Arquitetura Humana escrita por Ana CS


Capítulo 1
Capítulo 1 - O Som das Segundas-Feiras


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura ^^



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/690616/chapter/1

Em mais uma manhã de segunda-feira, o sol levantava entre os prédios da zona central da cidade e chegava até um quarto limpo, organizado e estável no primeiro andar de um dos antigos prédios do subúrbio. Através da janela apareciam os primeiros raios de luz alcançando as luvas próximas ao parapeito, as quais começavam a aquecer para serem vestidas.

O baú branco, os bonecos de porcelana da estante, as cortinas, as cobertas, a penteadeira e o tapete... Tudo começava a refletir o calor branco do amanhecer e deixava de ter o aspecto azul e frio da madrugada. Como já era verão, o despertador teria que tocar antes para que as cobertas pudessem ser dobradas suficientemente cedo e evitar que ácaros ou aranhas vermelhas se infiltrassem.

Às 5h e 30min. uma mão surgiu dos cobertores e de lençóis impecavelmente limpos até desligar seu Paganini em um despertador no bidê, também branco, antes que o restante dos vizinhos acordasse, mesmo que a garota desadormecida desejasse apenas diminuir um pouco o a intensidade da música e continuar as tarefas diárias escutando-o. Então a mão da garota, por sobre o seu despertador, retornou pesarosamente para baixo das cobertas, de onde receou sair. Até que... um suspiro, e então ela já estava sentada sobre o colchão.

Respirou profundamente o canto dos passarinhos, e apreciou com satisfação o seu quarto quadrado, metódico e luzidio quando sentiu que o perfume do ar estava suave demais... Já passou uma semana desde a última vez que pusera o aromatizante? Precisava respirar não só o canto dos pássaros, mas também harmonia. Então se virou para o tapete, calçou as pantufas, em conjunto com o pijama, e ajoelhou-se próxima ao baú na frente da cama, que, com um rangido, abriu em companhia do seu surdo bocejo.

Spray, espanador, aromatizante de banheiro, sapólio, amaciante, álcool em todos os estados, água sanitária, esponja... Uma infinidade de cheiros no baú. Mas aquele dia era uma segunda, e segundas estavam inteiramente destinadas aos ensaios com a orquestra no centro da cidade e treinos em casa. Domingo, o dia anterior, era quando sua vida sofria uma severa organização em gavetas e limpezas profundas com soda cáustica ou qualquer coisa de dentro do baú. Por isso que aquela manhã estava mais suportável. Não tanto quanto a noite anterior, de domingo, claro, pois o pó se acumulou nos bonecos de porcelana apenas nas últimas 6 horas e a poluição da rua não entrou pela janela ainda. De toda forma, a manhã estava agradável. Faltava-lhe mesmo sentir o cheiro de lavanda. Só. Então pegou o vidro com o perfume, deixou-o sobre o bidê com o despertador, depois de fechar o baú, e já pôs a roupa de cama no cesto, destinado à lavanderia em duas horas. Resolveu não a dobrar.

Debaixo da cama, a menina puxou gavetas lotadas de travesseiros plastificados. Descartou, em uma sacola, aquele no qual acordou e já começou a desembalar um do estoque. Novo e alvo; inédito, liso e vazio, porque o Paganini já era o suficiente, assim como a música que Alice, a garota, tocava e compunha: seu único pertence não descartável, que tinha direito de ter cor. A música já era bastante colorida e completa para ter que dormir e sonhar em uma cama bagunçada com travesseiros manchados. Ela era a única que poderia ser tocada. A cama, a estante, o baú, os bonecos de porcelana e o quarto inteiro deveriam permanecer inocentes, especialmente nas segundas de orquestra, porque os sons é que deveriam ser experienciados, não o lençol que Alice alisava. Ele não merecia isso.

Percebendo que a cortina estava um tanto fechada, interrompeu seu raciocínio e abriu-a. A luz invadiu o cômodo ainda mais, quase cegando os olhos cor-de-mel da garota, que virou bruscamente em pedido de proteção. Não conseguiu ver a paisagem lá fora, interiorizando a preocupação, como sempre, e evitando o que era demais para seu olhar. Seguiria até as gavetas do guarda-roupa, trocaria o pijama rosado por um vestido mais sério, preto, calçaria os sapatos de salto, na gaveta debaixo, e se sentaria na penteadeira para finalmente estar pronta e prosseguir com as horas. Não havia tempo para distrações agora.

Olhou para o relógio da parede: 6h e 05 min, conforme o planejado. Abriu um sorriso tímido de satisfação ao lembrar que lhe restavam duas horas até o ensaio e sentou-se à penteadeira para os últimos detalhes antes de pegar o metrô. A pior parte das segundas, mas necessária... Dessa vez, como não queria destruir seu humor, decidiu a etapa mais tranquila: pentear o cabelo.

 Em movimentos leves, sentia uma dor suportável de saudade da mãe escovando-o há alguns anos. “Longo, macio, liso e castanho. Não precisa de muito cuidado para impressionar, não é?” — falou para si mesma em nostalgia, imitando a mãe, seguido de risos. Podia sentir as mãos quentes desembaraçando-o e ouvir a risada dela, que saudade lhe dá toda vez que sente a escova passando em suas mechas. Mechas que passou a detestar.

 Alice reconhecia que o cabelo era considerado “bonito” desde aquela época, e não gostava disso. Penteava para mantê-lo despercebido, já que todos sempre estavam penteados, contudo, ele era perigoso. Impressionava. E nada de sua aparência deveria impressionar. Um coque sempre é a solução para não atrair olhares.

Assim, abriu um pote na frente do espelho e começou a passar o hidratante na região próxima a seus olhos: atentos, abertos, sempre úmidos e assustados. Assustados com a textura do creme, espalhado cautelosamente; assustados com a falta de cor do hábito insosso; assustados com a temperatura fria e repentina quando posto sobre a pele; com o toque sutil das pontas dos dedos, que acariciavam ao redor dos cílios, cada vez mais próximos do reflexo de um olho medroso, que lacrimejava e tremia, mas intimidava, acima de tudo, por conhecer aquele toque como ninguém. Não era o toque de Alice. Pelo menos, o cabelo já estava preso.

Tampou o creme e trouxe a bisnaga ao lado para mais perto, inclinando um pouco a cabeça e deixando à mostra a cicatriz circular do pescoço. Odiava cicatrizes porque não podia simplesmente jogar na lixeira, enterrar ou queimar, como o travesseiro.  Precisavam fazer Alice lembrar, todos os dias, de que as suas lembranças poderiam se infiltrar nas cordas de seu instrumento e persuadi-lo a não ser preciso, a tocar por si, afinal, tiravam-na do controle.

As cordas corriam o perigo de rangerem, como a porta do quarto antigo, que não era simétrico e muito menos solitário. As notas não obedeceriam às indicações de força, nem de tempo, nem de tom, porque uma parte dela não obedecia. Não se tem domínio sobre espasmos, ritmo do batimento cardíaco ou das cordas vocais ao ouvir algumas memórias tocando a campainha em sua fenda. Portanto, basta não dar espaço a elas ou acesso a essa fenda. Nada que uma pincelada de base, corretivo e pó não resolvam.

Fechou a bisnaga e limpou os pincéis. Faltava-lhe o batom praticamente abandonado, que talvez tenha até esquecido de como usar. Não conseguia decidir o pior: ter que usar salto ou realçar o contorno da boca com um batom. O que a consolava, dessa vez, era a liberdade de escolher qualquer cor ao invés do vermelho escarlate típico. Tinha um dessa cor apenas porque ganhou de presente de aniversário de 18 anos do pai, mas preferia manter em um compartimento não visível, junto com o cabelo solto e a cicatriz. O batom vermelho sempre seria aquele sobre a penteadeira da mãe, não dela. Não era adulta para isso e nem queria ser. O rosa claro que escolheu lhe era mais confortável e estava em comunhão com o rosto sem precisar atrair todos os olhares para os lábios. Não gostava deles sobre ela. Eram perigosos.

Guardou o batom e, ao verificar seu autorretrato no espelho, acabou notando que o sol, atrás de si, estava mais alto em relação ao horizonte. Era tão diferente o bairro através daquela janela... Nada era claro, limpo, belo ou regular. As tintas de todos os prédios descascavam, inclusive do seu, mas da maioria dos apartamentos também, se é que eram pintados. Tudo era resultado do acúmulo de tempo, fendas, ventos, nós e chuvas, mas ninguém se importava.

 Famílias não protegendo os filhos do chão gelado, não trocando as telas das janelas e deixando os insetos invadirem a casa, passando fome e abastecendo a geladeira com litros de cerveja, abraçando e se tocando a cada 5 minutos, batendo nas crianças quando desobedeciam a uma ordem, compartilhando um mesmo espaço entre produtos de limpeza e o pouco de alimento que tinham... Até o sol lhe parecia diferente lá fora! Para não falar dos calafrios que sentia ao ver janelas cobertas com tábuas de madeira mal pregadas, teias de aranha balançando ou fumaça saindo de lugares abandonados e impregnando um cheiro horrível pela rua inteira.

Já eram 7h e 15min de acordo com o relógio, então alguma coisa que chega aos seus ouvidos e irrita os tímpanos com uma altura insuportável e um ritmo nojento seria reproduzida por alguma caixa de som aleatória em breve. Agradecia por já ter que descer e se afastar daquele bairro poucos minutos depois da imperfeição começar a soar. E ainda consideravam música...

Odiava viver no subúrbio, mas aquela era a única morada que podia bancar com o dinheiro das apresentações, principalmente pelos investimentos na faculdade de música, com transporte público, limpeza do apartamento, energia, travesseiros e etc. Naquele mesmo dia já iria gastar boa parte do dinheiro para se nutrir, diferente do restante da vizinhança, gastando com bebida alcoólica...

O barulho horrível começou a tocar. 7h e 24 min, 6 minutos para o metrô passar. Dando uma última olhada na janela pelo espelho, notou que esqueceu as luvas. Passou álcool em gel nas mãos, levantou-se da penteadeira, vestiu as luvas, fechou as cortinas por precaução, pegou o estojo com o violino, a carteira, os documentos, e girou a maçaneta, respirando o máximo de reserva de lavanda possível para seguir até o centro da cidade.

 Prestes a mostrar a beleza da música aos jurados da academia, que a aprovariam na apresentação de seu primeiro solo oficial. Estava perfeita. 5 minutos. Abriu, fechou a porta e, quando terminava de trancá-la, no corredor do prédio, ouviu estilhaços de uma garrafa a menos de 20 centímetros do seu ombro. Pronto. Começaram as discrepâncias no prédio-meio-cortiço.

— O que você pensa que está fazendo? Quase acertou a minha vizinha! O seu tempo já acabou, seu desgraçado. Eu preciso descansar agora. Tenho mais trabalho à noite.

Disse uma mulher, que olhava para baixo das escadas, de onde veio a voz de homem, claramente bêbado e insano:

— É assim que você trata quem paga o seu salário? “Desgraçado”... Sua mulher imunda. Nem para ser comida serve! Puta!

Alice começou a suar. Seus músculos se enrijeceram e os olhos tremiam de pavor. Iria perder o metrô, mas não podia... Perder o metrô implicaria não se apresentar. Passara o batom, estava de salto e ensaiara por semanas, mas não podia descer. Um homem louco estava no térreo, mas precisava descer. Era a sua única chance de sair daquele lugar horrível para sempre!

— Se você continuar insistindo, pode se preparar para lidar com a polícia local, que, acredite, não é nenhum pouco passiva. Você está assustando a garota! Já não basta me encher o saco, tem que atormentar todo mundo daqui também?

E homem saiu, cambaleando e esbarrando nos móveis do térreo:

— Até à madrugada, minha querida.

E a porta bateu. Agradeceria à mulher mais tarde. Agora ela precisava ir. Rápido. Mas ela se aproximou:

— Oi. Desculpe o transtorno, não vai acontecer mais. Rebecca. Sou nova aqui Você é a?

E estendeu mão. Tremeu ao cumprimentar, entretanto, podia, afinal, estava de luvas. Só não deixou de ficar assustada com a maquiagem borrada e os olhos estratosfericamente verdes dela.

— Nova síndica do prédio, já que o outro foi embora. Alice. Já tive notícias suas antes... Peço perdão pela pressa, tenho audições para um solo agora e não posso me atrasar. Vamos ter uma reunião para reestabelecer as regras no final dessa semana, e seria muito bom se participasse. Agora preciso ir.

— Ah, que incrível, você toca violino. Tenho algumas amigas musicistas também. Eu só sei dançar.

—Hm...

Alice olhava para as escadas atrás de Rebecca com ansiedade.

— Tudo bem. Vejo se participo da reunião, dependendo do horário. Boa sorte com as audições. Cuidado para nenhum canalha se encontrar com você. Lugar estranho para uma violinista. Estudante, ainda.

— Decisões de uma sonhadora. Encontramos-nos pelos corredores!

Alice viu Rebecca andando e enrolando as pontas do cabelo escuro até a porta do apartamento, mas não conseguiu enxergar o interior. Estava escuro demais... A maquiagem, o vestido rasgado, o cabelo bagunçado, as luvas, a meia fina e o pé direito do sapato. Tudo lhe era estranho, e mais misterioso ainda porque não repugnava como os moradores dos outros prédios.

De qualquer modo, não podia passar muito tempo parada no corredor. Já era o horário do metrô! Correu escada abaixo, quase tropeçando nos próprios saltos, sentindo o coque se desmanchar, o cabelo deslizar na nuca, as luvas deixando as mãos suadas e os dentes mordendo o lábio inferior devido ao nervosismo. Não podia voltar para o quarto e reparar tudo, porque um homem bêbado surgiu, uma garrafa se quebrou ao seu lado, uma mulher se mudou para o quarto da frente e ela perdeu o tempo reservado para contratempos.

Abria a porta do térreo, passando direto pelas caixas de correio, e saía. Cheiro de cigarro. Cheiro de maconha. Cheiro da poluição das fábricas. Cheiro de bebida alcoólica. E pessoas passando... Ignorou comentários e a “música imperfeita”, atravessou a rua e desceu mais escadas, até chegar à estação 23. Seu metrô estava lá, mas tinha que correr e encostar-se à multidão suada que o circundava se quisesse dizer adeus àquele bairro. Medo, palpitação, cicatrizes, cabelos... não podiam impedi-la de embarcar. Fechou os olhos e não sentiu mais o corpo. Quando finalmente embarcou no metrô, sentiu uma fisgada na boca que recobrou todos os sentidos. Gosto de sangue. Era vermelho nos lábios.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Espero que tenha gostado ^^
Em breve, postarei os próximos capítulos.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Arquitetura Humana" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.