Contando as horas escrita por Liv Marie


Capítulo 5
Capítulo 5




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A lembrança que Facundo tem do quarto de Grace, logo que o acidente aconteceu, envolve a constante presença de uma porção de gente. Gente da rádio, do editorial, amigos, colegas de trabalho, flores. Com o tempo o número de pessoas foi caindo e caindo até que a única presença constante fosse a de Lola.

Esta manhã, Facundo encontra Grace sozinha. Qualquer que tenha sido o problema no dia anterior, nenhum sinal se revela permanente. Para o melhor ou para o pior, Grace continua em seu estado adormecido. Timidamente, Facundo se aproxima e pega a mão dela entre as suas. O calor de seu toque o surpreende. Passando uma das mãos pelos próprios cabelos, em um gesto que revela seu nervosismo, ele a cumprimenta.

“Ola Graciela, sou eu, Facu.” Ele anuncia desajeitadamente. “Estou aqui pra te tranquilizar. Você deve ter dado falta da Lola. Não se preocupe, ela está bem.”

A única resposta que ele recebe vem do incessante barulho das máquinas que monitoram seus sinais vitais. O som é enervante. Mesmo em seu silêncio, sem qualquer sinal de que esteja ciente de sua presença, Facundo se sente na responsabilidade de ser absolutamente sincero com Grace. Ela sempre provocou esse efeito nas pessoas e nem mesmo sua inconsciência parece capaz de mudar isso.

“Bom, acho que você já deve ter percebido, mas a Lola está muito longe de estar bem. Ela está com raiva, preocupada, frustrada. Ela está exausta, perdida, machucada. Tentando ser forte, mas falhando miseravelmente. Não que ela tenha qualquer intenção em admitir isso. Ela sente sua falta. Todos sentimos.” Ele acrescenta com suavidade e a margem de um sorriso triste. “Eu sei que nada disso tem sido fácil pra você. Sei que você está lutando. E consigo enxergar isso. Acho que eu só queria... Eu só queria te pedir pra continuar lutando. Mesmo se você estiver cansada, se parecer difícil demais, pense nas pessoas que te amam e que estão aqui, esperando por você. É um pedido egoísta, eu sei, mas eu quero que, acima de tudo, você pense na Lola. Ela te ama tanto. Tanto que se algo acontecesse... Não sei se ela seria capaz de se recuperar. Ela é teimosa, se faz de forte... Bem, você sabe melhor do que ninguém.”

Emocionado, a voz de Facundo ameaça desaparecer em meio ao silêncio do quarto. Ele suspira profundamente, procurando controlar suas reações. 

“Foi você quem estava no carro, mas é como se a Lola tivesse sido atingida também. Eu estou tentando tomar conta dela, mas Grace, você é a única capaz de salvá-la. Então, por favor, não desista, ok?” Com a voz embargada, Facundo de despede, depositando um beijo carinhoso em sua testa antes de sair.

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Ao despertar, Lola se encontra mais uma vez sozinha no quarto de Facundo.

O relógio sobre o criado-mudo indica a passagem de um par de horas e não sem um considerável esforço, Lola decide que é hora de partir.

Com o braço ela joga as pesadas cobertas para o lado e só então nota que está usando uma camiseta masculina que não lhe pertence e um par de cuecas boxer (que curiosamente também não são suas). Em outras circunstâncias isso talvez fosse motivo de constrangimento, mas no momento ela não poderia se importar menos.

Com um rápido olhar, Lola localiza suas roupas cuidadosamente dobradas sobre uma poltrona no canto oposto do quarto e sem cerimônia se põe a trocar-se. Ela está à procura de seus sapatos quando Facundo bate na porta do quarto e entra em seguida, carregando uma bandeja com café da manhã.

“Bom dia.” Ele a cumprimenta com um sorriso, feliz por encontrá-la acordada e de pé.

“Bom dia.” Lola lhe responde sem lhe dar muita atenção, ainda em busca de seus sapatos.

“Perdeu alguma coisa?” Ele pergunta intrigado.

“Meus sapatos. Não consigo encontrar meus sapatos.” Lola explica frustrada, coçando a cabeça.

“Bem, por que você não senta e toma o seu café enquanto eu me encarrego de encontrá-los?” Facundo sugere gentilmente. Só então Lola repara na bandeja que ele tem em mãos. Mediante o reconhecimento, seu semblante oscila, suavizando por um breve instante.

“Facu, você não precisava fazer isso.” Ela fala sem graça.

“Desculpe, mas eu não posso levar o crédito sozinho. A Íris e a Meli fizeram a maior parte do trabalho mais cedo.” A menção à Melissa é o suficiente para estampar o menor dos sorrisos no rosto de Lola apesar de seu atual estado de espírito.

“Onde está a menina?”

“Íris a levou pra escola.” Facundo explica enquanto cuidadosamente coloca a bandeja sobre a cama. “Anda, tome o café antes que ele esfrie.” Lola hesita por um instante, um suspiro preso em seu peito.

“Facu, eu sinto muito, mas não posso fazer isso agora, ok?”

“Lola, você precisa se alimentar.” Ele insiste, sem entender o real sentido de suas palavras.

“Eu não tenho fome!” Ela refuta com aspereza e imediatamente se arrepende de seu tom ao se deparar com olhos preocupados e ligeiramente surpresos pela sua reação.

Quando ela fala novamente, buscando justificar suas ações, seu tom é mais baixo, conciliador. “Olha, eu não tenho tempo pra isso. Agradeço a sua hospitalidade e o que você fez por mim ontem, mas eu tenho que voltar para o hospital agora. Não posso deixar a Grace sozinha.”

“Ela não está sozinha, Lola. Eu estive lá essa manhã e quando vim pra casa a deixei em companhia daquele rapaz da rádio, o Boogie.” Facundo busca tranquilizá-la e espera que sua argumentação seja o suficientemente razoável para ganhar-lhe mais algumas horas ao seu lado. Lola, no entanto, se mostra arredia.

“Facundo, eu aprecio o gesto, mas isso não é o mesmo. Além do mais--” O que quer que ela esteja prestes falar, as palavras parecem perder sua força no meio do caminho, quando Lola reconsidera seu desejo em cutucar velhas feridas.

Nesse instante ela lhe dá as costas, buscando conter sua natureza intempestiva. A última coisa que ela precisa é começar uma discussão nesse momento. Seu foco é, e precisa continuar sendo Grace.

Infelizmente, isso não acontece sem que Facundo perceba.

“O quê?” Ele instiga intrigado e preocupado. O receio de Lola, evidente em sua postura, apenas o compele a insistir. “Lola, o quê?”

“Eu não deveria estar aqui.” Ela declara com sobriedade e sua voz chega aos ouvidos de Facundo sem que ele possa ver a expressão em seu rosto, o que apenas dificulta a absorção de seu real sentido.

“Lola, eu te trouxe pra cá.” Ele constata ligeiramente confuso, uma resposta que lhe parece óbvia demais para que Lola não compreenda.

“Sim. Mas você eu preferiria que você não tivesse feito isso.” Ela se volta em sua direção e a seriedade de seus olhos castanhos é o suficiente para colocar Facundo em alerta, o café da manhã esquecido.

“Eu não entendo. O que você queria que eu fizesse? Te largasse na rua? No bar? Em uma esquina qualquer?” A preocupação de Facundo vai dando lugar à frustração pelo andamento da conversa e se faz cada vez mais presente em suas palavras. 

“Sim. Qualquer uma das alternativas!” Lola responde sem hesitar, deixando transparecer a raiva que até então deixou guardada. “Como é que você me achou, pra começo de conversa?”

“Isso não é importante.” Facundo desconversa, surpreso e confuso pela reação de Lola. “Lola, eu estava preocupado com você. E não sem razão, ou por acaso você já esqueceu que eu te tirei do meio de uma briga ontem?”

Dessa vez Lola lhe oferece um sorriso descrente.

“Você quer que eu te agradeça por isso?” Ela pergunta cheia de ironia e seu tom é o suficiente para que Facundo perca a paciência que lhe resta.

“Por que não?” Ele rebate na mesma moeda com um sorriso cínico. 

“Facundo, não se equivoque com a minha aparência. Eu não sou uma donzela indefesa, não preciso que você me resgate com seu cavalo branco. Ou sua bicicleta.”

“E eu por acaso não sei disso?” Ele responde impetuosamente, mas se arrepende com igual rapidez.

A mais sutil menção à pré-existência de Lola enquanto Lalo, um tópico ainda sensível aos dois, ainda que por motivos particulares a cada uma das partes.

O sorriso de Lola abandona seus lábios. Seu tom agora é frio, definitivo.

“Facundo, não é seu papel tomar conta de mim. O que acontece na minha vida não lhe diz respeito.”

“Desde quando?” Facundo pergunta descrente.

“Desde quando você deixou bem claro que não podia ficar comigo.” Ela responde sem se abalar. Ele suspira balançando a cabeça.

“Lola, essa é uma situação completamente diferente...” Ele tenta explicar, mas ela não permite que ele prossiga, interrompendo-o, impaciente.

“Não. Não é!” Ela declara com firmeza. “Quando você se compromete com alguém, é tudo. Na alegria e na tristeza, na riqueza e na pobreza, na saúde e na doença. Não é o que dizem os votos?” Ela o brinda com um sorriso triste a medida que sua raiva perde a cor. “Você disse não a tudo isso. No minuto em que você pôs um fim ao que a gente tinha, a nós dois, você fez a sua escolha.” A voz de Lola oscila, partida. “E essa escolha não fui eu.”

“Lola...” Facundo busca palavras que lhe fogem. “Não precisa ser assim...” Ele oferece, incerto. Nunca uma decisão lhe custou tanto.  

“Mas precisa sim.” Ela teima, embora sua voz escape quebrada. “Da última vez em que estivemos juntos você me disse que não podia suportar a situação em que estávamos. Agora, quem não pode suportar sou eu.”

“Mas Lola--,” Ele procura argumentar, mas mais uma vez ela o interrompe, cada vez mais irredutível.

“Facundo, por favor! Você não entende? Existe uma grande possibilidade de que eu esteja prestes a perder a única pessoa que eu tenho ao meu lado. Minha única aliada, minha melhor amiga. O que acontece se eu aceito o seu apoio, se eu me acostumo a te ter só pra depois te perder também, mais uma vez? Nós já sabemos que você não é capaz de ficar comigo. Que nós não temos qualquer futuro juntos. O que acontece quando a poeira baixar e você se lembrar de quem eu sou, do que eu fui?”

Pela primeira vez Facundo não é capaz de lhe oferecer qualquer resposta.

Ocorre que seu silêncio é toda a confirmação que Lola precisa.

Seus olhos localizam o par de sapatos vermelhos atrás de Facundo, ao lado do criado-mudo. Em silêncio Lola pega sua bolsa de cima da poltrona e passa sua alça pelo pescoço. Em seguida ela se dirige à saída, passando direto por Facundo e parando somente para recolher o par de sapatos do chão.

Ele permanece imóvel e tem Lola atrás de si quando recupera a voz. No entanto, Lola parece pressentir suas intenções, de modo que antes que ele tenha a oportunidade de dizer qualquer coisa, ela cobre o silêncio com suas próprias palavras.

“Você precisa me deixar ir.”

Sua fala é mais do que um aviso, um conselho, ou qualquer conotação que se limite pela presente situação.

É um pedido.

E também uma despedida.

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Continua...


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