Likho escrita por themuggleriddle


Capítulo 1
Likho


Notas iniciais do capítulo

Antes de tudo, eu sei que essa fanfic não faz sentido nenhum para quem não conhece os plots doidos de TomRiddleSr/RowenaRavenclaw que eu e a Thams (brassclaw) criamos há uns anos... O Feliks é um OC dela, criado a partir do nosso ship doido. Ele seria filho da Rowena e do Tom, depois de uma viagem no tempo ops.

Feliks foi um dos personagens mais incríveis que eu já conheci e um dos melhores que existem para serem escritos. Esse menino tem tanta carga, tanta coisa para contar e sentir, que dá vontade de escrever e ler ele o tempo todo. Até hoje eu não entendo como a Thams criou essa coisinha linda que saiu tão bem. O início das fic, a avalanche nos Urais, veio de uma fic da própria Thams, a fic que começou tudo isso e deu vida ao menino Feliks.


E hoje (17/4... se eu não conseguir postar até meia noite) é aniversário dela. E foi ela quem me deu esse prompt. Então... Parabéns, dorogaya. Muitas felicidades e muita saúde e muitas coisas boas para você, que tem essa visão tão bela quanto a do menino Ravenclaw, que cria tantas coisas lindas e que continua me surpreendendo. Amo você, estrela. E espero que goste, apesar de ter dado umas derrapadas no prompt...



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"Nos demais,
todo mundo sabe,
o coração tem moradia certa,
fica bem aqui no meio do peito,
mas comigo a anatomia ficou louca,
sou todo coração
— em todas as partes palpita."

Amo!, Vladimir Maiakovsky

 

***


Desde a morte de sua mãe, Feliks Ravenclaw aprendeu que todas as coisas vivas um dia chegavam ao fim. Não que ele não soubesse da existência da morte antes, mas aos oito anos ele entendeu o que “morte” realmente significava: que a magia dourada que ele sempre via escapando dos dedos de Rowena não era eterna, que o sorriso que ele tanto amava um dia sumiria da sua vida e que ele teria que se contentar com lembranças que pareciam cada vez mais distantes a cada dia que passava.

A morte não apagava as coisas de uma vez só, ela as fazia ir sumindo aos poucos, ficando borradas até o ponto de não serem mais reconhecidas. Talvez aquilo fosse o que mais doía: saber que não tinha mais uma pessoa, lembrar-se dela e ao mesmo tempo perceber que tais lembranças eram confusas e talvez até não confiáveis.

A morte de sua mãe também o fez refletir cada vez mais em relação à morte: quem seria a próxima pessoa dentro daquele castelo a morrer? Será que Godric voltaria da próxima batalha? Helga sobreviveria a mais um ano letivo? Será que toda a nova leva de alunos iria conseguir chegar até o último ano? Quanto tempo levaria até ele mesmo se meter em alguma situação da qual não conseguisse sair com vida?

Talvez fosse por isso que ainda estava ali, Feliks pensou, quando percebeu que, apesar de estar soterrado em neve e com todo o corpo doendo, ainda estava vivo.

Ele devia ter morrido quando o deslizamento o atingiu. Ele havia sentido a falta de ar de ter o peito se enchendo de sangue depois de ser perfurado por alguma costela quebrada e ainda sentia dificuldade para puxar o ar, além de sentir a dor em sua perna, o ângulo desta parecendo incrivelmente esquisito debaixo da neve. Mas, mesmo assim, ele conseguiu cavocar com a mão livre (a outra tinha os dedos presos em volta do cordão que prendia a matryoshka ao seu pescoço, o couro deste cortando a pele quando ele tentava se soltar às cegas) até encontrar o ar e ver a luz outra vez. O ar estava gelado e desceu queimando sua garganta e pulmões, seu rosto e seus dedos queimavam com a neve e seu corpo inteiro doía.

Mas ele estava vivo. Pois a morte não devia doer tanto... Ele sempre imaginara que a morte era tranquila, pois não queria imaginar um lugar ruim para o qual sua mãe tivesse ido.

Quando conseguiu puxar parte do corpo para fora do monte de neve, conseguiu ver a vasta paisagem esbranquiçada e borrada dos Montes Urais. Aquelas montanhas realmente precisavam de um nome mais ameaçador... Tentou puxar mais o corpo, parando quando tinha apenas as pernas ainda presas na neve e sentiu que a quantidade de ar que conseguia inspirar não era o suficiente para fazer com que ele continuasse.

Foi aí que sentiu algo tocar os seus cabelos e viu o que parecia ser fios de magia negra se espreitando por entre os montinhos de neve, tingido-a de preto. Ele já havia visto magia parecida nos testrálios.

“Confesso que queria muito levá-lo comigo,” disse uma voz desconhecida acima de si. Na verdade, não era totalmente desconhecida... Ela parecia uma mistura de várias vozes e ele conseguia reconhecer a sua própria ali no meio, a de Helga, a de sua mãe, de Godric, entre outras. “Mas não posso. Não agora.”

“Por quê?” ele perguntou, temendo erguer a cabeça para olhar a Morte. Tanto tempo pensando nela e agora ele não conseguia nem encará-la, pois tinha vergonha e medo.

“Porque você ainda tem muito o que ver. Você não veio até aqui por nada, não foi?” ela sussurrou, acariciando-lhe os cabelos com delicadeza. “Me diga, você vai querer terminar aqui?”

“Sim...”

“Sua mãe disse que você era um mentiroso terrível,” a Morte falou, rindo fraquinho. “Tenho que concordar. Você acha que já viu tudo o que devia ter visto? Já fez tudo o que devia ter feito?”

“Não tem muito que eu possa fazer ainda,” disse Feliks, tentando se erguer outra vez, mas largando o peso sobre a neve ao sentir a dor em seu peito. “E não é como se eu conseguisse ver muita coisa.”

“Eu não devia confessar isso, mas eu gosto muito de você, menino.” Os dedos em seus cabelos sumiram e ele viu uma sombra aparecer na sua frente. Mãos que pareciam serem feitas de magia escura o seguraram pelos ombros e o puxaram, fazendo-o gemer ao sentir sua perna latejar quando foi colocado no chão outra vez. “Você merece mais. Merece viver mais, ver mais, aprender mais...”

“Eu não tenho mais nada para-“

“Você tem. Oh, você tem...” Ainda com a cabeça baixa, o rapaz sentiu os dedos da Morte em seu rosto. “Mas não se preocupe. Não para sempre. Eu não sou má assim.”

“Por favor,” ele murmurou, finalmente olhando a criatura à sua frente. Era algo difícil de descrever:  não havia rosto, mas a ausência deste não era estranha. Era magia pura e viva e, aos seus olhos míopes, borrada. “Eu só quero encontrar...” ele começou a falar, sentindo a garganta fechar com uma iminente crise de choro.

“Você só quer encontrar os seus pais,” disse a Morte. “Você vai encontrá-los. Prometo.”

Feliks abriu a boca para protestar, mas sentiu um arrepio atravessar o seu corpo e encolheu-se ao sentir o que parecia ser quase como um beijo no topo de sua cabeça. E então, tudo sumiu: a Morte, a neve, os Urais e o pôr-do-sol arroxeado.


***

Quando acordou, estava frio e escuro e seus cílios pareciam ter uma fina camada de gelo presa à eles. Mas ele estava vivo. Seus pulmões se expandiam normalmente e sua perna não parecia estranha e nem doía.

“A morte e a cura andam juntas,” ele pensou, enquanto se levantava e cambaleava pela neve. As estrelas, lá no alto, brilhavam e pintavam o céu com cores diversas, a neve parecia quase ter um brilho próprio, mas lá embaixo tudo era breu.

Feliks tremia e provavelmente já devia estar morto por causa do frio. Mas ele estava vivo e alguma coisa dentro de si lhe dizia que isso não iria mudar tão cedo.

A caminhada até a vila no pé dos Urais foi lenta e cansativa. Seu corpo não doía com a mesma intensidade de antes, afinal, não tinha mais uma perna fraturada e um pulmão machucado, mas parecia que ele havia acabado de sair de um treino com Godric: a dor era mais sutil, mas sempre presente.

Os habitantes da vila pensaram que estavam vendo um espírito quando ele chegou, pálido e cambaleante. Eles faziam o sinal da cruz em frente aos seus rostos e sussurravam encantamentos ou preces para mantê-lo longe, apesar de não terem coragem de erguer uma varinha ou a mão contra ele. Mas ele permaneceu na vila por pelo menos mais dois dias, afinal, precisava dormir... Ninguém foi até o quarto que ele alugara na estalagem. Ninguém o enfrentou. Eles apenas continuavam a se benzer sempre que o viam.

E lhe deram outro nome e este nome o fez fiz: Likho. Sua mãe havia lhe falado sobre esse espírito quando era pequeno, ela ficou sabendo da existência dele do mesmo jeito que ficara sabendo da existência da grande maioria das coisas relacionadas à Rússia: seu pai lhe contara.

“São os espíritos da má sorte,” dissera Rowena e ele se lembrava de como ela sorrira e fizera cócegas em suas mãos. “Mas você não precisa se preocupar com eles, pequeno lobo. Nomes são coisas poderosas, eles nos trazem os seus significados e o seu não vai deixar um likho chegar perto.”

Depois da morte dela, ele sempre pensou que ter um nome que significasse ‘sorte’ ou ‘felicidade’ era uma grande ironia da vida.


***


Feliks Ravenclaw voltou para Hogwarts. Ele viu Helga chorar quando o viu novamente, viu Godric suspirar aliviado, viu os alunos estranharem o jeito como ele mancava ou parecia não se recuperar da palidez que a viagem lhe trouxera.

Ele viu seus alunos aprenderem e crescerem e atingirem a idade para deixarem Hogwarts. Ele viu o rosto de Amethyst, o rapazinho do qual ele sempre cuidara em Hogwarts, tomar as proporções de um rosto adulto. Viu os cabelos de Helga ficarem mais brancos a medida que o tempo passava e Godric ter mais dificuldade de segurar uma espada. Ele viu o mensageiro chegar trazendo a palavra de que Gryffindor havia morrido em batalha, viu os filhos de Helga Hufflepuff chorarem quando a mãe faleceu, viu Amethyst se tornar professor e viu, de longe, os filhos de Slytherin agrupados em volta do corpo do pai no funeral deste. Ele viu Cassius e Albin Hufflepuff lhe dizendo que ele devia assumir a diretoria da escola e viu os bruxos do Conselho sussurrando às suas costas quando ouviram sobre essa proposta. Ele viu o castelo que fora a sua casa durante toda a sua vida ficar para trás quando decidiu que os irmãos Hufflepuff seriam melhores cuidando de Hogwarts, afinal, eles eram bruxos de verdade, conseguiam fazer magia e eram melhores em lidar com o Conselho do que ele.

Feliks Ravenclaw também viu o próprio rosto não mudar em todo esse tempo a não ser pelas olheiras que variavam de intensidade. Viu seu cabelo continuar tão negro quanto as asas dos corvos que serviam de símbolo para a sua família. Viu a pele de suas mãos não ficar mais fina e enrugada ou manchada. Viu seus olhos não adquirirem uma leve névoa por cima da cor azul.

***

Ele encontrou Smaug em Alba, alguns anos depois de deixar Hogwarts.

Foi estranho, a princípio, encontrar o ovo de um dragão galês no meio de um vale em Alba, mas talvez fizesse sentido: não havia uma dragoa por perto e nem sinal de outros ovos. A mãe devia ter migrado par ao norte e, por alguma razão, não voltado. O lugar não era propício para um dragão perdido, pois as espécies escocesas estavam por perto... Além dos caçadores. O norte das ilhas havia adquirido um gosto e tanto por varinhas com fibra de coração de dragão e os caçadores estavam se multiplicando.

Talvez a mãe daquele ovo havia sido morta e seus irmãos, roubados. Não importava... O que importava era que Feliks passou uma semana acampando perto do local onde o encontrara, para ver se algum outro dragão aparecia e, quando ficou claro que aquele ovo estava sozinho, ele o pegou, colocou-o dentro da bolsa com cuidado e voltou para a sua montanha.

“Sua montanha”. Na verdade, aquela era a montanha de sua mãe... Ela o levava ali quando ele tinha sonhos ruins, o fazia andar pelos corredores escuros de pedra enquanto a ouvia contar histórias sobre a escuridão acolhedora. Aquilo sempre o acalmava e fazia as suas lágrimas pararem.

A montanha se tornara sua casa. A caverna continuava com as paredes de pedra pintadas com desenhos alheios que ele e sua mãe fizeram anos atrás, a silhueta de suas mãos (a dela, maior e azul e a dele, pequena e amarela) continuavam ali, eternizadas na pedra. Alguns pertences de Rowena ainda estavam ali também... A diferença agora era que, para chegar até ali, Feliks dependia dos testrálios, já que sua magia fora perdida há tempo, enquanto sua mãe aparatava ou usava a sua forma animaga.

Ele montou uma fogueira no lado de fora e aninhou o ovo entre as pedras quentes. Dias se passaram enquanto o rapaz mantinha guarda perto do ovo, cuidando para que o fogo ficasse sempre aceso, até o dia em que este começou a se mover. Ele balançava levemente e, de repente, um pedaço da casca saiu voando.

No meio da fogueira, não havia mais um ovo cinzento, mas sim uma criatura pequena e desengonçada cujas escamas escurecidas pelo muco do ovo brilhavam um pouco à luz do fogo. Era quase engraçado ver aquela imagem toda borrada por conta da visão ruim, podia ser qualquer bicho e ele não saberia direito.

“Olá,” disse Feliks, aproximando-se devagar. O filhote o olhou com curiosidade, arregalando os olhos e inclinando a cabeça. “Como vai?”

O dragão cheirou os dedos estendidos dele e, para a sua supresa, esfregou a cabeça neles. Parecia um gato e Feliks riu ao perceber isso, antes de puxar a sua capa e usá-la para limpar o animal, vendo as escamas dele agora brilharem vermelhas.

“Ora,” ele falou. “Achei que a sua espécie tivesse escamas verdes.”

O dragão soltou um gritinho, parecendo indignado.

“Não que isso seja ruim! Suas escamas são belas... Aposto que, no futuro, todos irão lembrar de vocês por causa delas,” disse Ravenclaw, sorrindo. “ ‘Está vendo aquele borrão vermelho no céu? É Smaug, o Rei Sobre a Montanha’, eles irão dizer.”

O animal ficou em silêncio por um momento, apenas o encarando e então soltou um chiado baixo, curioso.

“Esse é o seu nome,” disse Feliks, acariciando a cabeça do bicho. “Smaug. O nome de um rei cuja história meus pais conheciam.”


***


Dragões não eram imortais, mas, quando tinham as condições corretas, podiam ser quase imortais. E quanto mais eles vivessem, maiores ficavam.

Feliks passou a marcar a passagem do tempo a partir do tamanho de Smaug. O dragão ia ficando cada vez maior a medida que eles viam a história se desenrolar na frente deles. Eles viram todos os casamentos de Henry VIII, assim como a morte de cada uma de suas esposas; eles viram a oprichnina ser fundada e dissolvida por Ivan Grozny, viram as Américas serem descobertas pelos trouxas, viram os navios trazendo os temperos exóticos que antes eram até comuns em Hogwarts, viram a rainha Elizabeth conduzir o seu reinado de ouro, viram Alba virar Escócia e viram o massacre em Culloden que fez com que a Escócia perdesse os seus costumes, viram a família real portuguesa ir para o Brasil e voltar, viram Londres se encher de máquinas e fumaça, viram as estradas de ferro ligarem os cantos da Grã-Bretanha, viram as mulheres começarem a usar espartilhos, viram a luz elétrica e as transmissões de rádio surgirem, viram os primeiros telescópios trouxas e as pesquisas relacionadas ao espaço (os planetas novos! Feliks amava os planetas novos!), viram as guerras e as festas, viram os bruxos se esconderem cada vez mais... Eles viram tudo, mesmo que fosse apenas de longe.

O último grande acontecimento (depois, é claro, dos óculos... depois da morte de Rowena, Feliks não se lembrava de ter chorado tanto quanto colocou um par de óculos e olhou as estrelas pela primeira vez, realmente as vendo com clareza depois de muitos e muitos anos) fora a Grande Guerra, como os trouxas a chamavam. Eles ouviram falar sobre as batalhas e as perdas, ouviram sobre o massacre da família imperial russa e dos nobres que conseguiram escapar de lá... Feliks até mesmo vira de longe, por conta da curiosidade, o homem que tinha o mesmo nome que o seu e que era, em parte, responsável pela queda do império russo, um príncipe de expressão brincalhona que desembarcara em Paris com a sua esposa depois de fugir da Rússia.

Eles haviam visto tanto que às vezes era difícil de se lembrar de tudo. Ou de acreditar que tudo era verdade.


***

Volte meia, Feliks Ravenclaw ia até Londres apenas para ver os trens na Estação King’s Cross.

Desde que Hogwarts decidira colocar o Expresso de Hogwarts como meio de transporte para os alunos, o homem decidira que gostava de ir ver os alunos partindo todo 1˚ de Setembro. Mas ele também ia visitar a estação fora dessa época. Ele gostava das estações, elas eram locais interessantes... Havia tanta gente passando por elas, tanta gente indo e vindo de tantos lugares, era como os espaços lminais que encontrava de vez em quando: ele não duvidada que King’s Cross devia ter criaturas e espíritos que ninguém reconhecia, pois ninguém realmente prestava atenção.

Naquele dia, ele ficou até tarde na estação, até o último trem sair e o último guarda ir para o seu descanso. Não que ele precisasse sair dali quando a estação fechasse... Feliks percebera, com o passar dos anos, que muita gente o via da mesma forma que os aldeões russos o viram: um espírito, quieto em seu canto, apenas observando. Isso quando o viam, claro.

Mas, naquela noite, ele quis sair da estação. Ele quis andar pela Londres apagada que ainda ecoava o som dos bares. E ele andou e andou e andou, até se deparar com algo que destoava das canções alegres e dos bêbados brincalhões que às vezes encontrava nesses passeios noturnos.

Havia um rapaz agachado no meio fio de uma rua escura, tremendo enquanto soluçava e escondia o rosto nos próprios joelhos. As mãos com dedos finos e longos tremiam e se afundavam nos cabelos escuros enquanto puxavam os fios como se quisesse que aquilo realmente doesse. Os pés descalços tinham os dedos encolhidos e o homem se perguntava se ele já não estava com as pontas dos dedos congeladas, pois era Dezembro e o inverno não estava sendo muito piedoso naquele ano.

“Olá?” Feliks chamou, hesitando um pouco em se aproximar depois de ver que o outro não pareceu perceber que ele estava ali. “Está tudo bem?”

O rapaz ergueu o rosto, assustado, quando Ravenclaw chegou perto o suficiente para tocar-lhe o ombro para chamar a sua atenção. Os olhos arregalados brilhavam e o rosto estava manchado de lágrimas. Ele parecia insano, aterrorizado, como se tivesse acabado de ser perseguido por centauros bárbaros ou algo parecido. Todo o corpo do rapaz tremia e Feliks não sabia dizer se era mais pelo pavor ou pelo frio, pois percebia agora que ele parecia estar de pijamas.

“Está tudo bem?” ele perguntou novamente, vendo a boca do outro abrir e fechar diversas vezes, como se ele tentasse achar as palavras. “O que houve?”

O rapaz olhou em volta, preocupado, e soluçou outra vez, esfregando uma mão com força no próprio pescoço, como se quisesse limpar algo ali, mas só conseguindo se machucar.

“Hey,” Feliks chamou, abaixando-se e segurando o pulso do outro, que arregalou ainda mais os olhos. “Você está perdido? Quer ir para onde?”

Aquela frase pareceu fazer algum sentido, pois os olhos até então perdido pareceram ganhar algum brilho diferente. E foi nesse ponto que as coisas começaram a não fazer sentido para Ravenclaw, pois ele reconheceu aqueles olhos quando eles se fixaram em si e deixaram de olhar para todos os cantos como se esperassem que algum inimigo pulasse detrás de uma lata de lixo. Eram os mesmos olhos que o olhavam de volta de um espelho desde que se entendia por gente.

“Praça B-Bedford,” ele murmurou, sua voz soando chorosa e trêmula.

“Certo,” disse Feliks, sentindo o próprio coração acelerar. Não podia ser... “Vamos até lá.”

Com cuidado, ele ajudou o rapaz a se levantar. Eles teriam que andar e fora difícil, pois o outro estava tão trêmulo e cambaleante que volte meia tinham que parar. Além das crises de choro... Às vezes o rapaz parava, ficava estático por alguns segundos e então desatava a chorar e solução, esfregando as mãos com força pelas partes expostas do corpo.

Quando chegaram à Praça Bedford, Ravenclaw o fez sentar, encostado na grade da praça, para tentar acalmá-lo um pouco mais. Ele só chorava e tremia e olhava em volta.

“Você mora aqui perto?” ele perguntou e o outro apenas concordou, apontando para a porta de uma das casas. “Certo. Está perto... Você consegue andar até lá?”

O rapaz empalideceu mais e arregalou os olhos, agarrando as mãos de Feliks com força.

Todo o caminho até ali, o bruxo tentara não prestar muita atenção no rosto do desconhecido, mas ali era impossível não fazer isso e a cada segundo, ele reconhecia mais coisas: os olhos azuis, os cachos bagunçados, as sardas que salpicavam o nariz e pareciam pular na pele pálida, o queixo que tremia quando chorava, as mãos com dedos compridos e unhas quebradas, a mandíbula com ângulos fortes... Sua mãe descrevera tudo isso para ele quando ele era pequeno, ela sempre citava essas características quando tentava mostrar tudo o que ele e seu pai tinham em comum.

“Qual o seu nome?” ele perguntou, tentando manter a voz tranquila e sorrindo fraco.

“T-Tom...”

“Não sei o que aconteceu, Tom,” Feliks murmurou, apertando de leve as mãos do outro. Queria conseguir fazer como sua mãe fazia, deixar a magia fluir para acalmá-lo. “Mas dá para perceber que está doendo. E... E normalmente dói mais quando você é todo coração, não é mesmo?”

O rapaz franziu um pouco o cenho, mas não se afastou.

“Vai ficar tudo bem,” disse Ravenclaw. “As estrelas estão cuidando de você. Elas sempre estiveram... E... E aposto que, no futuro, você vai ter coisas boas.” O bruxo se odiou por falar aquilo. Se tudo aquilo fazia sentido, significava que aquele rapaz iria conhecer a sua mãe e perdê-la para o tempo. “E você vai ser feliz.”

Tom ergueu o olhar por um momento, olhando para o céu estrelado. Por algum tipo de milagre, o algumas poucas estrelas brilhavam lá em cima.

“Elas vão cuidar de você,” Feliks murmurou, vendo os olhos azuis do outro voltarem para si. “Eu não posso ir com você até a sua casa se tiver gente lá, mas ficarei aqui olhando para que nada lhe aconteça.”

O rapaz ficou em silêncio por um momento, antes de assentir devagar. Ele ainda tremia quando se levantou e atravessou a rua, tropeçando nos próprios pés e parecendo que iria desistir de subir as escadas até a porta. Mas ele subiu e bateu na porta e ainda ficou alguns segundos firme quando esta se abriu e outro rapaz apareceu no batente. Então ele soluçou e voltou a tremer, caindo nos braços do outro rapaz, que o segurou e o abraçou com força, antes de puxá-lo para dentro.


***


“Eu disse que você ainda tinha muito o que ver,” disse a Morte, enquanto observava o enorme dragão vermelho sobrevoar as montanhas.

“Era isso?” perguntou Feliks, apertando a capa em volta de si e erguendo mais o rosto para ver o dragão, seus óculos pendurados na ponta do nariz. Apesar de todos os anos que se passaram, ele não conseguia se desfazer de sua antiga capa da cor da casa Ravenclaw. “Agora já posso ir?”

“Ainda não.” Ela fez um barulho que parecia quando alguém estalava a língua, mas o homem duvidava que a Morte tivesse uma língua. “Impaciente.”

“Foi só uma pergunta. Achei que já tivesse feito tudo que precisava.”

“Ainda tem mais,” ela explicou. “O que você sentiu?”

O que ele havia sentido quando conheceu o seu pai antes mesmo deste ser o seu pai? Ele ficou preocupado, querendo saber o que havia acontecido e quem o havia deixado naquele estado. Ele viu a si mesmo nos momentos em que se desesperava e deixava a emoção tomar conta de si. Ele voltou a sentir o coração do qual sua mãe tanto falava, o coração que palpitava por todos os cantos de tão grande que era.

“Não sei,” ele murmurou, apoiando o queixo nos joelhos.

“Voltou a doer?” a Morte perguntou, a curiosidade embalando as suas palavras.

“Sim.”


***

A segunda vez em que viu seu pai, foi alguns anos depois. Feliks se sentou perto dele na praia de sua mãe (que, ali, se chamava Hornsea) e observou o homem olhar o mar por longos minutos com os olhos azuis perdidos. Ele realmente combinava com a praia.

Thomas Felix Riddle (ele descobrira o seu nome completo perguntando para uma moça que trabalhava em um bar na cidade) parecia triste na maior parte do tempo, mas Ravenclaw pôde ver os olhos dele brilharem com algo diferente quando ele finalmente se levantou dos bancos que cercavam a praia, tirou os sapatos, desceu até a areia e foi até o mar, afundando os pés na água. Todo o corpo do homem pareceu relaxar e ele pareceu pertencer ainda mais àquela praia.

Pouco depois, Riddle foi embora, com as barras das calças molhadas, o cabelo bagunçado pelo vento e o rosto molhado (ele chorava demais, Feliks ouviu as pessoas da vila falarem). Ravenclaw ficou até anoitecer e as estrelas aparecerem no céu, sendo refletidas pelo mar escuro.

Aquela visão o fez sorrir. Se sua mãe era as estrelas, então, naquele dia, ele descobrira que seu pai era o mar.


***

Feliks o viu mais vezes depois, mas sempre fazia questão de não ser visto. Mas um dia levou um susto tão grande que achou que seria visto, pois não conseguia fazer mais nada a não ser encará-lo descaradamente.

Tom Riddle estava rindo. Ele tinha uma risada alta que acompanhava um sorriso que alcançava os seus olhos, mas Feliks nunca havia visto tal risada, aquela era a primeira vez... E fazia sentido ele só a estar vendo agora, pois o homem não estava rindo sozinho. Ele ria enquanto estava deitado na areia molhada de Hornsea, com o mar o encharcando e com uma moça debruçada sobre si, que também ria.

Ravenclaw não precisava de muito para saber quem era aquela. Ele reconhecia aqueles cabelos negros, aquela risada, aquela magia dourada que escapava dos dedos dela e se enroscavam no homem deitado na areia. Quando ela ergueu o rosto, jogando o cabelo para longe, o bruxo achou que a Morte finalmente viria para levá-lo... Ele sentira tanta falta daquele rosto e agora o via borrado por causa das lágrimas. Em seu peito, seu coração se apertava com a saudades.

Ele passara a infância inteira querendo saber como eram seus pais juntos e agora podia vê-los. Eles eram exatamente como o mar e as estrelas durante a noite, um se misturando ao outro.


***


Feliks Ravenclaw soube que sua mãe havia voltado para o seu tempo quando viu o rosto de seu pai voltar a ficar sem expressão, apenas os olhos parecendo extremamente desolados. Ele queria se aproximar e dizer quem era. Queria finalmente se dar o direito de abraçar o pai e dizer que era o seu filho, queria dizer que sabia como ele se sentia, que também sentia falta dela, mas que ele não estava sozinho... Havia ele. E Smaug! Talvez, apenas talvez, eles pudessem ser um tipo de família.

Mas ele se lembrava da morte. E sabia que viveria mais tempo e veria os cabelos de Tom Riddle ficarem cada vez mais brancos e seu rosto ficar cada vez mais enrugado. E ele veria seu pai morrer e ficaria sozinho novamente. Talvez fosse melhor ficar sozinho, talvez fosse melhor não ter algo bom que iria perder depois.


***

“De vez em quando eu me pergunto o que você é,” murmurou Tom, fazendo com que Ravenclaw se sobressaltasse.

Eles estavam na praia novamente. Feliks, alguns metros longe do homem, o observando enquanto este afundava os pés na areia úmida. Ele nunca falara antes.

“Desculpe?”

“Eu lembro de você,” Riddle falou baixinho, olhando-o rapidamente. “E volte meia o vejo pelos cantos. Pensei que talvez fosse algum espírito, mas não sei se Little Hangleton tem dessas coisas...”

“Algumas pessoas já me consideraram um likho,” ele falou, rindo fraco.

“Não,” disse Tom, franzindo o cenho. “Likhos trazem o azar.”

“Vamos dizer que eu não tenho muita sorte na vida.”

“Você me falou que as coisas ficariam boas,” o homem murmurou, antes de suspirar. “Eu não acreditei.” Riddle esticou os braços um pouco e o outro pôde ver as linhas esbranquiçadas das cicatrizes em seus pulsos. “Patético, não? Nem a morte me quis na época.”

“Ela queria que você visse mais coisas,” disse Feliks.

“É... Eu não teria conhecido ela se não tivesse sobrevivido,” ele falou. “Eu lembrei do que você falou depois. Tentava ver isso em pequenas coisas: no céu claro do outono, nas flores do jardim da minha mãe, no mar, nos livros que lia... Às vezes, eu realmente via as coisas ficando melhores, mesmo que fosse por alguns segundos apenas. Ai ela apareceu e foi... Incrível.”

“Eu devia ter avisado-“

“Ela se foi, mas... Mas nós tivemos isso. E eu não trocaria essa memória por nada,” o homem falou. “Dói, dói demais, ter algo tão bom e perder de repente. E de vez em quando eu penso que talvez tivesse sido melhor nem ter tudo isso, porque eu não merecia e porque talvez não doesse tanto agora, mas aí eu me lembro dela sorrindo ou dos olhos dela brilhando quando ela falava sobre a magia ou sobre Glen ou sobre Warlock... E eu percebo que não, eu não abriria mão de tais memórias.”

“Não vai passar,” disse Feliks. “A dor não vai passar. Você vai se esquecer dela por alguns momentos, mas eventualmente ela vai voltar. Você vai olhar as estrelas e se lembrar dos olhos dela. Vai olhar o mar e se lembrar do som da risada dela. Vai olhar para um lírio e sentir o perfume dela de novo.”

“Eu sei,” murmurou Riddle. “Mas nem a magia de vocês vai me fazer esquecer de como era me sentir bem com ela.”


***


Talvez fosse o fato de que, para ele, não existia tempo. Talvez fosse por isso que Feliks Ravenclaw chegou atrasado.

Depois de muito tempo conversando com Smaug, que apenas o olhava e bufava ou tentava derrubá-lo quando ficava indignado, o homem decidiu que iria atrás de seu pai e iria lhe contar tudo. Ele estava certo, era melhor viver tudo aquilo, sentir tudo aquilo e ter as memórias, do que fugir. Ele estava pronto, sabia o que iria falar, sabia o que iria mostrar para fazê-lo acreditar em si.

Mas, quando chegou em Little Hangleton, o que encontrou não foram seus avós (ele já os vira de longe, Thomas e Mary Riddle, sempre tão elegantes e carinhosos um com o outro) lendo ou tocando piano e nem seu pai pintando na grande casa no topo do morro. Ele os encontrou na sala de visitas, no chão, com os olhos arregalados e a pele começando a esfriar.

Foi a primeira vez em mais de mil anos que Feliks Ravenclaw sentiu um estalo de magia dentro de si. Ela queimava e borbulhava e implorava para sair de dentro de si. O homem apenas engoliu em seco, indo até o corpo do pai enquanto tentava não chorar. Não funcionou... Ele sentia seu corpo tremer e seus olhos arderem e sua magia pinicar os seus dedos enquanto segurava a mão gelada do homem.

Ele saiu da casa e andou e andou e andou até ficar o mais longe possível de cidades e vilas. Só então deixou-se chorar de verdade, soluçando e gritando quando era possível, deixando de controlar a magia. Conseguia sentir o gelado das tintas em seus dedos... Ele sentira tanta falta disso, de poder conjurar tintas, mas agora elas o assustavam.

Naquele momento, ele trocaria toda a sua magia pela sua mãe e seu pai novamente.


***

Com o tempo, Feliks Ravenclaw descobriu quem matara o seu pai, mas não tinha idéia de como se aproximar. E, a medida que os anos se passavam, aquele homem, o assassino, foi ganhando cada vez mais e mais poder...

Feliks só o encontrou novamente quando arriscou pisar dentro de Hogwarts outra vez. O castelo continuava igual, com a mesma magia bela e aconchegante, mas agora estava parcialmente destruído enquanto os seguidores daquele homem, seu irmão, invadiam o local e atacavam os alunos. Ravenclaw se embrenhou na luta, usou a magia que reaprendera nos últimos anos para evitar que um lobisomem atacasse uma menina grifinória e, na surdina, adicionou uma barreira a mais de proteção ao redor do castelo. Ele tentou o máximo que pôde, até a batalha acalmar, quando Lord Voldemort avisou a todos que esperaria o menino, o tal Harry Potter, na Floresta Proibida.

Ele foi até lá. Ele queria ver Voldemort cara a cara.

Foi estranho atravessar a floresta agora, depois de tantos anos. Ele ainda conhecia os caminhos e as árvores, sabia onde as fadas se escondiam e que alguns oraqui-oralás o observavam. Mas ele não estava passeando para descobrir coisas novas, ele estava indo encontrar alguém que o machucara.

“Eu já vi tudo,” ele murmurou para a floresta, pouco antes de ver a clareira onde os comensais se encontravam.

Lord Voldemort estava lá no meio, esperando o garoto, e foi pego de surpresa quando Ravenclaw foi quem adentrou a clareira. Ele se perguntou se o outro bruxo via o falecido Tom Riddle nas suas feições.

Os lábios finos e deformados do bruxo das trevas tremeram por um momento e Feliks soube que ele o reconhecera. Voldemort viu o rosto de seu pai naquele bruxo desconhecido que apenas sorria agora, divertindo-se com a situação. Feliks Ravenclaw soube que a visão dele era algo que levava a raiva do outro ao extremo, talvez por evocar a memória do pai trouxa, mas agora com algum tipo de poder mágico. Talvez por parecer algum tipo de espírito que voltara para assombrá-lo, um likho, como uma vez o chamaram, trazendo algum mau agouro.

Talvez ele devesse ter erguido a própria varinha e se vingado da morte de Tom Riddle. Talvez ele devesse ter feito algo, mas seu corpo não reagiu... Em sua mente, aquilo era o suficiente. Ver o olhar confuso e cheio de raiva de seu irmão era o suficiente. Ele já havia vivido tanto tempo, visto tanta coisa, não havia necessidade de se rebaixar ao nível de Voldemort e lançar uma maldição imperdoável.

E ele estava cansado. Hogwarts, a floresta, o lago... Tudo aquilo o fez sentir o peso dos anos em sua mente e em sua magia.

Feliks Ravenclaw sorriu uma última vez para o irmão, antes de fechar os olhos ao sentir os dedos gelados da morte lhe acariciando os cabelos uma última vez.


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Notas finais do capítulo

1) Likho (лихо): é um espírito da má sorte russo... E Feliks/Felix, significa exatamente o contrário: sorte ou felicidade. Se pronuncia LÍ-rrah.


Novamente, eu sei que não faz muito sentido para quem não conhece toda a história, Mas, se por acaso você leu e gostou mesmo assim, deixa aí uma opinião -q

E Thams, espero que tenha gostado. De novo, feliz aniversário, moça.



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