Registro Panorâmico escrita por Titi


Capítulo 23
Versão alternativa


Notas iniciais do capítulo

Bem, eu acho que três está bom por hoje. Eu só costumava postar mais de um aos Sábados, mas fiquei em dívida com vocês. Espero que se divirtam.



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O dia seguinte chegou. Só aí que o Salamander respondeu a bendita mensagem. Disse que queria falar comigo... pessoalmente. Disse que era importante, que era agora mesmo. Na praça perto da minha casa. Eu sei qual, mas não sei aonde é, não costumo sair. Uma que foi reformada pela prefeitura não faz muito tempo... Apareceu no jornal outra vez. Não me lembro o nome do lugar onde fica. Mas eu vou encontrar...

—Onde você pensa que vai? –Edgar me flagrou tentando sair de fininho pela porta da frente.

—Pra fora de casa, pra onde mais?

—Haha, muito engraçadinha você. Eu já esperava esse tipo de comportamento. Foi bem por isso que eu resolvi te deixar de castigo até segunda ordem. As pessoas daquela seita agem como se fossem boas, porque é isso que elas querem que você pense... É perigoso pra você, não quero que minha irmãzinha corra esse risco horrível, até porque eu sou um homem muito cuidadoso e eu nunca... –ele se virou e continuou o discurso... Eu aproveitei que ele não saí de casa enquanto ele ainda falava.

Agora eu preciso achar a tal praça o mais rápido possível. Eu pedi referências ao Hebrom... Mas não ajudou muito, já que eu tampouco conhecia as referências. O garoto perguntou se eu queria que ele me buscasse em casa, mas eu disse que preferia pedir informações pra quem passasse por ali.

Um velhinho disse que era só seguir o caminho contrário de onde eu vinha que eu iria achar... E não era que o tio estava certo? Não esperava que fosse tão fácil chegar ali, só alguns minutos andando e pronto. Encontrei o Salamander, ele estava com umas roupas mais “normais” pra alguém da idade dele e segurando a mão de uma menina... A irmã mais nova dele.

Corri em direção dos dois. Eles estavam com as bocas sujas de uma coisa roxa e com copos nas mãos...

—QUÉ! –ele quase pulou em cima de mim. –Saudades!

—A gente se viu ontem.

—Eu sei, mas eu só aprendi essa palavra hoje no dicionário. –me largou.

—Oi, Quésia! –a Di deu um sorriso bem largo e abraçou minha perna. Os dentes dela também estavam de uma cor esquisita. –Oferece pra ela também, irmão.

—Eh! Claro! Você quer açaí?

—Ahm... Depende... O que é isso? –quando eu perguntei, os dois fizeram cara de quem fica em estado de choque.

—Como assim você nunca...? Mas você é brasileira... Ah, espera... Vem cá, vamos resolver isso. –ele me levou pela mão até uma lojinha. Lá tinham potes com várias coisas. –Qual tamanho de copo você quer?

—O menor... Caso eu não goste...

—Tá... –ele pediu e eu não quis botar nada no meio, mas a Dileã começou a encher o saco e disse que se eu não botasse nada ia ficar sem graça. Hebrom dizia exatamente o contrário.

—O que é isso? –perguntei ao dono da loja, apontando pra um dos potes.

—Granulado de chocolate... Está escrito aí, não está? –depois disso eu comecei a colocar tudo o que tinha a palavra “chocolate” no meio.

—Assim ela não vai nem sentir o gosto do açaí.

—Ai, Hebrom, cala a boca! Deixa ela! Fica reclamando do jeito que ela faz as coisas! Assim ela nunca vai gostar de você!

—Ela já gosta de mim... Eu acho. –Salamander mostrou a língua roxa pra irmã, deixando os olhos vesgos e ela devolveu a malcriação com outra careta. Eles deviam estar achando que eu não estava ouvindo, porque quando eu parei de olhar de soslaio e virei, eles me deram um tchauzinho como se não estivessem dizendo nada.

Nós fomos pra fora, Hebrom deixou a irmã brincando no playground e sentou ao meu lado num dos bancos da praça.

—Esse troço é bom! –me referi ao açaí.

—Eh! Eu gosto muito!

—Percebi... –fiquei fitando a boca suja dele. Aquele roxo ficou fofo na pele branca azeda dele, ainda mais quando ele ria. Às vezes esse garoto age como criança... Talvez seja por isso que eu fui tanto com a cara dele.

—Quésia... –ele chamou minha atenção por eu estar olhando fixamente para seus lábios... Óbvio que isso me deixou constrangida, ficou parecendo que eu estava pensando outra coisa. – Eu te chamei aqui pra... Pra... Eu não me lembro.

—Ué... É sobre o meu irmão?

—Ah! Mais ou menos isso! É que... Você quer que eu pare de andar com você?

—O que você acha?

—Acho que você devia responder minha pergunta e ser direta. –Salamander ficou extremamente sério.

—Claro que não, Hebrom.

Você é meu único e melhor amigo nessa porcaria de vida...

—Tem certeza? Não vai te trazer problemas? Eu não quero te trazer problemas.

—Você só vai me trazer problemas se quebrar aquela promessa, seu idiota...

—Promessa? Eu não vou... Só se você quiser que eu quebre...

—Já disse que não quero.

—Ótimo. Eu... fico muito feliz por isso.

—Hm... O que você e a sua irmã estavam fazendo aqui?

—Ahh! Eu quase esqueci! Vem cá! –ele saiu me puxando e tirou a irmã dele do playground. –Lembra daqueles livros que a Delmara disse que nós iríamos entregar?

—Delmara? A mãe da bebezinha?

—Essa mesma.

—Lembro sim. O que há?

—TÃ-DÃ! –ele apontou pra um carrinho cheio de livros. –Eu e a Di viemos entregar os que sobraram aqui na praça! Você quer ajudar? São ótimos livros. Eu já li e tentei ler pra Dileã, mas ela ficava enrolando...

—Ficava nada! –a garotinha protestou.

—Essa coisa de enrolar deve ser de família... E, claro que ajudo, não tem nada pra fazer lá em casa... Eles são tão bons assim? Posso... levar um pra ler?

—ÓBVIO QUE PODE! –Hebrom deu um sorriso que pareceu que iria rasgar seu rosto.

Nem sei o porquê de aceitar a ajudar... Tava meio que na cara que aqueles livros tinham conteúdo religioso. Provavelmente a boa vontade deles me atraiu. É, deve ser isso. Também percebi que sempre que alguém recusava ou dava uma resposta grosseira, eles não desanimavam, como se o presente fosse a melhor coisa do mundo. Mas raramente alguém rejeitava, o livro era bonitinho e de graça... Brasileiros amam coisas de graça.

Quando os livros estavam quase acabando, um homem apareceu pedindo comida ao Salamander. Ele olhou na carteira e viu que não tinha dinheiro suficiente pra, ao que pareceu, alguma coisa importante... Mesmo assim, ele comprou alguma coisa para o moço não ficar passando fome. Fiquei olhando tudo aquilo de longe... A “seita” que ele frequenta, não pode ser ruim do jeito que o Edgar diz... O garoto nem voltou pra se gabar que tinha ajudado uma pessoa.

Hebrom disse que sua mãe tinha mandado uma mensagem avisando que era pra voltar pra casa, mas ainda faltavam alguns livros para serem entregues. Eu disse que eles podiam ir e eu ficaria entregando até sobrar só um, pra eu poder levar. Eles agradeceram, assentiram e se despediram.

Eu fui atrás dos dois, por ter esquecido de perguntar sobre o carrinho que ficaria comigo. Ambos não perceberam que eu estava bem atrás deles, vi Dileã perguntando o motivo deles terem que voltar pra casa à pé ao invés de ônibus. Seu irmão agachou e disse sorridente num tom que era só para ela escutar: “Um príncipe estava precisando de ajuda, mas é um segredo.”. Os olhos da garotinha começaram a brilhar e ela perguntou por que ele não a chamou para ajudar também. No momento em que o garoto iria responder, eu perguntei:

—Ei... Hebrom. O que eu faço com o carrinho? –o rapaz virou com cara de quem estava com medo de que eu estivesse prestando atenção na conversa e com ela um pouco corada.

—P-Pode ficar com ele até o tempo que quiser!

—Ah... Entendi. Até mais.

—Até... Fica com Deus, Qué... –ele coçou a nuca.

Fatos psíquicos de Hebrom

Agora eu estou tendo que engolir a possibilidade da Quésia achar que eu sou um egocêntrico... Eu sempre digo pra minha irmãzinha fazer boas ações sem se gabar, ficou parecendo que eu faço exatamente o oposto. Sempre digo pra ela que as pessoas que precisam de ajuda são príncipes e princesas... Mas isso não é mentira... Se elas são filhas de Deus, de jeito nenhum isso é mentira. Dileã entende muito bem o que quero dizer, eu já expliquei.

Eu digo pra ela que quando fazemos o bem e não fica espalhando que fizemos, Jesus fica feliz. Se eu disser que eu faço isso pra Quésia, aí, com certeza ela vai achar que me acho o tal e passo por bonzinho. Eu já sou muito zoado por me esforçar pra fazer coisas certas num lugar onde fazer o mal é comum. Quem mais pega no meu pé com isso é o Folker. Eu sei que sempre fui todo errado, mas eu mudei... Só que os meus conhecidos já me rotularam, me coisificaram. Eles parecem esquecer que as pessoas mudam. Eu mudei, mesmo que não seja tanto, mesmo que eu ainda tenha muitas falhas, mudei; mas eles me veem pelo que eu fui. Parece que meu passado fala mais alto que tudo...

Fatos psíquicos de Quésia

Consegui me desfazer dos livros sem muito esforço, por incrível que pareça, eu nem fiquei tremendo ou coisa parecida. Foi bem fácil! Posteriormente eu fui pra casa. O Edgar estava me esperando, furioso.

—Onde é que você conseguiu esse livro e esse carrinho?

Olhei pra ele com uma cara feia, não respondi e subi as escadas pra tomar um banho. Ele ficou batendo na porta e berrando algumas coisas, mas ignorei até ele parar. Saí do banheiro já de pijama.

—Já vai dormir?

Saí andando e entrei no quarto.

—Ah, então é assim? A mocinha madura vai deixar de falar comigo só porque não pode mais ver o príncipe encantado?

—Mr. Pendleton, avisa ao Edgar que é exatamente o que ele disse. –falei com o guaxinim de pelúcia.

—Você acha mesmo que essa infantilidade vai me fazer mudar de ideia?

—Mr. Pendleton, avisa ao Edgar que não é pra ele mudar de ideia, é só pra ele ficar irritado mesmo.

—Então você não quer mais o teu namoradinho, Quésia?

—Mr. Pendleton, avisa ao Edgar que eu não quero que ele se dirija a mim.

—Não precisa, “Pindoutom”, eu peço pra você passar o recado, relaxa, mano. Eu entendo o estresse que é cuidar de uma pirralha que não tem nem maturidade pra falar diretamente com os outros.

—Mr. Pendleton, pergunta o motivo do Edgar se achar mais maduro do que eu. Será que é porque ele também está falando com um guaxinim de pelúcia?

—Já chega, garota! –ele tirou o brinquedo das minhas mãos, todo fulo.

—Já chega, você! Olha que criancice! Me impedindo de ver um garoto só por causa da religião dele... Que você nem conhece!

—Quer saber?! Dane-se! Desde que você não pare de falar comigo, faça o que você quiser! Desde que você não me apareça com uma criança no colo aqui em casa, eu quero que se exploda! Eu não estou nem aí! Mas você não vai ter o meu apoio! Tá feliz agora?!

Não me contive em dar um abraço nele, mesmo que o tom de voz que ele tenha usado foi obviamente de rancor... E mesmo as palavras dele não terem sido das mais bonitas. Na situação, ele trocar ódio por indiferença foi ótimo.

—Não sei a razão de você estar toda alegrinha! Escuta aqui, eu não vou mais te levar à escola depois dessa, falou? Te vira!

—Tá brincando... Não está? –soltei ele do abraço.

—Há! Não. Eu tenho perdido dinheiro te levando pra escola. Você ir de ônibus seria mais barato. –fiquei de olhos arregalados, parada. Tentei fazer cara de triste, pra ver se ele se comovia. Edgar deu um longo suspiro e continuou falando. –Ai, mereço... Não é o fim do mundo, ok? Se eu não arrumar um jeito de economizar, não vai nem dar mais pra pagar a escola.

—Entendi... Mas eu não sei pegar ônibus.

—Pede pro teu namorado te ensinar, ele sempre fica no ponto aqui da frente...

—Você fala desse jeito e parece até que aprova eu gostar dele.

—Ele poderia ser pior...

—Cortês, tenta separar religião de pessoa, vai. Não é que uma pessoa esteja numa igreja que ela vai ser boa ou má. Quem faz o seu caráter é você, não o lugar que você está. Se você se deixa influenciar, o problema é seu.

—Eiiiiita! Tô passado! Quésia falando bonito... Nem parece mesmo a Quésia... Sai desse corpo que não te pertence! –segurou a minha cabeça e a sacudiu.

—Chato.

—Não, o certo é “Edgar”. Faleu? Valou. –saiu do quarto.

Passei o resto do dia lendo o livro que ganhei. Até que era interessante... Eu gosto de ver o ponto de vista das outras pessoas, deu pra saber mais sobre o que o Hebrom acredita. É tudo muito coerente, mas... Sei lá... Tipo assim... Havia o Céu... Tá... Tudo perfeito, tudo na paz, tudo bem. Deus apresentou Seu Filho, dizendo que ele devia ser adorado... A maioria dos anjos ficou feliz, mas teve um que não gostou muito da ideia... Ficou com inveja. Chamam isso de “mistério do pecado”. Pra mim isso não é tão misterioso...

Se existe o bem, existe o mal pra poder se opor. Do contrário, o bem não seria tão valorizado.. Mas enfim, aquele anjo, Lúcifer, começou a se questionar e fazer a cabeça dos outros anjos, dizendo que Deus era um tirano e que ele próprio comandaria tudo de uma maneira bem melhor... Deus deu várias chances pra esse anjo se arrepender, mas ele não quis. Deus preza muito a liberdade, pelo o que eu entendi... Então Satanás foi expulso com um terço dos anjos que estavam no Céu... Os anjos que acreditaram no que ele disse.

A história explica que Deus não acabou de uma vez por todas com Lúcifer porque se Ele fizesse isso, seria exatamente aí que os anjos acreditariam nas mentiras que foram inventadas e adorariam a Deus mais por medo que por amor... Quando Lúcifer caiu na Terra, ele tentou a primeira mulher a desobedecer a Deus e ela fez o mesmo com seu marido... Com isso, Deus fez o plano da redenção e deu Seu próprio Filho pra morrer pelos nossos pecados... Os anjos ainda tinham dúvida da bondade dEle até aí. Depois que viram que ao Lúcifer, o diabo, não poupar nem a vida do Filho de Deus, ele não tinha razão em nada do que havia espalhado. Então Satanás foi derrotado, mas agora ele quer afundar o máximo de pessoas consigo.

Uma coisa que eu não entendi foi o motivo de Deus deixar o capeta fazer um monte de bagaceira aqui na Terra... Eu sei que tem alguns casos que são culpa dos erros humanos... Mas eu quis dizer nos outros casos. Por que Ele permitiria que Seu povo sofresse tanto? Tá aí... No mesmo momento que eu fiz essa pergunta, eu li a resposta... Deus permite que isso aconteça pra que o diabo revele o verdadeiro caráter do pecado e o que isso faz com as pessoas... Você pode escolher fazer parte do lado que quiser, mas vai encarar as consequências depois. Tudo o que está acontecendo... Faz sentido... Isso é, teria, se eu acreditasse numa coisa dessas...

Eu já ouvi tanta coisa, mas nunca parei pra refletir. E esse vazio que todo mundo tem? Será que fé é a resposta? Todo mundo precisa acreditar em algo... Eu não faço o tipo de tem que ver pra crer. Pra mim, basta fazer sentido. Se minhas dúvidas forem completamente sanadas, eu consigo acreditar, se quiser... Só que agora, não sei se quero me arriscar. Só sei que quero ouvir mais sobre...

Se essa história sobreviveu durante tanto tempo, deve ser porque alguma coisa nela tem... Eu quero saber mais sobre o assunto, quero saber quem é esse tal Cristo... Não quero depositar minha confiança em bens materiais. Eu já faço muito tentando confiar em outros humanos, porque existe muita falsidade... Se essa tentativa de fé em Deus não der certo, no mínimo, eu tenho que admitir que foi um bom mito.

Quando eu terminei, já estava de noite. Até dormi com aquele livro na mão.


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Notas finais do capítulo

Existe algo que é capaz de preencher o vazio que há na nossa alma... Aliás, Alguém.



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