Flor da meia-noite escrita por Tha


Capítulo 44
XLIV – Um pequeno desvio para o inferno


Notas iniciais do capítulo

OPA, TUDO BOM? Voltei rápido porque estou de férias, não se acostumem.
Ah, e sobre o final do capítulo, entendedores entenderão.



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Amanhã e amanhã e amanhã
Arrastam-se nesse passo trivial dia a dia
Até a última sílaba do tempo registrado;
E todos os nossos ontens iluminaram para os tolos
O caminho até o pó da morte.

— William Shakespeare, Macbeth

Dias se passam. Ou pelo menos acho que são dias. Sinceramente? Não sei de mais nada agora. Perdi as contas e ninguém veio me buscar, acho que se cansaram, e não sinto raiva por isso, queria isso.

Entro em um pesadelo do qual acordo repetidamente apenas para achar um terror ainda maior esperando por mim. Todas as coisas que mais abomino, todas as coisas que mais abomino que aconteçam com as pessoas que amo se manifestam em detalhes tão vívidos que só posso acreditar que são mesmo reais. A cada vez que acordo, penso: Finalmente acabou, mas não. É apenas o começo de um novo capítulo de tortura. De quantas maneiras assisto a morte de Jason; revivo meus últimos momentos com meu pai; sinto meu corpo sendo dilacerado? É isso que o novo intensificador faz, cuidadosamente criado para atingir os locais onde os meus maiores medos se alojam em meu cérebro.

Passo a maior parte do tempo nessa cegueira dormente, submetida ao intensificador, sabem que é a única coisa que verdadeiramente me atinge, a única coisa que me para. Acho que devo estar me acostumando, não dói mais, não tanto. Meus carcereiros aperfeiçoaram a dosagem, usando-a para me manter inconsciente e produzir mais sangue, mas sem causar aquela dor que parece rachar meu crânio. Sempre que me liberto, vejo com a vista embaçada homens em roupas brancas, mas logo eles ajustam um botão e o dispositivo faz um zumbido novamente. Então a dor aguda se enterra na minha cabeça. Às vezes, ouço a voz de Darko, o verdadeiro Darko. Então a prisão se torna preta e vermelha, ambas as cores fortes demais para eu suportar.

Quando finalmente readquiro meus sentidos, fico deitada, imóvel no meu quarto/cela improvisado, esperando a sequência seguinte de carnificina visual. Por fim, quando não vejo ninguém, aceito que, por hora, tudo acabou. Dessa vez tudo brilha excessivamente, ainda que esteja levemente turvo, mas não caio de novo. Acordo de verdade. Embora meu corpo ainda esteja cansado e enfraquecido. Ainda estou deitada de lado, fechada na posição fetal. 

Um tubo atado à dobra do cotovelo do meu braço drena meu sangue até uma bolsa de plástico, daquelas que vemos em hospitais. Com cuidado, tiro a agulha de mim, o simples esticar de um braço requer um esforço enorme. São tantas partes do meu corpo doendo que nem vale a pena fazer um inventário, então rastejo até a parede, onde me encosto e respiro fundo pelo trabalho. Lenta, muito lentamente, consigo me sentar.

— Está aí? – Sussurro.

— Sim, nossa, como estava com saudades da sua voz – Jason responde.

— Quanto tempo dessa vez?

— Uns dias.

— O que andou fazendo?

— Fora me agonizar aqui dentro ouvindo seus gritos e não poder fazer nada, fico esperando o lanche.

— Que bom que está se divertindo – Tento rir, mas o esforço faz com que a sensação seja de lixas na minha garganta, então gemo de dor e escorrego para me deitar – Quero sair daqui – Sei que pareço uma criança dando um ataque de birra, mas não consigo evitar. Pensar que estamos separados por uns blocos de concreto parece algo impossível – Ele disse que deixaria vocês em paz, ele prometeu, especialmente você.

— Allyson, por favor, você precisa confiar em mim, vamos dar um jeito.

— Eu confio em você, mas... – O ar, a escuridão, a sensação pútrida ao redor: tudo me faz querer correr.

— Estamos juntos aqui, nada mais importa – Não consigo vê-lo, não consigo senti-lo, mas de alguma forma sei que estou segura.

As vozes voltam e me perturbar e as visões chegam sem aviso. O sofrimento é como afundar, como ser enterrada. Estou imersa em uma água marrom, cor de terra remexida. Cada respiração é um engasgar sem fim. Não há nada em que me segurar, nenhuma margem, nada em que eu possa me agarrar para emergir. Não há nada a fazer a não ser se entregar.

Entregar-se. Sentir o peso ao redor, sentir os pulmões sendo comprimidos, a pressão baixa e lenta. Permitir-se afundar ainda mais. Não há nada além do fundo. Não há nada além do gosto de metal e dos ecos de coisas velhas e dos dias que parecem escuridão.

— Eu já cometi muitos erros na vida, eu sei, mas achei o meu caminho de volta pra você. Já reparou que, não importa o que aconteça, eu sempre acho o meu caminho de volta pra você? Sempre, todas as vezes nessa vida e nas outras. Não importa que a gente sempre se perca, não importa que eu seja a antiga Allyson ou a nova Allyson.

— Tá dizendo isso porque não pode mudar quem é.

— Não Jason, estou dizendo isso porque não importa o que eu faria se nada disso tivesse acontecido, porque essa Allyson não existe, mas eu sim. E se eu parar de pensar em um lugar onde não estamos juntos, vamos parar de viver nele.

— Sabe que eu queria te beijar agora né?

— Eu tenho uma leve impressão – Sorrio e coloco a mão na parede – Queria te ver.

— É como em Game of Thrones, até que o sol nasça no oeste e se ponha no leste, até que os mares e rios se sequem, e as montanhas voem no vento como folhas – A voz dele é boa, um tenor forte com uma textura como algodão frio contra a pele. Você nunca adivinharia só de olhar para ele. Ou, não sei, talvez adivinhasse. Não ponho os olhos em Jason desde o meu aniversário e não sei quanto tempo faz.

— Não acredito que finalmente assistiu Game...

— Abra.

Ouço o barulho de chave na fechadura, o ronco de uma porta deslizando, mas a minha não se mexe. A compreensão chega um momento depois do que deveria.

— Não!

Eu me jogo na porta trancada, meus punhos dando batidas ocas contra o metal pintado de branco.

— Deixe-o em paz! Jason!

Do outro lado da parede, Jason grita de dor. Ouço o chiado fraco da arma de choque militar especial que Darko prefere usar para não sujar suas belas mãos. Ela tem uma porção de configurações, algumas das quais podem deixar uma pessoa inconsciente ou parar instantaneamente um coração. Já experimentei a primeira e vi a segunda, e a ideia daquele aparelho sendo usado em Jason me deixa louca, ele é apenas um humano, pode não aguentar. Grito o nome dele e me jogo na porta de repetidas vezes.

Darko aparece na janelinha redonda da porta da minha cela, e eu dou um salto para trás como se tivesse medo de que ele coloque a mão através do vidro e agarre meu pescoço. Não que ele precise fazer isso. Só de ver o rosto dele, sinto como se estivesse me esganando até a morte.

— Você pode fazer isso parar a qualquer momento – Ele diz.

Parece o mesmo de sempre. Duvido que eu fosse me reconhecer em um espelho, mas o tempo que ele passou no templo com feitiço o deixou intocado. A voz dele se suaviza, tornando-se algo parecido com gentileza.

— Só confie na sua mente e tome o controle.

Eu o encaro com olhos embaçados e em chamas. Jason está gemendo de dor agora, e não há nada que eu possa fazer, porque qualquer palavra acabaria com nós dois. Engulo em seco e sinto gosto de bile.

— Eu confio.

Darko parece triste e, meu Deus, eu o odeio por isso. Depois, ele inclina a cabeça e um dos Caídos faz algo que leva Jason a gritar.

Minha voz está rouca e as laterais dos meus punhos estão em carne viva por bater nas paredes quando Jason silencia. Minha mão começa a cicatrizar. Os passos pesados do Caído e os leves de Darko passam pela minha cela e, depois, o som vai sumindo.

Fico arfando até meu estômago se entender com o fato de não haver nada dentro de mim para vomitar e, depois, apoio a testa contra a parede fria e limpo a boca com o antebraço.

— Finalmente calou a boca – O caído que me vigia resmunga – Vadia louca.

A culpa me enche como chumbo e deixa meus movimentos lentos e cansativos conforme puxo o travesseiro e o fino cobertor de algodão da “cama” e me enrolo no chão frio perto da ventilação.

— Jason? – Suspiro – Está aí?

Silêncio. Ele me odeia tanto quanto eu me odeio agora?

— Jason?

— Acabei de chegar em casa, amor. Saí para pegar a pizza, o entregador está de folga hoje.

Eu desato a chorar.

— Ei – A voz dele está suave e rouca – Ei, tudo bem.

— Cale a boca! – Eu grito – Não tente me consolar! Acabei de fazer com que você fosse torturado!

— Shh, Flor, estou bem.

— Não está!

— Eu estou. Eu só...

— O quê?

Ele suspira.

— Eu só queria poder ver você, sentir seu cheiro de novo.

Eu corro para perto da parede, até estar apertada contra ela, e abro os dedos contra os blocos de concreto como se fosse ele que eu estivesse tocando. É bobo, e fico feliz por ele não poder ver, mas faz com que eu me sinta um pouco melhor.

— Eu também. Para amenizar, costumo pensar nisso como um namoro virtual.

— Lembra o tempo em que você me odiava?

Eu rio-fungo-soluço.

— Bem, você era insuportável.

Encosto a testa contra a parede e me deixo imaginar por um momento que é o ombro dele, quente e firme, ao meu lado.

— E você gostava

— Você é tão convencido.

— Ei, eu acabei de ser torturado por você. Controle o ego.

— Jason...

— Shh... Flor – Ele diz baixinho – Agora, diga para mim como você estava errada naquela época e como eu sou maravilhoso.

Ele é maravilhoso. E não merece isso. Nem eu.

Encaro o metal perfeitamente polido dá cama que deixaram pra mim e examino meu reflexo. A garota que vejo é, ao mesmo tempo, familiar e estranha - Ally; a Filha da Profecia; predadora; princesa de gelo -, e ninguém ao mesmo tempo. Ela não parece ter medo. Parece ser feita de pedra, com traços sóbrios, cabelos em ondas embaraçadas coladas na testa por causa do suor e um emaranho de cicatrizes no pescoço. Não tem dezenove anos, não tem idade nenhuma. Não é nephilim. Não é humana. Não é nada. Um símbolo no fosso, um rosto no anuário, a perdição de um ex Anjo, uma ladra... uma assassina. Uma boneca que assume qualquer forma, menos a própria.

— Eu vou matá-lo – Falo baixinho.

— É, eu sei.

— Não, estou falando sério. Eu estava disposta a cumprir o acordo, mas Darko não cumpriu a dele. Nós vamos sair daqui – Repito –, e eu vou mata-lo.

P.O.V. David

— Você tem que se lembrar – Insisto para Adam – Ela precisa de nós.

— Kaleesa tentou tudo por duas semanas – Ele sibila se enrolando na toalha mais uma vez – Acabei de entrar em uma banheira cheia de ervas, e nada, não faço ideia de onde esse esconderijo é, sinto muito.

— Se esforce mais! – Exclamo batendo na mesa e todos se assustam.

— David, fique calmo, por favor – Hazel se aproxima e coloca a mão no meu ombro – Vamos pensar em alguma coisa, seguir as linhas Ley de novo.

— E parar no meio do pacífico de novo? – Me desvio – Não, obrigada, e por falar nisso, foi uma bela hora essa que você escolheu para se tornar humana – Me viro para o loiro com sangue nos olhos, é impossível conseguir perdoá-lo – Mas da promessa que me fez você se lembra, não é?

— Quer me deixar pior do que já estou? É impossível! Não consigo olhar pra mãe dela!

— Desculpa Ka, não dá pra mim – Passo a mão pelo cabelo e saio em direção ao jardim da casa da Hazel e encontro Nick sentada na grama, ela encarava o céu escuro e rezava alguma coisa.

— Sei que fiz errado – Hazel se aproxima – Mas se não fosse pela Ava, tudo seria diferente.

— Eu sei – Suspiro – Me desculpe, fico feliz por ter conseguido o que queria, mas ela tá lá agora, e não quero nem pensar no que estão fazendo.

— Perdi minha melhor amiga também, não se esqueça disso – Cruzo os braços e sinto que ela parece cautelosa com o que vai falar – O que Darko te prometeu? Quando foi até ele?

— Antes do aniversário, quando Kaleesa tirou o feitiço, marcamos um lugar.

“– Se você pegar a Allyson de novo, se ela quiser ir, eu vou junto.

Qual o truque nisso?

Não tem truque, eu largaria tudo aqui pra ter certeza que a Allyson estará meramente segura, a faculdade, tudo — Insisto.

É isso que faz de você a melhor opção dela, sabe, é uma pena que ela não veja isso de uma vez, particularmente acho que ela está perdendo o tempo com o Jason, sei lá, não acha que eles já tiveram muito tempo pra namorar?

Toda essa energia e tempo que você gasta pra me colocar contra o Jason não tem efeito nenhum, isso não é briga de criança pelo último pedaço do biscoito. Quando a Ally escolher, e ela vai, o que vai importar no final é saber que ela está viva e feliz.

Ah, qual é, não vai sentir nem um pouco de remorso?

Eu já sinto muito remorso, mas isso não importa, desde que você morra quando tudo acabar.

Ah, esse é o espírito.

Temos um acordo?

Sim, nós temos um acordo.”

— Mas você não estava lá – Hazel adivinha e eu bufo.

— Fiquei de olho no Jason, como ela pediu, mas fiquei tão irado que depois de um tempo não liguei e fui beber tomando um ar do outro lado do armazém. Quando soube, já tinham levado ela e Adam estava lá parecendo um cachorro abandonado. Deus, estou com raiva de mim por odiar ele. Me sinto afundando, submerso.

— Ai meu Deus, é isso.

— O que?

— Quando amanhecer, vamos pegar um barco.

— Hazel...

— Sei onde ela está.

♕♕

No dia seguinte, Miriel hipnotizou um cara a conduzir o barco para seja lá onde Hazel queria ir. O nephilim não foi junto, pois ia cuidar dos outros. Então eu, Hazel e, infelizmente, Jason, embarcamos.

— A mesma coisa de dias atrás – Jason cruza os braços e bufa – Vamos voltar – Ele começa a descer para falar com o condutor, mas Hazel o puxa pelo cotovelo

— Ela não tá aqui em cima mesmo – Responde observando ao redor, finalmente entendo o que tá acontecendo – Tá lá embaixo.

— Como assim? – Jason se vira pra ela novamente.

— Você realmente não sabe? – Passo a mão pelo cabelo, captando o que ela quer dizer com isso – Chamam de Atlântida.

— Ainda não entendi aonde vocês querem chegar.

— Houve um “terremoto” – Explico – Muitas construções dessa parte da cidade vieram a baixo há muito tempo, dizem que ainda tem coisa lá, mas ninguém nunca explorou.

— Até agora – Hazel ri pelo nariz – Há uns anos uns caras do governo passaram muito tempo aqui, proibiram a pesca e tudo mais, disseram que era sigiloso, mas que tinha algo lá embaixo.

— Alguma coisa lá embaixo emitia algum tipo de radiação muito estranha, depois de algum tempo todo mundo esqueceu, mas pouca gente ainda vem aqui, por isso Atlântida.

— Eu quero saber o que tem lá embaixo? – Jason pergunta franzindo as sobrancelhas.

— As histórias dizem que é algum tipo de templo asteca, que pertencia à um povo chamado Nagual – Hazel diz gesticulando.

— Metamorfos?

— Homens Jaguar, caras com magia, mas não são bruxos, é uma mistura estranha com Caídos – Completo seu raciocínio – Tem a ver com as Linhas Ley.

— Então a Allyson tá lá?

— Eu não sei, nunca cheguei tão longe, mas provável que sim.

— E como entramos?

— Com a Kaleesa, só vai demorar um pouco, a magia daqui é realmente muito forte, talvez, precisemos de uma Convenção inteira para conseguir chegar lá embaixo – Hazel quase sorri, e eu consequentemente me animo um pouco.

— É melhor nos apressarmos – Jason diz e olha para a água, acho que como eu, deve estar imaginando o que se passa lá.


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