Beyond escrita por LanisDias


Capítulo 16
Adriano


Notas iniciais do capítulo

Oi povo! (De duas pessoas que leem e comentam). Muito bom postar outro capítulo para vocês. Bj!



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Senti algo nos ossos. Um vento frio assoprou fazendo o pelo da minha nuca eriçar. Já sentira aquela sensação antes, mas não havia nada nesse mundo que me preparasse para a sensação de vazio, medo e raiva que me atingia com força quando 'aquilo' aparecia.

Uma sombra se movia pelas paredes da casa velha. À luz fraca da vela eu não podia ver muito bem, mas não precisava. A sensação e os sons que ouvia bastavam.

O rádio chiava como se estivesse sofrendo interferência. A chama balançava com força como se uma janela tivesse sido aberta de repente. Mas eu sabia que não, sabia exatamente o que causava aquele desequilíbrio.

Fiquei encolhido no colchão velho, sem ousar levantar o rosto. Detesto admitir, mas estava com medo.

“Isso rapazinho,” sussurravam, “Abaixe sua cabeça, curve-se se for necessário. Você sabe muito bem que não pode fugir de nós. Sabe de quem é a culpa? Sim, você sabe. Dá pra ver a resposta dentro desses seus olhos cheios de lágrimas.”

— Saiam daqui! - murmurei. - Me deixem em paz!

“Há, há, há! Isso rapaz, tema-nos. É a única coisa que lhe resta. A sua amiguinha pode ajudar pessoas em dificuldade, mas você é um caso perdido.”

Brisa. Pensei em Brisa, provavelmente dormindo a essa hora. Ela poderia me ajudar.

Levantei-me do colchão retalhado e corri em direção à porta ignorando os múrmuros e chamados das sombras a minha volta. E quando comecei a correr ouvi os rugido indignados que ficaram para trás de mim.

* * *

Uma semana. Esse era o período em que eu estava sem dormir. Porque toda vez que eu entrava naquela casa velha, as sombras não me deixavam dormir. Sussurravam coisas, provocações, me condenavam. Por que comigo? Por que não com qualquer drogado alucinado por aí? E por que, mesmo depois que amanhecia eu continuava a ouvir as vozes que me assombravam?

E, bem... Eu tinha medo. Um medo irracional que tomava o meu corpo com tremores e calafrios. Uma sensação arrasadora. Não importava com quanta força eu tapasse os ouvidos. Os resmungos pareciam vim de dentro da minha cabeça.

As vezes eu não conseguia fazer nada, ficava ali, paralisado e trêmulo, esperando o sol nascer. Mas quando eu encontrava força o suficiente, eu fugia dali. Eu procurava qualquer lugar iluminado com um banco e lia a Bíblia durante a madrugada. Aquele livro era a única razão de eu não ter enlouquecido por completo.

Eu até achei aquela leitura chata no início. Mas agora, aquela Bíblia para mim era como um bote salva-vidas. Era a única coisa capaz de me fazer esquecer da realidade assombrosa que me cercava. E havia Brisa para me salvar.

Eu não contei a ela sobre as sombras. Apesar de todos os dias ouvi-la perguntar sobre minha cara de sono e sobre meus cochilos na escola. Eu temia falar a verdade e afastá-la. Não ter Brisa por perto era cair em um precipício de onde eu não sairia mais.

Saí da fila do lanche e fui em direção à uma mesa nos fundos. Minha cabeça parecia ter mil quilos, eu não estava a fim de conversar com ninguém. Me esparramei na cadeira e joguei o prato com os biscoitos sobre a mesa. Brisa e Gigabyte sentaram-se logo em seguida.

— Estão servidos? - perguntei em um tom claro de irritação.

Os dois se entreolharam.

— Muito bem, marciano – Giga disse. - Diga o seu nome e o que fez com o Adriano. Meu amigo nunca me ofereceria comida.

Brisa sorriu, mas eu continuei sério.

— Vai querer ou não? - bufei.

— Primeiro responda – dessa vez era a Brisa – O que aconteceu com você?

— Nada – resmunguei.

— Algo aconteceu para você ficar gentil assim.

Os dois continuavam rindo.

— Ah, eu sou muito gentil. Gentilíssimo, não sabia? - falei ironicamente. - Mas vocês vão querer a droga deses biscoitos ou não? - estava ficando irritado.

— O que você acha, Giga? - Brisa virou-se para o outro garoto. - Tem algo nesses biscoitos ou ele finalmente tirou uma nota acima da média?

Suspirei.

— Nem um nem outro – Giga retrucou. - Eu acho que aquela garota do terceiro ano B deu um oi pra ele.

— A Cristina? - Brisa perguntou.

— Não, a loura de olhos verdes.

— Cecília?

— Não, essa também não. Aquela que vive com o cabelo trançado.

— A Fernanda?

— É, essa mesma.

— Não sabia que o Adriano estava a fim dela – eles conversavam como se eu não estivesse lá. Ótimo.

— Ele não está, mas se ela desse só um tchauzinho pra mim eu acho que doaria todos os meus vídeo-games e mangás. E ainda queimaria toda a minha coleção de jornada nas estrelas. E pentearia meu cabelo de bônus.

— Bom – eu disse. -, então dê tchauzinho para essa sua ilusão. Ela tem namorado, e mesmo se não tivesse, as chances dela direcionar um olhar para você são mínimas.

— E daí? - Giga estava com um olhar sonhador. - As chances de Darth Vader ser pai de Luke Skywalker, salvar a galáxia derrubando o Império e ainda se tornar um espírito do Lado Iluminado da Força eram mínimas, mas isso não o impediu de fazê-lo, certo? - ele sorriu e continuou. - “Pois para Deus nada é impossível”. (Lucas 1:37)

— Estou falando sério, cara – falei. - Você não pode ficar achando que de um dia para o outro ela vai te dar bola. Daqui a pouco você vai ficar chorando com o coração partido.

— Espera – Brisa interrompeu. - Adriano está compartilhando seu lanche e dando conselhos amorosos. Será que eu estou testemunhando um milagre?

— Acho que está mais para um sinal do fim dos tempos – Giga disse e os dois caíram na gargalhada.

— Idiotas – murmurei.

— Bem – Giga falou sério, enquanto ajeitava os óculos. - É isso ou na realidade ele é mesmo um marciano e está usando psicologia reversa com a gente para acreditarmos que ele está brincando, quando na verdade...

— Ah, quer saber? Vocês já encheram meu saco o suficiente – disse, me levantando. - Vou ler a minha Bíblia, se vocês me permitem.

Dei-lhes as costas e saí do refeitório. Já não bastava a minha dor de cabeça, eu ainda tinha amigos para me zoarem. Fui até o banheiro e lavei o meu rosto com água gelada para afastar o sono. Àquela hora não havia ninguém nos banheiros. Me encaminhei para fora e passei na frente do banheiro feminino em direção à quadra de esportes quando escutei o ruído de um lanche mal digerido esbarrar de encontro à pia de porcelana. Mais um palito humano bulímico, pensei.

— Você está bem? - perguntei, batendo na porta.

— Me deixa em paz! - a garota gritou de dentro.

— Só quando você sair daí – respondi, montando guarita na saída.

Alguns minutos depois ela puxou a porta com força e saiu em disparada. Eu a segurei pelo braço.

— Me larga, seu anormal! - a menina virou-se para gritar comigo. Ela era linda, obviamente. Olhos verdes, cabelos louros e trançados, magra como uma modelo. Era a Fernanda do terceiro B.

— Você tem bulimia? - peguntei, espantado demais por aquela menina perfeita fazer aquilo com o próprio corpo.

— Vai, pode espalhar para a escola toda! - ela gritou com os olhos se enchendo de lágrimas. - É isso o que você quer, acabar com a minha vida! Pode contar pra todo mundo que eu sou uma descontrolada que não consegue ficar um dia sequer sem comer.

— Calma, calma. Eu não vou contar pra ninguém.

— Então me larga! Vai cuidar da sua vida!

— É que minha especialidade é cuidar da vida dos outros – eu tentei o meu sorriso sedutor, mas não deu certo.

— Me solta, seu abusado! - as lágrimas escorriam por suas bochechas.

— Primeiro você tem que se acalmar. Ou vai querer que alguém te veja nesse estado?

Ela relutou um pouco puxando seu braço das minhas mãos mas acabou fazendo que sim com a cabeça. Conduzi-a até a parte de trás das arquibancadas, onde eu me escondia para fazer minhas leituras, ou simplesmente ficar sozinho.

— Senta – eu convidei me jogando no chão de concreto.

— Nesse chão sujo? - ela fez uma cara de nojo.

— Suas amigas não estão aqui para julgar você.

— Não fale mal das minhas amigas! Elas não me julgam! Você é um idiota!

— Calma, garota! Eu não vou te fazer nenhum mal. Me fala então, por que você precisa vomitar tudo o que come.

Ela me olhava de cima com raiva.

— Você não sabe como é difícil.

— O que é difícil?

— Se manter no topo.

— Ah... - fingi me surpreender. - Pensei que era difícil não ter amigos de verdade.

— Você não sabe nada sobre eles! Você é um rejeitado, sem amigos, ninguém te conhece na escola. Ninguém quer ser você ou ficar com você! Porque você não é como eu!

— E o que você é? - falei, me levantando e quase batendo a cabeça nas estruturas de metal. - Uma garota que força o próprio corpo a ficar esquelético para fazer parte de um grupo de patricinhas populares. Para agradar o namoradinho que não quer a namorada com um pneuzinho. Eu sei muito bem quem você é! Uma infeliz, que quando estiver morrendo de desnutrição no hospital não vai ter nenhum dos seus amiguinhos para te ver.

Ela desabou em lágrimas. Cara, eu não sou bom com essa parada de ajudar...

— Desculpa - falei colocando a mão sobre seu ombro. Ela me abraçou e chorou até que esgotasse as lágrimas. - Não foi isso o que eu quis dizer – eu a afastei e olhei em seus olhos. - Fernanda, você é linda. Você não precisa de ninguém te obrigando a ser quem não é para fazer parte de um grupo. Tem alguém que te aceita com todos os defeitos no pacote e te ama mesmo assim.

— Quem? - ela perguntou, enxugando os olhos.

— Isso pode parecer bem dramático agora, mas é Deus. Ele te ama muito, e não precisa que você seja perfeita para te aceitar. Aliás, tem um versículo aqui que deve ter sido escrito para você.

Eu puxei minha mochila pra frente e retirei a Bíblia que Brisa me dera de lá.

— Achei – aproximei o livro do rosto. - “A beleza de vocês não deve estar nos enfeites exteriores, como cabelos trançados e joias de ouro ou roupas finas. Ao contrário, esteja no ser interior, que não perece, beleza demonstrada num espírito dócil e tranquilo, o que é de grande valor para Deus.” (1Pedro 3.3,4)

Ela me encarou intrigada.

— Você pode não ter entendido muita coisa agora, mas saiba que você tem muito valor para Deus. E se você quiser se convencer disso, venha comigo depois da aula para eu te apresentar uma pessoa bem convincente.

Fernanda deu um sorrisinho. O primeiro que eu vira naquele dia.

— Fica com isso – coloquei a minha Bíblia em suas mãos. - Esse livro tem me ajudado muito. Espero que tenha o mesmo efeito com você.

— Obrigada – ela segurou o livro contra o peito. - Eu... Vou indo. Pode ser que alguém esteja procurando por mim.

Assenti com a cabeça e a deixei ir.

— Muito bem, Adriano – vi a cabeça atrevida de Brisa aparecer entre os assentos de madeira da velha arquibancada. - Não tinha me dado conta de quanta bondade você esconde nesse coraçãozinho.

— Eu te avisei antes que sou muito gentil. - saí do seu campo visual, indo embora.

— Ei, espera! - ela veio correndo até mim. - Você deu mesmo a Bíblia novinha que eu te dei para aquela garota?

— Dei sim, que bom que você tocou no assunto. Eu preciso de uma nova de presente.

— E você acha que eu vou te dar outra? Nem pensar! Eu não tenho dinheiro, Adriano, se vira! - eu gargalhei com a ira da pequena anã. - Não banque o idiota, Adriano. Não vou te dar nada de presente!

Eu agarrei a garota furiosa e baguncei seus cabelos curtos. Ela entrou em erupção, se contorcendo toda para me bater, enquanto eu ria, me sentindo leve como em muito tempo não me sentia. Leve como uma brisa de verão.


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Notas finais do capítulo

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