Ela escrita por hellishness


Capítulo 2
(01) — Cara ou Coroa




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/689584/chapter/2

O mundo à minha volta não passava de um borrão disforme, cores e formas se misturando fora do meu campo de visão. Tinha plena consciência de que não deveria divagar desta maneira, não enquanto o professor disparava uma enxurrada de informações teoricamente cruciais. Meus colegas anotavam cada palavra que o homem dizia, como pequenos robozinhos, mas eu me ocupava de outro modo. O quê colocava no papel não era de ninguém, era meu apenas.

Era incontrolável meu desejo de extravasar, chegava a ser quase um impulso. Inevitável. Minha mão movia-se por conta própria, ajudando a caneta a colocar meus pensamentos mais íntimos, tão secretos quanto um arquivo confidencial, no mundo concreto. Dias e mais dias de angústias reprimidas me encarando, julgando silenciosamente. O objetivo daquilo tudo era tirar um peso das costas, renovar as forças e tentar entender o que se passa dentro da minha cabeça. Entretanto, sentia-me vulnerável, exposta, nua.

Por quê?

As paredes ao meu redor pareciam me espremer naquela sala, diminuindo, confinando, pressionando. Estava sufocada. As pessoas não tinham noção do quanto o ambiente escolar, pensado para ser receptivo, podia se tornar exatamente o contrário. Continuei escrevendo, agora com certo desespero, rasgando a folha com a tinta azul, tentando expressar o que não podia - o que não conseguia - falar em voz alta.

Nunca me senti tão sozinha em um local tão cheio.

 

Observava-a com o canto dos olhos, tentando não chamar sua atenção. Não queria interrompê-la. Parecia extremamente absorta em suas anotações, embora as rugas de preocupação que marcavam seu rosto demonstrassem que, seja lá o que estivesse fazendo, era muito mais interessante que Economia dos Países Emergentes.  Ela estava escrevendo, realmente escrevendo, algo cada vez mais comum durante e fora das aulas.

Era fascinante assisti-la, curvada sobre a mesa, os cachos castanhos escapando do coque bagunçado, a sobrancelha erguida e a perna balançando freneticamente. Era uma bagunça angelical, uma obra de arte, tudo tinha o seu lugar naquela visão. Sempre achei-a magnífica, desde a maneira como falava sobre seus interesses, cheia de uma paixão envolvente, até o modo como era possível ver as engrenagens trabalhando em seu cérebro durante os momentos de concentração. A cena diante de mim era uma mistura dos dois: estava tão longe do mundo que mal percebia seu corpo pulsando, vivo.

Linda.

Nossos meses de amizade fizeram com que eu entendesse um pouco do que se passava dentro de sua cabeça, mas era impossível driblar todas as barreiras que erguera ao redor de si mesma. Ela era uma garota quebrada, defeituosa, um belo desastre, e, eu, um garoto que apenas queria acompanhá-la em sua luta contra o universo.

Nunca imaginei que iria sonhar em ser um caderno, aquele caderno, para guardar seus pensamentos mais profundos. Eu o invejava por ser dela.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Ela" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.