Juventude Transviada escrita por Isadora Nardes


Capítulo 2
Capítulo 2 - Mariane


Notas iniciais do capítulo

Trilha: Hometown Glory (Adele) https://www.youtube.com/watch?v=BW9Fzwuf43c



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Abriu a porta de casa e jogou sua mochila no sofá.

  Sua mãe estava no computador, como sempre. Aquilo incomodava Mariane. Se ela ligasse para sua mãe as nove da manhã, quando Mariane estava no vôlei, sua mãe estaria no computador. As cinco e cinquenta da tarde, quando Mariane saia do colégio, no computador. As dez e meia da noite, quando Mariane enfrentava quadras escuras saindo do curso de inglês, no computador.

  Não que ela não trabalhasse. Ela trabalhava. Muito. Porém, desde que Mariane tentou se matar de fome durante o verão, a mãe passava muito tempo em casa, para “garantir que estava se alimentando bem”. Ou seja, vigiar a filha.

  Mas aquilo não adiantava nada. Os cabelos de Mariane estavam secos, ela pensava nas calorias todos os dias, todo tempo. Não sabia muito bem o que ia acontecer dali pra frente, sabia apenas que não queria ser daquele jeito.

  As vezes, cogitava em se jogar da janela. Mas não tinha coragem. Sabia que, apesar de tudo, sua mãe a amava e não ia suportar perde-la. Não conseguia ser tão egoísta assim.

  -- Mãe? – Mariane chamou. Vivia sozinha com sua mãe e três gatos.

  -- Oi – respondeu sua mãe, da cozinha. Mariane suspirou. Provavelmente fazendo comida. Aquilo a deixava nervosa. – Voltou cedo.

  -- É, ela nos deixou sair mais cedo porque tivemos uma prova hoje – disse Mariane.

  -- E como foi?

  -- Longo.

  Pelo menos nisso ela era sincera. Havia sido um teste exaustivo, no qual Mariane precisara de várias xícaras de café para se concentrar. Pelo menos, era inglês. Ela entrara no curso fazia alguns meses e não tinha tempo para mais nada.

  Estava cansada, mas não com sono. Queria se deitar e fazer absolutamente nada durante horas e horas. Talvez ver as nuvens correrem no céu, e, se concentrasse bem o suficiente, poderia ver as estrelas morrendo, milhões de anos antes.

  -- Está com fome? – sua mãe perguntou.

  -- Não – Mariane disse. Bom, estava sempre com fome, mas não queria comer. Na verdade, queria comer, mas não podia. Simplesmente odiava cada parte de si toda vez que comia. Cada caloria que ingeria era mais uma preocupação dentro de sua mente.

  -- Venha comer. Você precisa comer.

  -- Eu já comi.

  -- O que?

  -- Uma barrinha de cereal.

  A mãe de Mariane deu uma risada abafada.

  -- Nossa, que lauto jantar. Pare de frescura e desca aqui.

  Lá vamos nós, Mariane pensou. Toda vez que descia as escadas em direção a cozinha, odiava a si mesma um pouco mais.

  Entrou na cozinha e olhou a enorme panela, cheia de grão-de-bico que sua mãe havia preparado.

  -- Eu não quero, mãe – ela disse.

  -- Não tem essa de “não-querer”. Senta aí.

  Mariane sentou. A ansiedade crescia dentro dela. Não conseguia nem olhar para seu prato quando sua mãe colocou três conchas de grão-de-bico. Começou a contar mentalmente as calorias, os carboidratos. Pensou em tudo aquilo descendo pela sua garganta e se acumulando em seus quadris.

  -- Não quero – ela grunhiu.

  -- Você. Vai. Comer.

  Mariane fitou a mãe. Antes de ser internada, ela teria gritado. Teria se debatido. Já havia feito isso quando a mãe a obrigara a comer um pedaço de frango grelhado. Estavam num restaurante, e sua mãe ficara tão furiosa que a pegara pela nuca e berrara com ela. Haviam sido expulsas do restaurante e, desde aquele dia, nunca mais comeram fora.

  Mariane teria feito tudo de novo. Mas não conseguia. Não tinha mais forças para gritar ou para ouvir os gritos dos outros. Se pudesse, apenas desapareceria.

  Olhou para o garfo e estendeu a mão. Seus dedos tremeram. Ela espetou o grão de bico e colocou na boca bem devagar.

  Porra, ela pensou. Estava bom. Muito bom. Aquela era a pior parte. Desceu, quente, pela sua garganta. A aqueceu e a espancou por dentro.

  E ela foi comendo, devagar, sempre pensando na quantidade de calorias que estava ingerindo. E de noite! O pior horário.

  Quando acabou, uma raiva e frustração cresceram dentro dela. Ela não tivera escolha, além de engolir, mas sua decepção consigo mesma a fazia se sentir pior do que já estava.

  Levantou-se bruscamente da cadeira e saiu da cozinha. Subiu para o quarto, bateu a porta. Arrancou suas roupas. Antes de se enfiar debaixo das cobertas, olhou-se no espelho. Olhou para a sua barriga. Suas pernas fraquejaram, seus lábios tremeram, sua garganta se fechou.

  Ela correu para o banheiro. Levantou a tampa da privada e enfiou o dedo em sua garganta. Aquilo nunca funcionava para ela. Nunca. Ela tentava e tentava, repetidas vezes – nada nunca voltava. Parecia que seu corpo se recusava a obedecer.

  Antes que começasse a chorar, ela pulou na cama. Seu refúgio do mundo, mas não de sua cabeça. Memórias frescas voltaram. O dia da briga, o dia do restaurante. É claro que as imagens um dia iam ficar borradas, mas nunca completamente apagadas.

  Quando saíram do restaurante, com Mariane chorando e sua mãe bufando de raiva, haviam ido a um mercado de frutas. A mãe de Mariane entrara sozinha. Mariane ficara do lado de fora, encostada no muro, as lágrimas escorrendo. Amassava um folheto qualquer porque não tinha um cigarro para por na boca.

  Lembrava-se da horrível sensação de que nada, nunca, ia ficar bem novamente. De que o ar não entraria mais em seus pulmões. De que o pior não havia passado, mas também não estava por vir: ela estava bem ali, vivendo o pior.

  Diferentes pessoas passaram por ela naquele dia. A maioria delas perguntava: “Está tudo bem? Você quer conversar?”; outras “tem algo que eu possa fazer por você? Alguém que eu possa ligar?”. Mariane apenas fazia que não com a cabeça e fungava. Havia ficado desidratada de tanto chorar.

  Havia cogitado de ir para a casa de sua avó, mas teria de explicar tudo, e ela não queria. Queria apenas sentar-se em uma sala escura e silenciosa, onde poderia pensar em qualquer coisa menos em si mesma.

* *  *

Acordou na manhã seguinte com calor e vontade de não sair da cama.

  Levantou-se e, preguiçosamente, se arrastou até o banheiro. Ficou na privada durante cinco minutos, até que sua bunda começou a doer.

  Abriu a porta do seu quarto.

  -- Mariane? – ouviu sua mãe chamar.

  -- Oi – Mariane disse.

  -- Venha, eu fiz panquecas pra você.

  Mariane bufou. Estava decidida a não comer. Mas já havia feito aquela decisão inúmeras vezes, e nunca dava certo. Sempre havia alguém para enfiar aquilo garganta abaixo.

  Chegou na cozinha e se agachou para fazer carinho nos gatos.

  -- Venha comer sua panqueca – sua mãe disse.

  -- Não quero – Mariane respondeu.

  -- Você nunca quer, mas tem que comer.

  -- Eu vou comer uma maçã – Mariane disse.

  -- Só?

  -- Só.

  A mãe de Mariane suspirou.

  -- Quer saber? Não vou discutir com você. Você que se foda.

  Oh, fuck you, Mariane pensou. Não disse nada. Pegou sua maçã e mastigou em silêncio.

* * *

Na escola, as coisas ficavam melhores. Não havia ninguém para enfiar comida na sua garganta, ninguém lhe dizendo para ficar calma, ficar bem. Havia apenas aqueles momentos de súbita alegria, simplesmente por estar ali com pessoas que não se importavam se ela era uma garota estúpida e inconsequente. Contanto que ela aparentasse estar bem, tudo estava bem.

  Era aquilo que Mariane precisava, ás vezes. Era aquilo que ela normalmente queria, todo o tempo. Era ali que ela estava: sentada na escada, com Katrina, Danielle, Sarah e Thauane. O sol entrava pelas ventarolas e iluminava os sorrisos delas.

  De repente, as pessoas que ela conhecia, que apenas a aceitavam, eram as maravilhas do mundo dela. Sabia que eram aqueles pequenos momentos que ficavam na cabeça dela, para aliviá-la quando a dor era muito grande.

  O ar era espesso e opaco, ela amava ver todos vestindo shorts e saias curtas; era ali que ela se refugiaria quando as coisas ficassem muito pesadas para ela aguentar. Era ali que ela se manteria. Aquele lugar que ela construiria no escuro, quando o mundo lá fora se colidia. Quando lados opostos entravam em fusão. Quando tiros de borracha acertavam os que formavam os cidadãos; os mesmos cidadãos que gritavam que não iriam tolerar aquela merda, que não iriam aguentar, que iriam continuar unidos.

  E então, a poeira baixaria, os assuntos iam ficando esquecidos, cada um ia tomando seu próprio rumo e Mariane continuaria sozinha em sua paranoia.


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Notas finais do capítulo

Se esse capítulo foi mais profundo do que o anterior? Sim. Se a maior parte dos fatos foi retirado da vida real por experiência própria? Claro. Se eu vou continuar fazendo isso? Com certeza.



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