Blackbird escrita por Porcelain


Capítulo 1
Capítulo Único.




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Kurt tinha oito anos quando roubou uma Barbie de sua prima. Não, roubar não.Resgatar, como ele próprio havia dito. A pobre Barbie estava em condições precárias; seus cabelos loiros agora possuíam um corte horrivelmente assimétrico, e a ausência de roupas no corpo de plástico duro exibia tatuagens largas e malfeitas por toda a extensão da perna. “Calma, vai ficar tudo bem”, Kurt dizia a ela. “Aquela louca não vai mais te maltratar”. Ele consertou o corte com uma tesoura, transformando-o em um belo Chanel. As tatuagens logo foram cobertas por uma meia-calça que ele próprio havia costurado, assim como o restante das roupas. Ele não soube dizer o porquê, mas achou que um sobretudo preto combinaria com a boneca, e por essa razão rasgou um pedaço de um antigo vestido de sua mãe para costurá-lo e rezou para que ela não descobrisse.
Ele correu para mostrá-lo até Elizabeth, sua mãe. Ela assistia algo na televisão, segurando entre suas mãos pálidas uma xícara de chá. Era uma apresentação dos The Beatles, Kurt os reconhecia por causa dos cortes de cabelo. Os olhos profundamente azuis, dos quais Kurt herdou, pararam sobre ele enquanto ele se aproximava.
         — Olhe, mamãe! Stefani agora é uma lady. — Ele exibiu a boneca com um enorme orgulho, balançando-a na frente de sua mãe. Ela tomou-a nas mãos, deixando a xícara sobre o braço do sofá cuidadosamente.
         — Stefani? Esse é o nome dela? — Questionou com um sorrisinho, e Kurt assentiu. — Onde a encontrou?
         — Foi resgatada. Estava sendo mantida em cativeiro como uma prostituta pobre e miserável. Mas eu a salvei, e agora ela é a dona de um salão de beleza chamado Moulin Rouge. — Kurt disse. Conhecia o nome “Moulin Rouge” por ter visto o filme de mesmo nome, que havia acabado de estrear, com sua avó.
         — Burt, já disse para não assistir essas séries policiais quando Kurt estiver por perto! — Ela gritou, levemente irritada, para que o marido a ouvisse. Kurt, como ela sempre soube, era uma criança delicada. Não combinava com ele as palavras“cativeiro” e “prostituta”.
         Ela deslizou levemente os dedos sobre os cabelos curtos da boneca, brincando com eles. Os olhos azuis pareciam entristecidos, e Kurt imediatamente percebeu o porquê da súbita decepção quando olhou para o lenço rosado que cobria sua cabeça. Já se faziam algumas semanas desde que sua mãe havia raspado a cabeça para o começo de seu tratamento de quimioterapia, após ser diagnosticada com câncer. A família inteira se abalou por completo, enquanto Kurt pareceu ser o único que não entendia a gravidade da situação. Achava que a mãe havia raspado a cabeça por achar que não houvesse penteado ou corte no cabelo do mundo que fosse único como ela (algo que Kurt concordava completamente), e por isso pedia sua ajuda para escolher lenços que enfeitassem sua cabeça.
          — Se quer saber, eu só não cortei mais curto porque a tesoura não ajudou. — Kurt disse, afagando levemente os joelhos da mãe como forma de consolá-la. Apesar de achá-la linda de qualquer jeito, sabia que ela não pensava da mesma forma. Ela olhou para ele e sorriu, mas não disse nada.
         — Oh, Kurt. Eu conheço esse tecido. — Ela aproximou a boneca dos olhos para reparar melhor. — Esse aqui, com os passarinhos.
         — São corvos, mamãe. — Ele a corrigiu fazendo um bico. O tecido era belo, todo preto com pássaros em relevo. Apesar disso, Kurt sabia que a mãe não usava muito o vestido do qual ele pertencia, por ter um ar muito “fúnebre”. Mas, ainda assim, o achava lindo.
         — Espero que não tenha destruído meu vestido totalmente. — Ela disse em um tom duro, devolvendo a boneca à Kurt. Estava ciente dos dotes de costura que o filho possuía, por isso não houve tanto espanto quando vira a pequena peça feita por ele. Kurt apenas sorriu por ter a boneca de volta e assentiu com a cabeça. — Agora vá brincar. E não deixe que seu pai veja.
         — Certo! Stefani agora vai aprender a cantar para entreter seus clientes. — Ele disse, e voltou correndo até seu quarto.
         Kurt brincou com Stefani pelo resto do dia, e quando foi dormir, dormiu com ela abraçada em seu corpo. Apesar de incomodar por ser muito dura, ele não a abandonou, pois sabia que precisava de carinho e atenção após tudo o que passou com sua prima.
         Foi quando ouviu um barulho no meio da noite. O barulho de algo caindo, seguido de um gemido de dor. Ele ergueu a coberta até a altura dos olhos, encarando a porta de seu quarto fixamente e tentando enxergar algo na penumbra, sentindo medo. Ele apertou Stefani contra si quando ouviu outro gemido.
         Tocou os pés descalços no chão frio, após descobrir-se, e seguiu para descobrir o que era aquele barulho. Rezou para que não fosse nada, fosse algo de sua cabeça. Mas quando chegou na cozinha e viu sua mãe caída no chão, usando exatamente o vestido preto de anteriormente, largou Stefani e gritou por ajuda. Não demorou muito para Burt chegar até lá desesperado, os olhos semiabertos quando ligou as luzes. Na pressa e no desespero de carregar a mulher, pisou em Stefani acidentalmente. Kurt, ainda em choque, não percebeu. Juntou as mãos em frente ao rosto, e rezou para que tudo ficasse bem.
         Na manhã seguinte, Kurt descobriu que o câncer havia se alastrado no corpo de sua mãe de uma forma impressionante, e nem mesmo os horríveis chás medicinais preparados pela sua avó paterna ajudaram a contê-lo. A notícia pioraria algumas horas depois quando seu pai, sem jeito e com olhos vermelhos e inchados, lhe noticiaria da morte de Elizabeth.
         E foi como se o mundo de Kurt desabasse. Ele chorou. Chorou tudo o que podia. Chorou por sua mãe ter contraído a maldita doença e vivido os seus últimos dias com dor e vergonha. Chorou por sua mãe precisar usar o vestido de corvos, anteriormente jogado sobre a cômoda dela, por não ter forças para procurar outro. Chorou por ser uma criança e, por mais que insistisse, não lhe dessem ouvidos quando dizia que sua mãe não gostaria de ser velada usando aquele vestido. Chorou por suas preces não serem atendidas, tendo uma imensa sensação de traição crescendo em seu peito.
         Ele se trancou em seu quarto, e se escondeu debaixo da cama. Os olhos estavam tão vermelhos e inchados quanto os de seu pai anteriormente, e não conseguia parar de fungar. Sentia a garganta apertar como se houvesse algo entalado nela, e o coração batia dolorosamente no peito. Se lembrou do último dia que viu a mãe, lhe apresentando Stefani enquanto ela assistia aos The Beatles segurando o chá que lhe prometia uma suposta cura. Se lembrou dos corvos do vestido que ela usava, caída no chão.
         — Blackbird singing in the dead of night... — A voz dele saía trêmula e baixa como um sussurro. — Take these broken wings and learn to fly. All your life... You were only waiting for this moment to arise.
         — Kurt? Kurt, você está aí? – Burt o chamava do outro lado da porta, mas Kurt não queria se levantar. Não conseguia. Se encolhia cada vez mais embaixo da cama, sem medo dos monstros que acreditava habitar ali. Até mesmo porque, no momento, sentia uma dor que nenhum deles fosse capaz de causar.
         — Blackbird singing in the dead of night... Take these sunken eyes and learn to see. All your life... You were only waiting for this moment to be free. — Kurt fechou os olhos, as lágrimas escorrendo por seu rosto e molhando o chão. Não se preocupava em cantar direito ou afinado. Só precisava botar para fora o que estava sentindo. — Blackbird, fly... Blackbird, fly... Into the light of the dark black night!
         — Kurt, por favor. Abra a porta, vamos conversar. — Burt insistia, sua voz vacilando por um momento. Ele suspirou pesadamente, fazendo com que as batidas na porta cessassem.
         — Blackbird, fly... Blackbird, fly... Into the light of the dark black night! — Kurt murmurava as letras da música, quase sem forças. Elizabeth particularmente a adorava, e ele não conseguia tirar a imagem da mãe a cantando de sua mente. A cantando quando ainda estava saudável, balançando os belos e longos cabelos castanhos. Cantando como ele sempre sonhou em cantar. — Blackbird singing in the dead of night... Take these broken wings and learn to fly. All your life... You were only waiting for this moment to arise.
         Ele cobriu o rosto com as mãos pequenas, começando a soluçar.
         — You were only waiting for this moment to arise. You were only waiting for this moment to arise... — Finalizou a música, e então finalmente sentiu-se livre para voltar aos prantos barulhentos e desesperados de anteriormente. E continuou por ali, chorando, até que, exausto, finalmente dormiu.
          Mas aquela não seria a última vez em que choraria por sua mãe.
         Nem que cantaria aquela música.

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Notas finais do capítulo

Obrigado por lerem até aqui. Espero que tenham gostado!



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