Registro Panorâmico escrita por Titi


Capítulo 30
Vangloriar




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Fomos até a quadra. O garoto ficou sentado na arquibancada, me olhando, até que falou:

—Que carinha é essa? O que acon... –Salamander parou de falar do nada. Puxou meu braço, me fez sentar ao lado dele e apoiou minha cabeça em seu peito. – Vamos ficar bem. O que está te aborrecendo vai passar... Tudo nessa vida passa, exceto Deus. Você não está sozinha. Tem a Ele e a mim. Você não vai ser completamente feliz aqui... Nenhum de nós vai, pra falar a verdade. Mas nós precisamos ir até o fim. Você vai conseguir, eu tenho certeza que já passou por situações piores... Só precisa aprender a transformar a dor que você sente em resistência.

—Sei disso... Eu não consigo.

—Já tentou?

—Obviamente.

—Tente de novo, porque quando você der o teu melhor, vai conseguir.

—Você deveria ser escritor de livros de autoajuda.

—Devo ter ajudado pra senhorita fazer esse tipo de zoeira. –me soltou.

—Vocês sozinhos de novo? Certeza que não são um casal? –Dewei foi adentrando o local e acendendo as luzes.

—Eh... Nós somos um casal. Eu sou um garoto e ela é uma garota. Ponto.

—E você? Por que sempre aparece antes de todo mundo? –questionei.

—Não gosto de ser o segundo nas coisas... E vocês estão atrapalhando essas minhas sensações de superioridade usando os lugares que estudamos pra ficar de namorico.

—Nem se pode ficar de namorico em paz hoje em dia, poxa... –Hebrom falou, levantando.

—Bestão! –o empurrei. Ele desequilibrou e quase caiu, mas eu o segurei. –Desculpa!

—Sem problemas... Eh. Mas... O que é namorico? Tem a ver com namoro, né? –perguntou.

O professor havia faltado, o inspetor declarou que seria aula livre, aí os alunos começaram a rebeldia. Poderia se dizer que a quadra ficou parecida com uma cracolândia. Quase nenhuma das garotas quis praticar esporte, mas a Raitz insistia em tentar convencê-las a jogar queimado. Eu não estava com vontade de fazer nada também, não sei jogar nada... além de verde.

À distância, eu vi Folk desafiar Salamander pra uma corrida. As provocações do garoto não faziam resultados... Até que o Hebrom aceitou, por um motivo que eu não consegui definir qual. Eles foram correndo, correndo e correndo.  O de olhos verdes perdeu, porém fez questão de sorrir e parabenizar o outro, que recusou e saiu dali com raiva... Realmente não vai ser hoje que vou entender o que se passa na cabeça desses dois em relação de um ao outro.

Fatos psíquicos de Hebrom

Depois de eu correr com o Folk e ele ficar bravo dizendo que eu deixei ele ganhar e que sabia disso, o Jamal quis jogar basquete. Chamamos o Wendy e acabou faltando alguém pra jogar. Me ofereci pra ficar de fora mas o Dreas não quis aceitar. Então eu procurei um quarto... Quésia não queria jogar.

—Anda logo, cara, só falta mais um pra gente jogar! –Wendel tentava convencê-la.

—Não, eu não sei jogar.

—E você acha que eu sei?! Vamos! A gente vai pegar leve com você.

—Caramba, que humildade... Deu até vontade de jogar e esfregar a vitória na sua cara... Mas eu prefiro praticar abstinência de micos por hoje.

—Aff, Qué-chan! Vacilona morre cedo, fica o aviso! –ele desistiu.

—Tem certeza que não quer jogar, Quésia? Da outra vez você não pôde e pareceu estar brava por isso... –persisti.

—Não, tá tudo bem. Eu assisto vocês jogarem.

—Certo então...

Ficamos uns poucos minutos procurando alguém, finalmente vi um que não parecia estar ocupado: Conrad estava parado na arquibancada, sozinho. Ele é o menino ruivo com sardas que estava com sono hoje mais cedo. Me apresentei e perguntei se ele queria participar. Ele disse que não sabia.

—Se você ficar aí, nunca vai aprender! Vamos? –sorri pra ele. Conrad se levantou parecendo que fazia muito esforço.

—Quem vai jogar?

—Eu, o Wendy, o Dreas e você... Se aceitar.

—Jamal Andreas, irmão da Chantal?

—Isso! Esse mesmo! Ótimo, você já conhece alguém! Então... Aceita? –perguntei e ele assentiu com a cabeça. Aeho!

—Quem joga com quem? –Dreas perguntou.

—Vamos eu e você contra o ruivo e o branquelo. –Wendel falou enquanto guardava o vídeo game na mochila e pegava a bola.

—Ah, não, cara! Isso não, por favor! Você joga extremamente mal e eu sou paraplégico, nós não vamos só perder, vamos ser humilhados! Eu quero jogar com o Hebrom. –Jamal reclamou.

—E os meus sentimentos? Como que ficam? Vou te ownar... Vai ver... –Wendy o fitou com olhos a ponto de fechá-los.

—Verei o que? O senhor perdendo, não é, Matsumura? Só pode ser isso. –a provocação entre os dois continuou.

O jogo estava divertido. Sabe quando um fica tomando a bola do outro e ninguém consegue chegar perto da cesta adversária? Foi bem assim. Nós estávamos começando a ficar cansados de correr. O Conrad ficava pra trás na maioria das vezes, então eu resolvi marcá-lo pra ele não ser excluído em nada.

Wendel finalmente chegou perto da nossa cesta, ele é muito alto, mas parecia ter certeza de que iria errar. Conrad estava quase dormindo em pé quando o Yamada fez um passe picado e a bola foi direto no rosto dele.

—Poxa, Wendy! Coitado! Assim ele nunca mais joga com a gente! –o Jamal falou quase que protestando.

—Você sabe muito bem que foi sem querer! E não é culpa minha se o garoto tá com lag!

—Eu sabia que não devia ter vindo jogar com vocês, estrupícios... –Conrad resmungou colocando a mão no queixo.

—Desculpe! Ahm... Acho que você não vai mais jogar depois disso... –eu disse.

—Acha mesmo?! Você é o que?! Retardado?! Descobriu isso sozinho, foi?!

—Ei, ei, ei, calma aí! Tudo bem você ficar com raiva de mim por eu ter te acertado, mas não desconta no Salamander, ele só tá tentando te ajudar.

—Tá tudo bem com ele? –Quésia apareceu.

—Eu fui acertado com uma bola DE BASQUETE, o que você acha?

—Menino, você se aquieta porque de marrentinho a minha vida já tá bem cheia! –ela o ajudou a levantar do chão. –Doeu, é natural ficar com raiva, mas isso daí já é TPM masculina.

Depois dela falar, ele não se atreveu mais a responder. Conrad não quis ir até a enfermaria, contou que estava bem.

—Tem certeza que não quebrou? –tentei chegar perto dele.

—Ih, sai fora, moleque!

—Ele só quer saber se você tá inteiro, para de ingratidão. –Qué falou.

—Desculpe, Conrad. –eu não estava me sentindo bem... Era por minha causa que ele tinha vindo.

—Não peça desculpas, Hebrom, você não fez nada. –ela não foi muito com a cara dele.

—Olha, nós vamos jogar ping-pong lá em baixo. Boa sorte com o cabeça-quente aí. –Wendel saiu da quadra.

—Melhor você não ficar perto desse garoto, ele não parece gostar de nós. –Jamal sussurrou discretamente pra mim.

—Se a gente largar ele agora, aí é que ele não vai gostar mesmo...

—Às vezes essa tua vontade de ser amigo de todos me cansa, Brom. –ele virou a cadeira e foi atrás do Wendy.

Fatos psíquicos de Quésia

Hebro, veio com aquela bondade natural dele para cima do garoto, só que a criatura era superantipática. Se achava autossuficiente pra tudo, chegava a irritar. Só que o Salamander não parecia perceber isso... Ele é meio bobo. Não sei como ele aguentou ficar jogando com esse inglório ocioso que acha superior.

O pálido até chamou o ruivo pro nosso tal estudo depois da aula. Nem me importei muito com isso, porque achei que ele fosse recusar. Porém, pra minha surpresa e desgraça, ele quis ir até a casa do Jamal estudar a Bíblia. Me deu vontade de brigar com o Hebrom só pra não ter que ir mais lá.

Depois eu parei pra pensar que eu também fui muito chata com o Salamander no primeiro dia de aula... Se ele não tivesse insistido em ficar perto de mim, hoje ou eu estaria sozinha, ou teria que aguentar a chatice da Greta e da Judith me ignorando e fingindo que minha presença faz diferença no meio delas...

—Você pode me levar até a casa dele direto? –o vagabundo ainda teve coragem de perguntar uma coisa dessas.

—Por quê? –o tonto do Hebrom ainda perguntou.

—É que eu moro muito longe daqui, se eu for pra casa e voltar, vocês já vão ter terminado de estudar.

—Onde você mora?

—Sabe a única fazenda que tem na cidade? Meu avô é o dono...

—Puxa, é mesmo longe! Você deve acordar bem cedo pra poder chegar aqui na hora...

—Pois é...

Eu podia jurar que as palavras daquele garoto ruivo foram tapas bem dados na minha cara... Ele poderia estar sendo educado para o próprio benefício, mas, de qualquer forma... Preciso parar de julgar as pessoas antes de conhecer... Ele pode até ser arrogante, mas não é preguiçoso. Ou talvez ele seja preguiçoso e mentiroso... Ah, dane-se. Descubro com o tempo.

Na saída o Hebrom não parava de reclamar que estava com fome. Até que o ruivo sardento de olhos acinzentados nos chamou pra falar com seu avô. Salamander começou a explicar para onde queria levar o garoto, então o senhorzinho respondeu:

—Ô! Fique a vontade! Não precisa ter pressa pra trazer ele de volta! Mas tem um pobrema... Eu não tenho dinheiro pra a passagem do Conrado.

—Sem problema nenhum! Eu pago!

—Ah, menino, muito obrigado! Amanhã eu lhe devolvo o dinheiro. –o idoso sorriu.

—Não precisa!

—Eu tenho que agradecer de alguma forma! Então... Qualquer dia desses, você vem almoçar lá em casa. Pode levar sua franguinha se quiser! –acenou pra mim. “Franguinha”?... Hã? Tinha apelido pior não?

—Não! –Conrad protestou. Por um segundo eu pensei que ele estivesse lendo meus pensamentos.

—Não o interrompa, fósforo! –uma moça aparentemente não muito mais velha do que ele apareceu logo atrás do idoso.

—Não se mete não, falou? A conversa ainda tá bem longe do galinheiro!

—Tenha mais respeito, Conrado... –o senhor ficou centrado.

—É Conrad, caramba, eu já disse que é Conrad! Misericórdia! Não é tão difícil assim! Já não basta eu ter que aturar essa...

—Nem ouse terminar a frase. –o velhinho botou moral.

Treta de família... Já sei como o Salamander sentiu quando briguei com o Edgar na frennte dele. Fingir que não está vendo uma coisa dessas é bem complicado.

Enfim, foi resolvido, o garoto iria conosco... E o avô do próprio insistiu em fazer um almoço pra gente na sexta-feira.

—Falando em almoço, compra alguma coisa pra comer enquanto o ônibus não chega, Hebrom. Você estava me enchendo a paciência por estar com o estômago vazio agora há pouco. –reclamei.

—Ahm... Deixa pra lá... Tem comida de graça em cada.

—Eu também estou com fome. Vai ter comida boa naquela espelunca que você chama de casa, não vai? –o garoto, nem um pouco mal-educado, perguntou.

—Vai sim! –o de olhos verdes respondeu sorrindo.

Nós fomos até o ponto e o Wenndel apareceu. O cara não parecia feliz de ter que dividir oxigênio com aquele ruivo. Deu pra perceber isso por ele preferir ficar num assento lá da frente do ônibus enquanto nós estávamos nos últimos. Hebrom fez questão de sentar entre eu e o Conrad.

Demorou um tempinho pra eu entender que o Salamander preferiu passar fome do que deixar de pagar a passagem da criatura. Não sei o que deu na cabeça dele de gastar dinheiro por causa de um ser humano tão petulante e chato.

—O que foi, Quésia? –Brom me perguntou.

—Nada... Por quê?

—Você tá com uma cara meio...

—Eu sou assim mesmo.

—N-Não é porque o Conrad vai almoçar lá em casa primeiro do que você, não é? Me desculpe! Se... Se você quiser, pede ao teu irmão. Eu acharia perfeito você ficar lá comigo...

—Vou perguntar!

O sardento olhava através da janela, como se fosse bom demais pra conversar com a gente. Acho que o Hebrom só atrai gente extremamente fofa ou extremamente irritante, não me parece ter meio termo nos conhecidos dele.

Quando chegamos no ponto perto da minha casa, eu desci correndo o mais rápido que pude e dei de cara com o Cortês, que me esperava na porta.

—Que pressa é essa? A ex namorada dele tá atrás de você por acaso?

—Não é isso! É que eu queria saber... Se eu posso almoçar na casa dele. –respondi ofegante.

Meu irmão abriu um largo sorriso e disse “Não.”. Deu um berro pro motorista do ônibus cair fora. A última coisa que eu me lembro de ter visto naquela situação foi o Hebrom acenando com cara de decepção.

Subi as escadas com raiva pra me arrumar logo de uma vez. Percebi que não daria pra ficar dentro de casa hoje sem me aborrecer com o Edgar.

Fatos psíquicos do Hebrom

Na hora do almoço, Conrad mostrou que realmente estava com fome:

—Não tem carne aqui?! Como que não tem carne?! Como é que vocês sobrevivem sem comer carne?! Ou vocês são pobres demais pra comprar?! –disse com as bochechas cheias de arroz.

—Com é que você sobrevive comendo carne? –meu irmão comentou olhando feio pra ele.

—Eu quero mais. –falou como se não tivesse escutado o Zac.

—Pode pegar, rapaz! –meu pai, sendo agradável como normalmente.

—Não dá pra ficar satisfeito só com isso. Ainda mais quando não tem carne. –o visitante estendeu o prato.

—Mamãe, ele parece nosso cachorro comendo! –Di apontou pra ele com uma colher.

—Dileã, tenha modos... –minha mãe parecia estar tentando se controlar pra não ficar estressada com ele. Ela sempre se esforça muito para ser educada.

Depois do almoço, escovei os dentes, tomei um banho rápido e já fiquei pronto. Conrad não parava de se olhar no espelho do banheiro e mexer no cabelo.

—Você está bonito! –falei.

—Escuta aqui, garoto, NUNCA me elogie assim na frente de ninguém.

—Ah... Tudo bem. –dei os ombros sem entender direito aquela raiva toda dele. –Vamos?

—Tá. To doido pra dar o pé desse buraco.

Quando fomos lá pra fora, encontramos o Wendel que estava vindo pra minha casa. Não pude deixar de cumprimentá-lo:

—Oi, Wendy!

—Yo, Brom... O que você tá fazendo com esse garoto aí?

—A gente vai pra casa do Jamal.

—Hm... Achei que ele só fosse almoçar na tua casa... Mas entendi... O Jamal chamou vocês dois?

—Na verdade...

—Cara, não me diga que você tá levando esse garoto sem antes avisar?!

—Esqueci...

—Ah, que seja, Dreas não vai parar de ser teu amigo por isso, não é? No máximo ele te dá uma bronca... É bem o jeito dele.

—Preciso pedir desculpas...

—Dá pra gente ir embora logo? Eu não estou nem aí se você brigar com aquele garoto ou não. Você me chamou para ir até a casa dele e é isso que eu quero fazer. –Conrad ralou.

—Escuta aqui, garoto que anda sempre no modo econômico, você tá indo como intruso na casa do meu melhor amigo, tenha o mínimo de respeito e para de agir como patife! –Yamada pareceu furioso.

—Calma, Wendy... Eh... A gente já vai. Desculpa pelo o que ele disse, acho que está ansioso pro estudo.

Meu pai nos deu carona até a casa da Quésia. Estava realmente muito calor e eu estava de terno... Minha mãe que tinha feito eu vestir aquilo e ainda arrumou meu cabelo de um jeito que eu não gosto. Fazer o que, né? A Qué achou graça de me ver daquele jeito. Perguntou se eu estava querendo interpretar o trabalho de Artes dela... Era realmente estranho alguém estar vestido assim numa temperatura tão alta... E no Canadá, quando fazia vinte graus, eu já achava que o mundo estava acabando... Um pouco exagerado, eu sei.


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