Exposição de Weiss Guertena escrita por My Dark Side


Capítulo 1
Galeria Cinza


Notas iniciais do capítulo

A cada obra desta galeria cinzenta vocês encontrarão um pequeno pedaço, uma pequena dica de como certas obras surgiram. Muitas das mais famosas se encontram aqui, talvez por terem sido inspiradas em uma cidadela esquecida pelo tempo, apesar de ainda mencionada vez ou outra.
Nem todos os rumores serão mentira, nem todos serão verdade, cabe você a acreditar ou não neles. Preste muita atenção, pois as fofocas virão e junto delas nós abriremos seus olhos para um novo mundo.



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— Lalala lá... Lalalala lalalála...

O singelo cantarolar flutuava pelos corredores e chamou a atenção da pequena menina de quase dez, ela subiu as escadas para o último andar na ponta dos pés, se esgueirando e espiando por uma fresta. O cabelo castanho da cantora nadava no ar com os rodopios elegantes, a garotinha loira sussurrou encantada. A melodia era como a brisa da tarde, reconfortante e acolhedora. Os olhos da mais velha estavam fechados, ela andava descalça pelo assoalho áspero enquanto movia-se; o cantarolar amortecia, desbotando, transformando a luz intensa em branda, as últimas notas subiam ao ar conforme ela se esticava e inclinava para alcançar as estrelas difusas. Abriu os olhos, os cílios marrons cintilando e suas íris incandescentes fitaram o teto empoeirado.

A criança se perdeu e acabou fazendo a porta abrir ainda mais, chamando a atenção da dançarina.

— Oh, Marine. O que faz aqui? — seu peito subia rápido pelo esforço, mas sua voz mostrava apenas a mais genuína surpresa.

A loirinha sorriu sapeca.

— Eu vim ver você, irmãzona. — saltitou segurando a saia azul desbotada. — Lay, hoje é dia de feira, você pode ir comigo?

Olhos azuis, alegres como o céu de verão, inquietos e divertidos; pidona ela fazia-os ficar ainda maiores para que ficassem iguais aos de boneca.

— Como recusar?

Mari vibrou, elétrica e energizada. Foi correndo para as escadas se arrumar, Lay segui-a devagar, embaralhando-se nos próprios pensamentos. O suor na testa foi limpo com a ponta dos dedos, ainda sentia os fios grudados na nuca lhe incomodando, mas não poderia dar-se o luxo de um banho naquele momento, teria de postergar um pouco. Layd pegou os sapatos do chão e levou-os para baixo na mão, colocando-os apenas quando chegou a porta do jardim.

— Senhora Heiss, irei levar Marine para a feira, está bem?

Sua avó podava as roseiras, misturando-se entre as flores vermelhas e amarelas, cores tão quentes e estonteantes. Ela estendeu alguns ramos com um sorriso fazendo a pergunta costumeira, a qual indicava também a permissão.

— Vai me dizer se encontrá-lo?

— Como todas as vezes, vovó. — sorriu em despedida. — Até logo, vamos voltar para o lanche!

Sua irmã caçula já estava toda arrumada, o vestido verde escuro predileto com o laço azul no pescoço. Ela esperava na porta com uma cesta em mãos. O chapéu de palha em sua cabeça era velho, mas ajudaria a proteger do sol, sem falar que ele tinha o charme, as flores foram bordadas com esmero.

— Você quer mesmo ir, Mary?

— Vamos logo! — as risadas de Lay tintilaram enquanto ela abria a porta, libertando a menina.

As ruas arenosas, as conversas, a correria. Tudo dava vida àquela cidadela, elas foram cumprimentadas com acenos educados. Marine parou para conversar com quase todos que encontrou no caminho, ao menos para cumprimentar e desejar um bom dia.

O centro estava a cada passo mais perto, com ele viria a luta por quem quer ser ouvido, os comerciantes e fofoqueiros, conhecidos e turistas, a animação se tornaria tão intensa que se conter será impossível.

Principalmente porque ele estaria lá.

— Dy, estamos chegando! — a voz fina fez sua atenção voltar para a menina inquieta.

Ah... Como ela poderia esquecer?

O calor da transição de verão para outono fez ela rir, Mary parou abruptamente encarando a irmã dava risadinhas. Inconstante como o céu. Ora serena, ora agitada. As folhas das árvores sacudiram e se desprenderam lançando cores quentes no azul. Pessoas pararam e encararam, outras que conheciam o longo histórico excêntrico daquela família apenas continuaram a seguir suas vidas como se não lhe dissessem respeito.

Um homem em especial as percebeu e se aproximou. Sua roupa amarrotada com o número estranho, sem sentido para outrem; tornou-se uma relação direta quando se referiam a ele.

— Meninas! Há quanto tempo eu não vejo vocês por aqui. — ele acariciou a cabeça loira da criança, a mais velha havia retornado ao seu sorriso habitual quando percebera a aproximação do homem. — Vieram para a feira?

— Sim, e também para cumprir a promessa, se lembra?

— Como esquecer? — ele revirou os olhos, eram castanhos claros, mas a iluminação os deixava com uma cor próxima de caramelo. — Trouxe a boneca, Marie?

— Está na cesta junto das rosas. — ela levantou o objeto. — Eu não posso brincar com ela porque as outras crianças acham ela assustadora.

— Mas é claro! Essa é a sua especialidade, May, achar a verdadeira beleza nas coisas. Quer procurar alguma coisa na feira?

Não eram necessárias palavras, de qualquer maneira, a menina gritou animada, correndo pelas bancas. Os enamorados andaram lado a lado, ela olhou de esguelha para o rapaz e percebeu algo branco caindo da manga de sua blusa, suspirou olhando para o céu.

— Achei que os números fossem o suficiente. — divagou, capturando a atenção dele por um momento.

— Eu achei que negar fosse o suficiente.

Ela sentiu o tapa, controlou sua dignidade e manteve o passo, o orgulho gritava para que ela se afastasse dele, andando na sua frente. A referência não lhe era estranha, mesmo que fizesse parte de um passado relativamente distante sentia-se ultrajada por ele ter utilizado desta específica parte de sua vida. De suas vidas.

— Negar o que? — fez-se de desentendida.

Ele ficou mudo por mais tempo do que ela esperava, o que a fez virar a cabeça para observa-lo, os cabelos ligeiramente mais longos que o costume, criando uma franja desarrumada, os olhos manchados a encaravam da mesma forma.

— Você.

Quando a palavra soou, o tempo pareceu parar, tudo se moveu com lentidão, até ela sorrir e seguir em frente serenamente, com o corpo borbulhando de raiva.

— Adelaide, volte aqui. — ele a chamou, a pronúncia de seu nome completo foi suficiente para ela libertar a fúria aprisionada.

— Você acha que tem o direito de me chamar pelo nome? É mesmo um estrupício. — o discurso maldoso passou pela sua mente mas não chegou aos lábios, rindo nervosamente. — Por que? Vá! Grite ao mundo que tem uma louca amando você! Berre aos quatro ventos o quão obsessiva eu sou. Eu. Não. Ligo. — o nervosismo se transformou em uma gargalhada contida, seus ombros sacudiam. — Eu não ligo. Eu não ligo!

Os feirantes olharam por um momento, mas ao notarem o vestido vermelho a curiosidade foi reduzida, a dama das estações, tão louca quanto sempre fora. Tinham medo pela criança que sempre a acompanhava, talvez a loucura fosse contagiosa e a pobre menina fosse afetada pelo desequilíbrio da irmã. Algumas mulheres passageiras atreviam-se a pensar que eram uma família completa, o pai solitário de vestes estranhas, a mãe de riso incontrolável e a filha de olhos encantados. Estas eram as turistas, que sempre iam ou vinham com histórias em seus bolsos, fofocando e dando ideias para outrem. Talvez se transformassem em personagens de livros, ou, quem sabe, em pinturas? Eternizados com as cores de sua vida pública.

— “Cidade das Fofocas”... Acho que você contribuiu para grande parte deste nome, Laide. — ela se abraçou ainda mais alegre que antes.

— Tudo começou com o seu pai, querido. Não me culpe pelos erros alheios.

Ah, sim. Ele, os curiosos que ouviam não podiam negar a afirmação, principalmente aqueles que presenciaram a história. Família tão confusa. Poucos sabiam que o homem possuía um ouvido afiado para as histórias e delas surgiam muitas de suas inspirações, o descansar à janela trazia murmúrios, também comentários bisbilhoteiros, contribuindo para a infindável criatividade do artista.

— MANA! — berrou a criança do outro lado. — Eu achei!

A boca deles foi ao chão ao ver como num piscar de olhos ela podia se transformar em uma verdadeira dama, polida e elegante. Assustador.

Gizes de cera, papéis. Tudo o que a garotinha pedia, se bem que era tão artística quanto o tio, sempre tentava orgulhá-lo ao máximo. Já tinha escrito uma história completa, baseada em suas divagações ao observar outras crianças na rua a se divertirem, com seus “amigos”. A dama pagou por todos os objetos, sendo guiada pelo cavalheiro até a próxima parada: a casa dos insanos, como fora gentilmente apelidada.

Mal fechou a porta de madeira a Marina correu para o ateliê, a saia verde esvoaçando a cada passada, o casal ficou sozinho e se entreolhou.

— Desculpa. — ele pediu, ela assentiu, aceitando. — E obrigado.

— Você percebeu?

— Eu te conheço há alguns anos, não é difícil ver quando você se segura. — ele tirou os sapatos, deixando-os ao lado dos de Marie. — Como seria dessa vez?

Ela mordeu os lábios repensando nas palavras que cruzaram sua mente naquela explosão de ira.

Já não bastava ser estúpido para ainda usar essa camiseta?! Seis vezes tentou fugir, dois anos de benção, nove tentou se matar, por cinco anos esteve morto. Acha mesmo que alguém se importa com um mísero suicida? Acha mesmo? Pois saiba que ninguém aqui liga! Você devia mesmo é ter ido para o hospício ou já ter morrido.

É claro que ela não acreditava que as palavras poderiam ser tão detestáveis. Era diabólico como ela podia pensar desse jeito quando em um surto raivoso enquanto dizia amá-lo na frase seguinte.

Mas é por isso que ela controlou, porque ela o amava. Ela o encontrou nas seis vezes e o impediu, nos dois anos observou os sorrisos dele e como ele estava feliz com a família, nas nove vezes que tentou se matar, todas falharam — não era como se ele realmente quisesse morrer —, e nos cinco anos... ele vivia sem realmente ver as pessoas ali, perambulava, vagueava sem realmente existir. Foi desesperador para ela, que já o amava, mesmo que não tivesse dito nenhuma vez.

Quando fez quatro anos, ela se declarou e tentou colorir o mundo monocromático dele. A insanidade dela se tornou um conforto depois de alguns meses, principalmente durante a melhora, que ele tinha simplesmente vontade de largar tudo e desaparecer, transformar todos os pensamentos em verdadeiras ações. Como uma assombração, ela sempre estava lá, ajudando e atormentando. Uma presença constante que só foi notada naquele momento. Realmente uma obsessiva.

— Benjamin. — ela o chamou quando ele estava pronto para desaparecer na cozinha. — Perdão. — ele arqueou as sobrancelhas, os olhos dela estavam se enchendo de lágrimas, isso fez o peito dele se apertar.

Foi tão pesado assim?

— É claro.

Ele colocou as próprias compras sobre a mesa e começou a bancada, a hora do almoço se aproximava, a comida deveria ser feita.

Com uma harmonia silenciosa, cortavam os legumes e transitavam com os ingredientes sem a necessidade de trocarem palavras, ambos digeriam o peso das palavras jamais ditas.

— Weiss! A, pelo amor, não me diga que ainda está no ateliê! Seu filho está aqui!

Por cima do ombro as vítimas de fofocas encontraram a senhora entrando com sacolas berrantes, sendo seguida por um casal que seguravam crianças no colo.

— Não se preocupe, mamãe. Eu vou com o Canvas, ele vai gostar de ver o avô. Principalmente que a última vez que os dois se encontraram foi na ida ao circo.

— Vou ficar aqui na cozinha com a Palette, o cheiro de tinta é muito forte para ela.

— São nomes criativos. — Adelaide se pronunciou quando o jovem pai se distanciou.

— Tente adivinhar quem deu a ideia.

A conversa leve enquanto o almoço era feito, as mães falando sobre as crianças e o casal jovem divagando sobre o que poderiam esperar para o futuro. Quando o tópico se tornou o momento em que as esposas conheceram os dois sorriram e se encararam. O dia da primeira conversa estaria gravado em suas memórias.

Uma noite de primavera, ele não conseguia parar de tossir tentando tirar a água de seus pulmões, aquela fora a primeira tentativa falha, logo após fugir pela sexta vez. Levou um tempo até que notasse a menina encharcada ao seu lado, nas sombras ela ficava quase invisível, tendo as vestes verdes se misturando a grama e o cabelo a terra. Quando ele conseguiu visualizar sua silhueta ela gritou com ele, chorando. Indagando sobre sua vida, sobre os motivos pelo qual fugia, todas de maneira retórica, porque simplesmente não aguentava mais permanecer calada. Foi a primeira vez que ela ouviu a voz dele, não podia ficar mais feliz quando percebeu que fora um agradecimento.

Eles eram duas caixas surpresas, nunca sabiam o que viria a seguir, por isso toda a família se impressionou com a passividade do almoço. Diálogos sinceros e calmos foram trocados, um dia em que as mulheres mais velhas poderiam relaxar, sem temer o próximo movimento.

— Papai... você pode me levar na cidade mês que vem?

Alguns talheres foram derrubados, alguns engasgaram outros simplesmente se espantaram com a pergunta repentina, principalmente pelo modo como Marine referiu-se a Benjamin. Talvez fossem as fofocas fazendo a mente dela, provavelmente seus ouvidos aguçados teriam captado mensagens indiretas sobre a possível relação de sua irmã com o homem, na pior das hipóteses seria verdade, é claro que o sentido não se fazia presente, mas...

—Marie. — ele apoiou os talheres e colocou a mão no ombro da menina, as feições endurecidas e severas. — De carro ou de trem?

— De carro!

— Então vamos ter que sair daqui cedo. Eu vou te buscar ou a mamãe também irá? — ela se ajoelhou na cadeira, sussurrando algo no ouvido dele. — Oh... Então está certo. Mamãe, você não pode ir.

Adeline deu de ombros, só se importava com a segurança daqueles dois. Ser proibida de ir era algo que a deixava curiosa, mas tinha pensado em ajudar a avó durante a semana, visto que as folhas seriam uma dor de cabeça até a chegada dos flocos brancos gentis. Só teria de pedir permissão para que sua irmãzinha pudesse viajar, essa era a prioridade.

— Tem que pedir para a vovó, Marine.

— Agora?! — a mais jovem olhou para todos na mesa. — Já?

— Se você quiser, mas não precisa.

— Eu vou ficar mais com o titio! — ela desceu correndo de volta para o ateliê, Layd arqueou as sobrancelhas questionando qualquer um que se dispusesse a responder.

— Ele está almoçando lá.

A dama de vermelho relaxou, seus olhos pousaram por alguns segundos no homem mais velho na mesa, ele a encarava acusadoramente. Levantou-se, dando-se por satisfeita e começou a tirar os pratos da mesa. Algumas horas depois retornou a sua casa com a irmã em seu encalço, depois de horas de pensamentos cruzados e palavras trocadas, Marine finalmente conseguiu permissão para visitar a cidade.

As folhas de outono caíram e o chão ficou encoberto, a grama escurecia e se encolhia, preparando-se para hibernar. Levadas pelos ventos fortes, as folhas disseram adeus e os flocos brancos começaram a cair com suavidade, famílias agasalhadas, roupas de frio e lareiras acesas. O cheiro de madeira queimada e a alegria do ano que terminava, pessoas sorridentes, com frio e felizes, juntas. Enlaçadas.

A dama trocara seu vestido vermelho por um azul, nas ruas gélidas caminhava perdida. Há muito não viam o sorriso gentil e apaixonado em sua face, levando a acreditar que o homem a abandonou com sua loucura, outra que não fora vista era a irmã caçula. A família estava em ruínas, isso era notável. O sino do estabelecimento soou quando entrou, limpou as botas no carpete e tirou o casaco pesado, apoiando-o no cabideiro. Sentou-se solitária em uma das mesas à parede e pediu uma bebida quente.

O relógio andou, a cada minuto algo leve mudava no semblante da dama, primeiro foi a razão voltando aos seus olhos como se ela finalmente se recuperasse, então sua postura melhorou e os olhos brilharam. Ao findar da tarde seus lábios já continham um sorriso contido, leve e travesso. Cautelosos os que remanesceram no lugar observavam, alguns casais e solteiros, até mesmo os garçons tentavam captar o que se passava no silêncio isolado; preparavam-se antecipadamente para um ataque de sua loucura que havia intensificado com o período. Ao contrário do que se esperava, ela levantou, deixando as moedas e trocados para pagar pelas condolências tardias.

Ajeitou-se, já com a porta aberta pronta para desaparecer, virou-se olhando para cada um dos clientes e atendentes.

— Eu tenho um encontro. — o sorriso de pura extasia causou uma corrente de alívio e felicidade.

Mesmo que estas fossem suas últimas palavras.


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Notas finais do capítulo

Esta é a primeira das cinco galerias, esperamos que tenham apreciado a estadia, conseguiram reconhecer todas as obras? Para aqueles que veem o artista Guertena pela primeira vez, podem perguntar-me e darei-lhes uma breve descrição acerca delas.
A próxima galeria estará aberta na quinta-feira, sentimos muito pelo inconveniente. Até lá receberemos sugestões/críticas, tenham uma maravilhosa semana.



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