Fogo na Chuva - Drastoria escrita por Anne Almeida


Capítulo 3
Conversa




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Meus pés afundaram no meio da massa branca, era o primeiro passeio a Hogsmead do ano e eu me sentia impelido a ir. Sair um pouco, ver coisas diferentes das paredes do meu dormitório, das salas de aula e da Torre de Astronomia. Queria, ate mesmo, olhar outras pessoas, observar e avaliar suas reações a minha presença. Mas, mais que tudo, precisava admitir, desejava encontra-la. Depois de nosso beijo ela havia ficado ainda mais fechada em si, mas continuara frequentando a torre.

Era claro que aquele era seu lugar de fuga e agora era o meu também, eu era um invasor. Assim sendo, considerei natural que ela apenas correspondesse meus 'olás' e 'tchaus', quando chegava e partia, mas não permitisse que qualquer conversa emplacasse entre nós.

Às vezes parecia que cada gesto dela era uma resposta aos meus, se me aproximava seus ombros ficavam tensos e sua postura rígida. Se me afastava, ela relaxava. Às vezes, ainda, parecia nem sequer notar minha presença, sendo indiferente a tudo que fazia.

Já me habituava a seu jeito, nada de sorrisos. Suas vestes eram sempre compridas demais, clássicas demais e, visivelmente, caras demais. Na mão ela insistia em sempre ter um livro, apesar de nunca tê-la visto lendo. Já havia percebido que não eram sempre os mesmos. Tamanhos, cores e formatos diferentes.

Dispersei a curiosidade acerca de sobre o que aqueles livros falavam e assim como sobre muitas coisas sobre ela e enfiei as mãos no bolso para aquecê-las. Ao redor o frio ainda imperava, as camadas de gelo cobriam não apenas o chão, mas também os telhados e o topo das cabeças das pessoas que caminhavam por lá.

Em meio a balburdia e a excitação, e com o apoio das muitas camadas de roupa que vestia as pessoas não pareciam me reconhecer, não me olhavam ou puxavam conversa, mas isso nada tinha de intencional. Estavam ocupadas demais na sua felicidade para se interessarem na figura alta e esguia pela qual passavam.

Havia casais que usavam o frio como desculpa para ficarem os mais próximos possíveis. Havia crianças que corriam de um lado para o outro, olhando vitrines com os olhos brilhando, sumindo das vistas de seus responsáveis para depois aparecer com enormes risos e caras pidonas. Havia grupos de amigos que conversavam animadamente, riam e trocavam gestos que entre eles tinham seus próprios significados.

Também tinha uma ou outra pessoa que, como eu, andava sozinha. Estes andavam sempre rápidos, o que me fazia supor que alguém os esperava em algum lugar. E, de repente, também havia ela. Estava acompanhada do mesmo cara que eu vira com ela no outro dia. E, pela primeira vez, eu a vi lendo. Ela fazia gestos com a cabeça, parecia não dar respostas maiores a ele de que as fornecidas a mim e não tirava os olhos do livro que segurava em frente ao rosto.

Desse modo eles andavam devagar e parecia que ela estava sempre a ponto de tropeçar e cair devido a sua falta de atenção ao redor. Continuei caminhando, logo passaríamos um pelo outro, quando uma voz atrás de mim me fez virar.

— Que bom encontra-lo!

Era o ‘cara da toalha’, já não recordava mais seu nome, mas não importava. Voltei-me para frente e ia voltar a andar quando senti que ele colocava a mão sobre meu ombro.

Me virei novamente para fita-lo e perguntar o que queria. Foi quando eu vi estrelas. Ele enfiara seu punho no lado direito de meu rosto. Senti a dor latejar naquele ponto, mas, acima de tudo, eu estava irado. Não pensei sequer em usar a varinha, só queria dar o troco pelo que ele fizera.

Revidei. Enfiei meu punho naquela cara de babaca dele e senti os nós de meus dedos arderem com certo prazer. Ele não esperava que eu reagisse, principalmente tão rápido, e, num misto de surpresa e dor, cambaleou. Eu já me preparava para o próximo ataque quando a voz dela me parou.

— Já chega!

Fitava-me com olhos arregalados e sobrancelhas, bem desenhadas, muito juntas. Endireitei meu corpo e respirei fundo, tentando me acalmar. Vi seu companheiro nos fitar com desejo de arrasta-la dali, de perto de mim.

Outras vozes se aproximaram e ela me tocou, prendeu meu braço com suas mãos e me puxou, nos tirando dali. Seus pés andavam rápidos, mesmo afundando na neve e, depois de dobrarmos algumas esquinas, ela enfim desacelerou, mas continuou a me arrastar até chegarmos a uma área praticamente deserta do vilarejo. Olhou para os lados e quando se certificou que ninguém nos observava ou ouviria, comprimiu os olhos antes de me dizer:

— Você é um idiota!

Ainda tentava absorver aquelas palavras. Entender porque ela as havia me dito, porque me ofendera. Estava confuso e só quando se acalmou, me fitou e explicou.

— Você não percebe o que estava prestes a fazer, não é?

Ela não esperou minha resposta. Acho que porque minha cara dizia tudo. Não, eu não entendia.

— Você está por um fio. Uma linhazinha bem frágil, mais especificamente - disse-me ela - Muitos, tanto alunos, quanto pais, e até pessoas sem ligação nenhuma com a escola não concordam com a sua presença aqui.

Olhou novamente ao redor antes de continuar.

— Você está sendo constantemente avaliado. E sinto dizer - falou sem expressão que confirmasse - que todos esperam uma falha sua para jogar na cara da diretora que seu lugar não é aqui.

Ela estava certa. Todos aguardavam meu deslize e eu o cometera com muito boa vontade. Não consegui evitar o pensamento acerca do que poderia me acontecer se fosse expulso. Voltaria para casa e eu não queria voltar, conclui.

Quando me vi enviado de volta à escola desejava estar em minha casa mais que tudo, mas agora, que isso se tornava uma realidade palpável, eu assumia a verdade a mim mesmo. Eu não queria voltar.

Não queria entrar naquele lugar escuro e frio. Que me trazia tantas lembranças que eu optara por esquecer, mesmo nunca tendo esquecido de verdade. Nem mesmo a ideia de rever minha mãe me animava. Ela não era mais a mesma. Naquele lugar só havia marcas de nossa queda. De como nossa família fora lentamente minada. Estar em Hogwarts me distanciava disso. E mais, me aproximava dela. Dela e de seus olhos escuros que me fitavam.

Acho que foi neste momento que percebeu algo em meu rosto e voltou a falar. Do mesmo modo de antes, direta.

— Mas não se preocupe. Acho que você se safou... - ela tentava me acalmar - dessa vez.

Seus olhos fizeram nova varredura ao redor e depois ela continuou.

— Não havia muitas pessoas na rua. Se aquele garoto ficar na dele, e eu acho que vai, você passará por essa intacto.

— Por que você acha isto? - Na minha opinião, ele me ferraria assim que pudesse.

Ela me lançou um riso curto.

— Porque ele parece ser tão orgulhoso quanto você. Não vai querer assumir que apanhou.

Nessa hora senti vontade de rir. Aquela garota era esperta. Tinha muitas chances de ela estar certa. E eu esperava que estivesse.

Foi então que uma grande duvida surgiu.

— Por que você fez isso?

— O que?

— Porque você me ajudou?

Ela me fitou alguns segundos, depois as mãos vazias. Talvez se perguntasse o mesmo. E foi em meio a esse pensamento que me assustei ao vê-la se agitar.

— Oh droga! Meu livro!

Só então percebi que ela não o tinha mais em mãos.

— Preciso encontrá-lo - foi tudo que ela me disse antes de dar as costas e sair em passos tão apressados, que quase parecia que corria.

Minha única reação foi chamá-la quando já estava um pouco distante e perguntar quando ela se voltou pra mim.

— Qual seu nome?

Seu rosto expressou surpresa, antes de se suavizar e ela me responder.

— Astoria Greengrass.

Esperei ela se afastar um pouco antes de segui-la. Caminhava com mais calma, porém minhas pernas longas me ajudavam a mantê-la sob meu olhar. Não planejava atrair sua atenção novamente para mim, mas queria ver e saber o que ela faria.

Voltamos onde minutos antes havia ocorrido a briga e percebi que a reunião de pessoas, que se iniciara para ver a troca de socos, se dispersara. Sem minha presença ali, todos deviam ter percebido que não haveria mais nenhum show gratuito de luta livre.

O local estava praticamente deserto, as pessoas deviam ter optado por ficar definitivamente dentro dos estabelecimentos, pois andar pelas ruas se tornara, além de cansativo e frio, sujo.

A neve pisada, principalmente pelos estudantes de Hogwarts com seus pés ávidos, se tornara uma mistura de gelo derretido e terra, as pegadas se tornando poças de lama. Pés pequenos, grandes ou em formatos esquisitos, todos haviam passado ali, e aumentado a sujeira.

Ela andava tentando desviar de tais poças, porém suas vestes longas se arrastavam, manchando o bonito tecido, e quando chegou exatamente no ponto onde estivera antes, me impedindo de meter mais um soco naquele idiota, parou de repente, me levando a fazer o mesmo.

Fiquei olhando ela se abaixar, dobrando os joelhos e deixando as vestes ainda mais sujas, para pegar algo. Ela voltou a ficar ereta num gesto rápido, trazendo nas mãos um objeto que pingava gotas escuras. No seu olhar, havia desalento perante a visão de seu livro destruído.

Depois de alguns segundos daquela triste observação, enquanto as gotas ainda escorriam, sua atenção foi retirada do volume, assim como a minha dela, devido a aproximação do mesmo rapaz que estivera antes com ela.

Ele parou ao seu lado e também fitou o papel encharcado, disse algo que não pude ouvir, e se aproximou mais do objeto em suas mãos. Ela se virou para ele e respondeu algo, que novamente não pude ouvir, por mais que tentasse.

Eles ficaram em silencio por alguns segundos e quando ela voltou a falar, fitou o livro uma ultima vez, antes de lança-lo a lama de onde o havia recolhido. Saiu dali, caminhando em direção ao castelo, sendo rapidamente seguida por ele.

Esperei saírem de meu campo de visão antes de voltar a andar. Cheguei até o livro no chão e o peguei como ela fizera. Olhei para os lados e não vi ninguém. Juntei aquilo da melhor forma que pude, o guardei no interior de meu casaco e o fechei contra meu corpo.

Enquanto também fazia o percurso de volta a Hogwarts senti a umidade passar pelo tecido e me tocar, mas não me abalei. Fiz todo o percurso com uma lentidão calculada, como se de outro modo pudessem perceber o que fazia. Que carregava um livro velho, que não fazia a menos idéia sobre o que falava, e que estava destruído, muito provavelmente, sem chances de reparo.

Quando, enfim, cheguei a meu dormitório, fui direto para o banheiro. Tranquei a porta e puxei as veste para tira-las de meu corpo, tendo o cuidado de remover o livro antes e coloca-lo sobre o balcão da pia.

A água suja havia atravessado todo o tecido que separava o livro de minha pele, havia marcas irregulares de lama em minha camisa e meu casaco, até a gravata recebera sua porção de sujeira.

Entrei no espaço do chuveiro após me livrar do resto das roupas e me banhei, lavando principalmente o local onde aquela mistura me tocara. Poucos minutos depois saía da ducha, totalmente intacto. Me sequei cuidadosamente e enrolei a toalha em meu corpo antes de voltar a atenção ao livro sobre a pia.

Ele parecia ainda mais melado e sem condições de reparo que antes. Era estranho que isso houvesse acontecido. Livros normalmente recebiam feitiços que aumentavam sua durabilidade e lhe conferiam proteção, o impermeabilizante tendia a ser o primeiro a ser lançado em toda obra publicada, mas aquele sucumbira tão facilmente como se não fosse nada além de papiro comum.

Franzi a tez ao finalizar este pensamento, me aproximei do objeto e pela primeira vez o olhei detidamente. O livro tinha uma mancha no canto esquerdo superior que descia por um grande espaço até quase a base. Apenas um cantinho verde na direita inferior se mostrava seco.

 Queria descobrir o nome daquela obra, mas a inscrição, num relevo leve, estava ilegível, e nem mesmo, após tocar aqueles vincos e percorre-los com os dedos, pude identificar os dizeres ali presentes.

Uma coisa ficou clara para mim naquele momento: aquele era um livro trouxa. Não havia magia alguma ali. Fosse de proteção, ou qualquer outra. Ele estava ‘limpo’, se é que podia dizer isso de algo tão imundo.

Fiquei paralisado por alguns segundos. Pensando o porquê de uma Greengrass andar por ai com livros trouxas. Sabia que minha tez franzira ainda mais, pois podia vê-la através do espelho a minha frente.

Percebi que já me demorava demais no cubículo ao ouvir ruídos do lado de fora. Peguei o livro, passei a vista ao redor e com a toalhinha creme posta ali para secarmos o rosto, o enrolei. Antes mesmo de me vestir, eu guardava o livro e seu involucro dentro de meu malão, sem ainda entender o que fazia.


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