama que é, adquire uma mística sensualidade à noite.

Está lá o tempo todo para quem queira vislumbrar, admirar, contemplar; mas, ainda assim, as pessoas são muito ocupadas com suas próprias vidas para ceder um suspiro à beleza das luzes da metrópole noturna.

Entretanto, quando a maior ocupação da sua vida está – assim como a cidade – adormecida em seu ombro durante uma longa viagem de ônibus, você finalmente tem a chance de apreciar a serena beleza da donzela coberta pelo véu obsidiano da noite.

É esse o caso de um certo jovem de cabelos loiro-esverdeados, cujos óculos refletem as mesmas luzes agraciando suas íris azul-claras; disputando o vidro da janela na qual se espelha uma cena surreal.

Com o filme da estrada correndo ao fundo, o garoto preocupa-se demais: aquele frágil ônibus, trafegando por aquela frágil rodovia, carrega todo o essencial para a própria existência, resumido em um par de olhos castanhos atualmente vendados por pálpebras delicadas como papel de seda – e igualmente translúcidas; ao ponto de ser possível enxergar os ramos sanguíneos mantendo vivo o sorriso que faz o jovem na janela do ônibus esquecer uma função corporal tão básica como respirar.

Por mais estonteante que seja o charme da polis, encanto algum compara-se à voz do outro garoto. Nenhuma fagulha ombreia aquela que ateia fogo ao peito do mais velho a cada toque; cada pousar de lábios estrangeiros na pele a se transformar em carícias familiares. Não há luz mais confortável do que o brilho do olhar sabor chocolate ao leite – transparecendo a doçura contida naquela exata alma – para o jovem que esconde dois oceanos turbulentos atrás de um par de lentes.

Ao sentir uma sutil comoção ao seu lado, ele finalmente abandona a elegância tecnicolor da cidade para dedicar sua atenção ao dono do seu coração. A dama não pode evitar uma fisgada de inveja.

A vista é como uma pintura barroca pela forma como a luz flerta com a sombra sobre a pele de veludo. Seus cílios secaram de pinceladas minuciosas de um artista apaixonado pela obra-prima. Cada arranjo das mechas loiro-escuras sobre as sobrancelhas esboçadas é digno de uma escultura em mármore; lisa e leve.

O jovem das madeixas loiro-esverdeadas mira a dupla de lábios entreabertos e aceita sua perdição: são uma obra de arte à parte. Um par de pétalas da flor da paixão ardente, saturada a uma cor delicada; fruto polido com gosto de pecado, contrastando o retrato casto do anjo adormecido.

Entretanto, entre os dois, os pecados de doutrinas conhecidas não se aplicam, pois eis que um é a religião do outro. A adoração se dá pela mera batida do coração do devoto; pela sua mera presença e calor, ao passo que a única fieldade exigida é a de seus pensamentos.

Pecar, contudo, seria continuar vivendo como antes de encontrarem-se, e, como redenção, morreram para renascer juntos. Despediram-se das cargas de seus passados do topo de uma ponte, com evidência suficiente para que ninguém voltasse a desenterrá-las.

O ponto de partida remete a uma enfermidade. A doença do século atingira-os: a desesperança. Cada vez mais desacreditavam na humanidade e degradavam suas almas, corrompiam sua fé.

Em tempos sombrios, a fuga para o etéreo é uma tentação quase inescapável.

Seus caminhos convergiram. Cruzaram-se, enroscaram-se e amalgamaram-se.

Desintegraram os fortes as redor de seus frágeis corações e descobriram-se tão semelhantes quanto confortavelmente diferentes. De tanto visitar mares alheios, acharam terra firme. E, de tanto explorar, encontraram um porto seguro na presença um do outro – ou, se nada disso, pelo menos um náufrago companheiro.

Com o tempo, o amor dos dois jovens tornou-se o antídoto para o veneno em suas próprias cabeças. Porém, de tanto consumirem-se, contraíram uma dependência química da qual nenhuma reabilitação poderia algum dia curá-los. E, ao experimentarem o suficiente da abstinência da droga para reconhecerem o vício, já não tinham mais certeza das vantagens da sobriedade.

Então, eles pularam.

Deixaram o passado para trás e saltaram.

“Eles” pularam.

Essa é uma vida passada. Uma vida que nenhum dos dois escolheu; pecaminosa e incerta.

À nova vida não carregaram os mesmos erros, os mesmos defeitos – embora não haja defeitos em um ser perfeito aos seus olhos. Seria o ideal garantido a eles por dedicarem-se tão somente à sua religião, o amor que transcende qualquer limite material e humano – afinal, a humanidade está podre.

Decidiram mudar de cenário, mas esqueceram os freios. Em busca da sintonia inabalável, lançaram-se ao mundo, incorporando cada nova expressão e sensação às memórias conjuntas – o único livro sagrado o qual admite seu fanatismo.

Ignorância é uma bênção.

Nenhum dos dois tem problema algum em ser cego; vivem um sonho.

A silenciosa admiração estreita-se em antecipação quando novamente o corpo ao lado do garoto na janela se remexe e enfim anuncia seu despertar com um longo bocejo.

Depois de alongar-se da posição atrofiada, o mais novo abre os olhos e depara-se com o par de globos atlânticos de seu amante – dois planetas à parte. Seu rosto, retornando à atividade, imediatamente ilumina-se em um sorriso cortês, o qual se parte para dar lugar à voz macia:

— “Tudo no mundo é frágil, tudo passa...” / Quando me dizem isto, toda a graça / Duma boca divina fala em mim! / E, olhos postos em ti, digo de rastros: / “Ah! Podem voar mundos, morrer astros, / Que tu és como Deus: princípio e fim!”

O homenageado sorri, reajusta o amado em seus braços, volta a entrelaçar seus dedos ao conjunto correspondente.

— Não acho que eu seja sequer digno de comparação a um deus.

— É um poema que li um tempo atrás. — explica o garoto dos olhos castanhos — Na época, achei um exagero. Hoje em dia, me identifico com a autora.

— Quem?

— Não lembro ao certo. — suspira, diluindo a tensão de seus músculos enrijecidos no calor do mais velho — Nem me lembro do título, na verdade.

O outro assente com um murmúrio em tom de lamentação enquanto o parceiro volta a aconchegar-se em seu ombro. Ao apoiar a própria cabeça no topo das mechas cúpricas, o jovem de óculos rouba um olhar de soslaio à cidade reluzente na janela antes de juntar-se ao amante no mundo dos desejos inconscientes.

A dama negligenciada rejubila, concedendo sua bênção aos dois devotos.


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Notas finais do capítulo

Obrigado por lerem.

Qualquer semelhança com fatos e pessoas reais é mera coincidência......rs.

Kissus,