Um minuto de liberdade escrita por Shelley


Capítulo 1
Capítulo único


Notas iniciais do capítulo

Espero que gostem :3



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O dia havia sido difícil.

Clarisse precisou ficar até mais tarde no trabalho atendendo um grupo de amigos que se recusava a sair cedo do restaurante – e a pagar os dez por cento –, o que a obrigou a fazer o caminho de volta para sua casa debaixo de uma tempestade. O uniforme preto e branco ponteado pelas gotas de chuva denunciava que ela não conseguira se trocar a tempo. A moça mantinha os braços cruzados na frente do corpo para proteger-se do vento gélido, com os ombros retesados e trêmulos combinando com as unhas e lábios azulados e nariz avermelhado por causa do frio. Um final deprimente para um dia desgastante.

O dia de Rosetta havia sido igualmente desastroso: a fada nutria uma paixão secreta por Cícero, um aldeão simpático do Reino do Leste, desde os seus quinze anos ou algo que o valha. O jovem descobrira sobre os sentimentos dela através de outra fada, o que resultara em um desentendimento entre os dois. Rosetta voltara ao Reino das Fadas, onde fora agraciada com insultos, risadinhas e olhares maldosos. As outras fadas gostavam de vê-la sofrer, ela sabia disso.

Aos cinco anos de idade, ela havia sido encontrada nas ruas do Reino do Norte pela rainha das fadas e criada por ela como uma filha desde então. Logo começara a aprender os feitiços mais simples, demonstrando grande facilidade quando se tratava de magia. Era talentosa e, sem dúvidas, era fonte de alegria para a mãe adotiva. No entanto, a garota também mostrara que era capaz de executar com perfeição até mesmo os encantos de dificuldade extrema e, ao mesmo tempo que enchia o coração da rainha de orgulho, fazia com que os das outras fadas fossem corrompidos pela inveja.

Não havia nenhum lugar para ir e um refúgio se fazia necessário.

Quando finalmente conseguiu chegar em casa, Clarisse encontrou um bilhete preso à porta com fita adesiva: “Volto antes das onze. Beijos mamãe”. Encharcada e presa do lado de fora da própria casa. Não poderia piorar. A jovem arrancou o pequeno pedaço de papel da porta e amassou-o entre os dedos como se aquilo pudesse aquietar a raiva que sentia. Retirou o elástico cor-de-rosa que prendia os cabelos castanhos em um rabo-de-cavalo desleixado e colocou-o no pulso esquerdo, deixando os cachos bagunçados caírem.

Rosetta havia saído do Reino das Fadas, voara o mais longe que conseguira até que começasse a chover. Ela havia vagueado por tempo indeterminado sob o temporal de um lugar que não conhecia. Com seu vestido lilás que deixava as costas a mostra, apropriado para as grandes asas finas e cintilantes projetando-se de perto de suas escápulas, que iam até a altura do topo de sua cabeça e desciam até se aproximarem-se da região lombar, os cabelos brilhando debaixo da luz fraca, aquelas belas ondulações negras descaindo até a altura dos seios e, por trás da franja que cobria parte do rosto, os olhos azuis. Seus olhos estavam inchados e vermelhos, as lágrimas uniam-se às gotas de chuva que vinham de encontro às maçãs rosadas.

A fada avistou, no entanto, um lugar que lhe parecia aconchegante: uma pequena casa de madeira construída em meio aos galhos de uma árvore, ao seu lado, uma escada, também feita de madeira. Rosetta se aproximou, fez uma mesura com os olhos e examinou os degraus antes de olhar em volta, confirmando que não havia residência alguma por perto. Deduziu que não possuía dono e subiu as escadas, sentando-se no piso de madeira fria. Um minuto sozinha, era apenas daquilo que ela precisava.

Enquanto isso, Clarisse estava escorada no batente da porta, quando se lembrou de um lugar que poderia protegê-la da chuva. Endireitou-se e caminhou na direção de um bosque que se localizava perto da cidade, se bem se lembrava, havia uma casa na árvore por ali, onde poderia esperar até que a chuva passasse.

Era exatamente como se recordava: uma casa de madeira entre os galhos de uma árvore, uma escada levando até a porta e um balanço pendurado em um dos galhos por cordas vermelhas. A moça subiu os degraus rápida e entrou ali, percebendo uma presença inusitada: uma garota com longos cabelos negros e asas cintilantes. Ela parecia triste, com a cabeça acomodada entre os joelhos dobrados, sem prestar atenção ao que acontecia ao seu redor.

— Você está bem? – por um segundo, esqueceu-se dos próprios problemas. Uma moça alada e melancólica não era uma visão comum, afinal. A fada encarou Clarisse por um segundo, estava tão supresa quanto a outra por perceber que havia chegado ao território dos humanos. Por fim, apenas balançou a cabeça positivamente, o olhar ainda vidrado na garota como se a temesse – O que houve?

— As outras fadas não gostam de mim – Rosetta falava lentamente, escolhia as palavras com cuidado e tentava não se expor demais. Não conhecia aquela mulher, era melhor não falar demais.

— Então você é mesmo uma fada? – perguntou inclinando a cabeça levemente para a direita em um gesto confuso. Ainda que tivesse deixado de acreditar na existência de fadas há anos, seriam seus argumentos eficazes diante de uma garota com asas claramente ligadas às costas bem à sua frente? – Por que as outras fadas não gostam de você?

A fada olhou para o teto da casa e ajeitou-se em seu lugar como se procurasse respostas. Ela nunca havia entendido o ódio que atraía, talvez por ser poderosa demais, querida pela rainha ou uma mistura das duas coisas; mas Rosetta não era invejosa, não importavam seus esforços, não conseguia compreendê-las. É claro que já havia suspeitado disso antes, tentara reprimir o próprio poder, seu objetivo tornou-se ser mediana, mas não havia dado certo, ao invés disso, as outras apenas ficaram mais felizes com a notícia de que a garota já não era mais tão extraordinária. Não a consolaram, nem mesmo se aproximaram, no lugar de palavras reconfortantes, haviam apenas risos e comentários maldosos.

— Eu não sei – disse por fim.

— Elas te fizeram alguma coisa?

— Elas falaram sobre mim – declarou – e riram de mim.

Clarisse sentiu um aperto no coração, a mão direita sobre o busto e uma expressão horrorizada. A moça tinha vontade de abraçar a fada, mas esta já parecia suficientemente desconfortável, então decidiu sentar-se ao seu lado, apenas oferecendo-lhe companhia, era o máximo que poderia fazer no momento.

— Por que elas fariam isso? – perguntou.

— Eu sou apaixonada por um rapaz e ele descobriu. Eu fiquei chateada e, quando voltei para casa, elas riram de mim – explicou.

— Sabe, algumas pessoas parecem ser más – Clarisse suspirou – mas, às vezes, elas estão só aborrecidas com a própria vida.

Rosetta ponderou por um momento, mas optou por não dizer nada sobre aquilo. Apenas sorriu para a garota e disse:

— Você é legal. De onde eu venho, dizem que humanos são maus.

— De onde eu venho, dizem que fadas não existem – a garota riu – Me chamo Clarisse, e você.

— Rosetta.

E, assim, a conversa se estendeu por algum tempo. A chuva havia passado e, por um breve momento, as moças se esqueceram dos eventos desastrosos pelos quais haviam passado durante o dia, riam juntas, trocavam conselhos e compartilhavam histórias que já haviam sido tristes. Por um minuto, sentiram-se como se tivessem se isolado da humanidade; por um minuto, sentiram-se livres. Todavia, o celular de Clarisse tocou, era sua mãe perguntando onde ela estava e quando voltaria para casa. A moça desligou para se despedir da nova amiga.

— Eu preciso ir – informou – mas podemos no ver de novo amanhã nessa mesma hora, o que acha?

A fada concordou com um sorriso e levantou-se junto da garota, que estendeu a mão para um “toca aqui” deixando Rosetta confusa. Ela riu e, ao recobrar o fôlego, explicou que aquele era um gesto comum entre amigos humanos, logo sendo retribuída pela outra. Desceram as escadas juntas e despediram-se à sombra da árvore, onde precisaram se separar para que fossem cada uma para um lado. Sentiam-se renovadas e o fato de que se encontrariam novamente tranquilizava as duas.

Os encontros entre as duas amigas tornaram-se diários. Aquilo lhes dava um motivo para sorrir durante os dias difíceis; é claro que não tornava os clientes mal-humorados mais legais, ou as fadas invejosas mais simpáticas, mas deixava qualquer situação suportável. No final do dia, tinham um momento especial para se sentirem livres da sensação de enclausuramento que adquiriam desde o nascer do sol. Os encontros na casa da árvore dava às garotas um minuto de liberdade e isso era tudo de que elas precisavam.

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Moral: "A amizade pode existir entre as pessoas mais desiguais. Ela as torna iguais.

Aristóteles


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Notas finais do capítulo

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