As chaves Infernais escrita por LarissaTeles


Capítulo 7
Capítulo 6 - CICATRIZ DE FOGO


Notas iniciais do capítulo

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Os meus olhos se abriram devagar, intrépidos e preguiçosos, ainda revelando uma visão turva da qual eu já estava acostumada. O silêncio pairava naquela manhã. Sem pássaros ou carros com suas buzinas diabólicas - estes que me acordavam quase sempre nos domingos. Nem mesmo havia sinal de uma vizinhança barulhenta. O castelo estava mesmo isolado do resto dos moradores do ducado, Leviathan deveria odiá-los. Não me admira, ele não gosta de ninguém. E duvido que tenha verdadeiramente amado esta moça que chama de Mabel. Ele é um demônio. O que sequer poderia saber sobre o amor?

Aos poucos, meus sentidos foram retomados, e eu não poderia dizer ao certo se havia sol nas profundezas de Sheol, mas um feixe de luz parecia vir do alto e além, beijando os diamantes das paredes e invadindo meu quarto através das janelas. A luz era fria, artificial, não fazia ideia do que se tratava. Mas imaginei que talvez Lúcifer quisesse aproximar ao máximo o inferno da Terra, em questão de similaridade, para atormentar ainda mais as almas que aqui viviam com uma latente sensação de nostalgia.

O cheiro de ovos fritos que invadiu o Quarto de Esmeras, provavelmente proveniente da cozinha, me lembrou de quando mamãe fazia café da manhã para nós. Quando ainda éramos uma família feliz e abastada. Ambos os meus pais tinham cabelos castanhos, o que me fazia imaginar o porquê de eu ter nascido com os cabelos dourados. Mas mamãe sempre garantiu que eu havia herdado a beleza angelical de minha avó. Papai costumava dizer que a habilidade dela para fazer ovos mexidos foi o que realmente conquistou seu coração. E eu era nova demais para entender o duplo sentido da frase.

As cortinas verdes que pendiam de minha cama estavam abertas. Eu poderia jurar que as tinha fechado ontem a noite. Não acho que eu teria lembrado de muita coisa após ter bebido tanto. Ainda assim, duvido muito que vinhos possuam um teor alcoólico tão alto, pelo menos é o que mamãe dizia, ela adorava uma boa taça da safra mais antiga de seu estoque. Mas o líquido da garrafa que eu bebi ontem era estranho, mais concentrado, de um carmesim tão vivo quanto sangue; era diferente. Me fez sentir coisas. Uma ira visceral e acelerada, alimentada por algo que eu não conseguia entender. Agi como uma tola. Impulsiva, desenfreada e arrogante. Então percebi, aquela não era eu.

Mas não é como se a este ponto da minha vida eu soubesse dizer exatamente quem eu sou.

— Bom dia, minha querida.

A voz grave reverberou dentre as paredes, de um sibilar tão suave e envolvente quanto o de uma serpente. Meu corpo estremeceu e eu sentei na cama com um pulo, varrendo o quarto com as íris cerúleas à procura do dono deste timbre, torcendo para que as minhas apostas estivessem erradas e que o canalha do meu tutor platinado fosse o vulto na sacada, sentado numa poltrona admirando o céu. Oh, não. Não, não. Reparando bem, não era para o céu que ele olhava. Sua cabeça pendia levemente para a direita. O vulto contemplava pesarosamente o retrato de Mabel.

— Leviathan. — Eu arquejei, notando os longos fios castanhos de seu cabelo e a sua postura altiva mesmo ao sentar.

Ele nada respondeu por um longo período de tempo. Podia ouvir sua respiração profunda e pesada ecoar ali, até mesmo nas águas da fonte - principalmente nelas. Os dutos internos agora pareciam quietos, amargurados e de luto - assim como ele.

— Parece que você ainda sabe o meu nome. — O príncipe da inveja murmurou, levando a mão ao queixo e coçando a barba rente à pele que começava a crescer. — Talvez nem tudo esteja perdido.

— Parece que consertar mesas e substituir pratos quebrados não leva tanto tempo assim, senão você ainda estaria ocupado e bem longe de mim. — Retruquei secamente, mas no fundo eu sentia medo de que ele me matasse. Não queria que meu espírito ficasse preso no ducado da luxúria para sempre. Não ainda. Busquei o colar que Volúpia havia me dado, apertando o rubi entre as palmas fechadas e prensando-o contra o peito angustiado. Ela disse que aquilo me protegeria, e apesar de eu achar que a pedra só servia para me dar sonhos estranhos como aquele que tive com a figura de Mabel, esperava que agora funcionasse. — Como entrou aqui?

— Eu moro aqui. Sou o dono desse castelo. Entro onde eu quiser.

— Você me entendeu. Se tivesse entrado pela porta da frente, eu teria escutado as trancas se contorcendo e acordaria.

— Você por acaso ouviu uma palavra do que eu te disse ontem? Ou ficou mais preocupada em conversar com Asmodeus e com aquela lilin desgraçada? — Ele praguejou, e tão rápido quanto sua língua amaldiçoou o nome de Volúpia, um espasmo de dor atingiu-lhe as costas. Ele se contorceu na cadeira e rangeu os dentes, tão persistentemente que achei que iria partí-los. — Merda!

— O nome dela é Volúpia. — Eu fiz questão de lembrá-lo, irritadiça.

Leviathan devia achar que o meu primeiro instinto seria levantar da cama e correr para os seus braços afim de ampará-lo, como imagino que Mabel faria se ainda estivesse aqui. Mas não, ao invés disso, arqueei uma de minhas sobrancelhas e cruzei os braços sobre o tórax. Um desafio silencioso. O que quer que o estivesse atormentando agora poderia esperar.

— Então, você dizia...?

O mais velho apertou os punhos e respirou fundo, tentando não se concentrar na dor.

— Eu sou Leviathan, o demônio das águas. A criatura que atormentava os marinheiros honrados e os piratas, impedindo-os de cruzar oceanos quando eu bem entendia. — O príncipe começou, levantando da poltrona e cravando seus olhos castanhos em mim. Só então lembrei que ainda vestia as anáguas de Mabel. Para ela, aquilo deveria ser como uma roupa íntima, um objeto sensual de sua época. Mas para mim é apenas um longo pedaço de pano velho, então não sinto vergonha. O impulso de puxar as cobertas para cobrir-me até a altura do colo simplesmente não vem. Ele repara e assente. — Eu domino a água. Sinto o que ela toca, ouço os sussurros que nela se afogam, viajo com ela. Sou a própria água quando quero e ao mesmo tempo uma figura sólida. Um anjo caído e sem glória.

— Não me diga que você entrou pelo encanamento da fonte.

Ele deu de ombros e, pela primeira vez desde que cheguei, abriu um sorriso.

— É, algo assim.

— Fala sério. — Disse eu, rolando os olhos. — O que você quer? Não acho que tenha vindo aqui por causa da bagunça que fiz ontem. Apesar desse ser um bom motivo para você me estrangular.

— Não dê ideias ao demônio, Claire. — Ele advertiu, com um brilho estranho nas íris escuras. Alguns passos calculados pelo quarto foram o suficiente para que eu percebesse que o moreno procurava alguma coisa. — Não posso te crucificar por algo que eu mesmo provoquei. O vinho é de uma safra especial e rara. Muito, muito rara, se me permite dizer. Foi extraído no topo do Calvário.

— Você está mudando de assunto.

— Eu sempre soube que o sangue de Cristo provocava coisas extremas no corpo daqueles que tentavam bebê-lo. Mas conseguir chutar uma mesa de quase seiscentos quilos para o outro lado da sala? Por Sheol! Nunca vi nada igual! Me admira que você não tenha quebrado a perna. — Ele fingiu estar impressionado - ou talvez estivesse, não saberia dizer se aquilo era mesmo sarcasmo ou outra coisa. — Quando Mabel bebia uma taça de sangue de Nephlim, suas emoções mais viscerais ficavam enaltecidas. E ela, que era sempre muito comedida e calculista, ficava selvagem. Pra ser sincero, eu gostava disso.

Fiquei completamente atônita, sem saber o que dizer ou o que fazer. Ele havia me drogado apenas para descobrir se eu reagiria da mesma forma que a sua amante àquela substância. Um calafrio percorreu a minha espinha ao lembrar do que Volúpia disse para mim na noite passada nas escadarias. "Beba um pouco e tudo ficará bem", foi o que me confortou naquele momento, mas agora me atormenta. Será que ela também sabia sobre o plano de Leviathan? O pensamento me toma como um soco na boca do estômago e traz a minha bile à tona, mas eu a engulo e a empurro novamente para baixo. Não sei mais em quem eu posso confiar. Sheol está cheia de ratos.

Me encolhi na cama, abraçando os joelhos e olhando para os meus próprios pés. Queria fincar os dentes nas jugulares do príncipe da inveja e puxar as suas artérias para fora. E então o inferno inteiro poderia finalmente beber de seu sangue imundo assim como eu me embriaguei do sangue de Cristo.

— Você é pior que Asmodeus. — Murmurei, e a frase é como um tiro que sai pela culatra. Pois eu desejei verdadeiramente que Jerry estivesse por perto agora. Que me tirasse desse lugar da mesma forma que me colocou, e que fizesse uma piada idiota sobre tudo isso no final. Mas eu estava confusa antes e agora posso ver claramente: Ninguém aqui é meu amigo. Subitamente, senti falta de Tristan. — Você é nojento.

— Não me compare com um ladrão covarde. — Ele disse, engolindo em seco. — Jamais.

— Ah, agora sim chegamos em algum lugar. — Comecei, amargurada. Soltando os meus joelhos e fitando-o com o queixo erguido. Eu havia suspeitado disso desde o princípio. — Esse é o verdadeiro motivo de você estar aqui, não é? O tarô da morte.

— Da inveja. — O demônio me corrigiu.

— Tanto faz. — Retruquei, dando de ombros. E apesar de achar que tudo com a palavra morte no meio ficava mais impactante, decidi não discutir sobre algo tão supérfluo. Havia encontrado a chance de me reerguer com dignidade. Não iria desperdiçá-la. — Não está comigo, se é o que quer saber. Eu o escondi, por sorte, num lugar bem longe da água. Só o buscarei se me disser o nome de todas as mulheres que matou em Raventown e também o porquê.

As bochechas de Leviathan ficaram gradativamente vermelhas de raiva. Eu o havia colocado num beco sem saída e sabia disso. Mas estava blefando e torcia para que ele não percebesse. O tarô ainda estava enfiado no bolso do meu casaco vermelho no cesto de roupa suja perto do closet.

— Mais alguma exigência, minha querida? — Ele perguntou, sarcasticamente.

Se seu olhar pudesse desfechar-me tiros eu provavelmente já estaria morta. Mesmo assim, o desgraçado não perdia a sua pose altiva. E as suas mãos estavam quase sempre reunidas atrás das costas.

— Sim, obrigada por perguntar. O assassino era conhecido por estuprar as suas vítimas antes de matá-las - ou ao menos as dez primeiras infelizes que cruzaram o seu caminho tiveram esse destino. E como os outros corpos que apareceram pelas vielas tinham ferimentos de corte semelhantes aos deste estuprador, imagino que a polícia incompetente da minha cidade relacionou ambos os casos como sendo um só. — E então fiz uma pausa, esticando os dedos para buscar uma escova de cabelo que descansava sobre o criado mudo ao meu lado. A expressão ameaçada de outrora não mais era refletida em mim. Fora substituída pela audácia e pelo cinismo. Eu não tinha o luxo de recuar. Estava sozinha. — Você nunca foi o idealizador deste crime, certo? Aliás, como poderia ser? Está fadado a sentir inveja da grandiosidade alheia. É a sua natureza. Sempre o plagiador, nunca o criador. Não me admira que tenhas tanta inveja de Deus, seu próprio pai. Você é uma vergonha.

— Como você sabe de tudo isso? — Ele perguntou. Tinha os olhos arregalados.

— Pense fora da caixa. Ou você achou mesmo que mandar Sarah aqui para me vestir pro seu jantarzinho iria amolecer meu coração?

— Não, mas-

— Está tão cego pela sua obsessão à Mabel que achou que eu iria fazer as pazes com a puta que matou o meu melhor amigo?

— Não estou obce-

— O meu perdão não é tão fácil assim de ser comprado, Leviathan. E você nunca terá o meu até o dia em que a felicidade impregnada nos seus ossos se transformará em cinzas nas tuas mãos.

— Isso foi uma ameaça? Eu poderia te matar aqui mesmo se eu quisesse. E ninguém se importaria.

— Não, não pode. Porque até onde eu sei, mortos não falam o paradeiro de artefatos perdidos.

Leviathan se calou. Estudou a minha expressão com cautela, analisando-me meticulosamente para ter certeza de que eu não estava blefando. Tive de reunir todas as minhas forças para manter a ameaça viva e inabalável. A minha vida dependia disso. E somente eu faria o meu resgate esta noite. Ninguém mais.

— Você está mentindo. — Ele concluiu, enfiando as mãos na calça do smoking preto.

— Estou? — Meu sangue gelou. Então crispei os lábios e mantive a expressão desdenhosa, com mais afinco que o normal. — Prefere mesmo confiar num palpite e perder o seu tarô precioso?

O demônio mordeu o lábio inferior - tão intensamente que chegou a ferí-lo. Ele era mortalmente bonito, mas a sua personalidade se igualava a um saco de merda.

— Eu te subestimei, Claire. Você usou Sarah contra mim. — Ele repetiu para si mesmo, pensativo. Processando tudo o que havia acabado de acontecer. — E definitivamente, você não é ela. Mabel nunca me chantagearia.

— Azar o dela, querido. Eu não tenho nada a perder. Mas você, — Acusei, apontando a escova de cabelo para ele antes de voltar a pentear meus cachos dourados - embaraçados pela longa noite de sono. — Você tem muita coisa em jogo, e não pode se dar o luxo de arriscar. Sabe, Levi, esse é o problema com as pessoas danificadas como eu. Nós sabemos que podemos sobreviver.

— Credo. — Ele murmurou, o cenho franzido e a estranheza na voz. — Você está falando igual a Lilith.

Pendi a cabeça para o lado, imaginando o que aquilo poderia significar. Enquanto as cedas da escova retornavam o brilho natural ao meu cabelo, decidi levar o comentário alheio como um elogio, ainda que a sua entonação tivesse estampado todas as características de um insulto. Não hesito em constatar que não blefava sobre tudo. Havia um resquício de verdade naquele mar de mentiras que jorrava da minha boca, eu sabia. Esta força estranha estava adormecida dentro de mim esse tempo todo, esperando para ser usada. Então eu aceno a cabeça para Leviathan e dou-lhe o meu melhor sorriso, finalmente compreendendo. Se eu falo como Lilith é porquê falo como uma rainha.

— Quando for embora, não esqueça de avisar aos seus guardas que posso sair e entrar na hora que eu quiser. — Avisei despreocupadamente, como se cada diamante daquele castelo me pertencesse por direito. Eu tomaria tudo o que era dele. — Use o tempo que precisar para decidir.

O príncipe da inveja hesitou, mas assentiu friamente. E após uma breve caminhada até a porta frontal, retirou-se do vão. Deixando-me aliviada por estar finalmente sozinha.

*****

O vestido de seda rosa-bebê não chegava ao pés do outro que vesti para o jantar da serpente do Castelo Negro, mas ainda assim era bonito. Tinha o seu próprio charme, nada muito pomposo, mas elegante. E suas saias eram leves como plumas, confortáveis. Não possuía mangas compridas, o que me fez pensar que seria mais apropriado usá-lo numa noite de verão - e estávamos no inverno -, mas não me importei já que o castelo era repleto de lareiras. Encontrara o vestido no closet que logo concluí ter sido de Mabel. Era aqui que ela passava os seus incontáveis dias de penalidade espiritual. A mulher pertencia ao ducado da inveja. E diferente das outras almas que tiveram o desprazer de habitar o lar de Leviathan, Mabel era bem tratada. Ouso dizer que também fora mimada e cortejada. E pelo que conheço de Levi, sei que ele jamais permitiria que a sua amada o abandonasse para reencarnar.

Será que o moreno estava falando disso quando acusou Jerry de tê-la matado? Ou o meu tutor era realmente um assassino à sangue frio?

Busquei a caixa com o tarô do meu anfitrião mau-caráter no fundo do cesto de roupa suja. Não poderia deixá-lo ali para sempre, aquela era a minha única válvula de escape. E Levi certamente viria procurar o objeto nas minhas coisas quando eu não estivesse no quarto. Ou ao menos enviaria um de seus criados para fazê-lo. Sarah não havia me visitado esta manhã, o que era estranho. Ela estava em maus lençóis, eu sabia disso. Principalmente depois do que eu disse para o seu mestre, ela pagaria o preço por ter falado demais. Mas isso não era problema meu. Não agora.

No bolso da minha calça jeans suja eu também encontrei o meu celular e os meus fones de ouvido. O sinal de telefonia mortal não funcionava em Sheol, deve ser por isso que os mortos não trazem consigo os seus aparelhos eletrônicos. Não adiantaria de nada. Me pergunto se eles sequer conseguem se comunicar com os vivos lá em cima. Duvido muito, já que o inferno possui a sua própria rede wireless e esta é incompatível a qualquer outra frequência extraterrena. Leviathan é dono de sua própria rede de wifi, que funciona ao longo de todo o castelo. E eu não tinha a senha.

— Ao menos eu posso ouvir música. — Murmurei, pondo os fones nos ouvidos e passando o dedo pela lista de canções baixadas no aparelho branco.

Quando finalmente escolhi, a versão orquestral de La Valse D'Amelie começou a tocar e todos os meus sentidos se regozijaram. Ah, como eu sentia falta de ouvir algo tão doce e tão singular. Mas ao mesmo tempo, uma sensação tão pura de satisfação me abateu por eu não mais precisar escutá-la afim de me acalmar. Afinal, era ao som dessa valsa que eu chorava na escuridão do meu antigo quarto e dançava com o corpo delicado de menina já machucado e as pernas fraquejando. Como um passarinho de asas quebradas tentando esquecer a dor de não mais poder voar. De não ser mais o mesmo após uma bruta e insensível violação.

Havia praticado balé desde os seis até os nove anos. Mamãe sempre quis se tornar uma bailarina quando criança e quando os seus planos foram frustrados, prontificou-se a realizá-los em mim. Sorte a dela que eu adorava dançar. Ir para as aulas era a minha parte favorita do dia desde que me lembro. Mas isso não durou muito. Logo mamãe morreu e a família foi a falência. A vida só não contava que eu fosse persistente o bastante para repetir os passos já me ensinados em casa, e também aqueles que aprendi com a ajuda da nossa velha televisão - num canal estrangeiro de balé que por algum milagre funcionava na nossa antena. Não sou a melhor nessa categoria, mas me movimento com cada batida do meu coração.

Eu tinha um plano. E por mais que este fosse estúpido e tivesse grandes chances de dar errado - mesmo com o menor dos deslizes, eu precisava tentar. Leviathan estava me ouvindo agora através das águas barulhentas dos dutos e da fonte, eu podia sentir. Sempre esperando por qualquer sinal do paradeiro daquilo que lhe roubaram. Então eu precisava abafar o barulho dos meus movimentos ao revirar o quarto à procura de um canto estratégico para manter as cartas até que eu saísse do vão.

Não havia pedido liberdade para transitar no castelo à toa. Pretendia encontrar algo melhor e distante da água lá fora. Poderia parecer algo impossível de se fazer, principalmente no território inimigo. E era exatamente por isso que este plano tinha inumeráveis chances de se tornar um completo fracasso. Mas eu estava determinada. Não existia esse mito chamado: crime perfeito. Estava certa de que haveria alguma brecha na construção. E se não houvesse, eu daria um jeito.

Despluguei o fone do celular e deixei que a música alta ecoasse pelo Quarto de Esmeras. Era como um soneto suave e sensível, sempre crescente, criando raízes no meu coração conforme a melodia amadurecia. Canalizando os meus medos mais sombrios e despindo-me da máscara que vestia, mostrando-me mais uma vez que eu estava viva e que eu ainda podia sentir algo tão forte assim. Talvez, se eu ainda pudesse dançar, nem que fosse apenas uma pirueta desajeitada pelo vão, saberia que ainda não havia me tornado um monstro. E este seria o meu álibi caso o Levi entrasse num rompante pela porta.

Meus olhos ficavam atentos, observando meticulosamente o quarto, calculando mil e uma formas de esconder o tarô de Leviathan. E meus braços se erguiam levemente para cima e para baixo, como se eu estivesse dançando, mas as mãos quando pousavam vasculhavam gavetas e tateavam esperançosos fundos falsos que eu erroneamente achei que encontraria.

Uma das pernas se ergueu no alto, as pontas dos dedos quase ansiaram por um beijo no teto. A luz fria e artificial de Sheol se espalhava pelo piso, iluminando as minhas curvas ainda em formação e testemunhando o meu agridoce sofrimento. A valsa da rosa que logo morreria. Eu me alongava entre as pausas, o cenho franzido e a mente ocupada. Pense, Claire, pense. Não é impossível. Mais uma pirueta, e depois outra. Após arriscar alguns saltos, os meus joelhos pararam dobrados. Eu ainda conseguia fazer isso. Me espalhei pelo vão à procura de novos ângulos para olhar.

Leviathan estava me ouvindo.

A panturrilha desceu e o polegar descalço encontrou a pelagem do tapete, virando-o do avesso com a graça de um felino. Havia algo estranho no piso debaixo dos fiapos. E parecia ter sido desmantelado, arrancado do lugar e depois posto de volta. Eu sorri satisfeita, sentindo gotas quentes molharem o meu rosto. Eram lágrimas de alegria. Há anos atrás, Mabel teve a mesma ideia que eu.

Uma sequência de estouros muito bem coordenados fizeram-se presentes no vão, assustando-me de imediato. Eram aplausos. Cobri o fundo falso do piso com o pé e me virei num rompante. Apenas para encontrar a porta já aberta e Jerry encostado na sobreira desta, sorrindo. Seus olhos heterocromáticos brilhavam, transmitindo orgulho e fascínio, uma verdadeira admiração.

— Bravo! Belíssimo! — O demônio esbravejou, fazendo eclodir o seu último par de palmas para aquela performance. — Isso foi tão puro, tão cheio de angústia e melancolia e ao mesmo tempo tão sublime, que eu acho que Tchaikovsky teria criado uma orquestra inteira só para que você dançasse.

— Não comece. — Avisei, ainda alarmada. Havia filetes de suor escorrendo pela lateral da minha testa e as minhas bochechas ganharam cor. Estranhamente, fiquei feliz por ele ter ignorado o meu choro. Então limpei os resquícios das lágrimas com as costas das mãos. — Eu só estava-

— Precisando desesperadamente da minha ajuda? Sim, eu sei, pude sentir do outro lado do castelo as suas palpitações aceleradas.

— De todas as vezes em que eu realmente precisei da sua ajuda, esse momento não se encaixa no perfil. Até porquê, se eu estivesse mesmo em perigo, você não apareceria. — Disse, fazendo sinal para que ele entrasse de uma vez e fechasse a porta para que os guardas não ouvissem a nossa conversa. — E eu não sabia que essa habilidade mágica também vinha no pacote.

Ele obedeceu, meio sem saber o que dizer, e eu notei algo estranho em sua postura. Culpa.

— Eu sou o demônio que te rege, Claire. Posso ler a sua mente e sentir as suas emoções como se fossem minhas. E a depender do humano que nasce na minha temporada, posso até brincar de marionete com o seu corpo. Mas isso quase nunca é divertido... e não vem ao caso.

— Que seja, Asmodeus. Eu já estou de saída, então se quiser falar alguma coisa importante, seja breve.

— Sei o que está tentando fazer. — Jerry encolheu os ombros, apontando para a caixa na minha mão. — E a resposta está bem debaixo do seu nariz.

Eu pensei no tapete de imediato e logo me amaldiçoei por tê-lo feito. Agora Jerry sabia. Não poderia confiar nele. Não enquanto eu não soubesse nem mesmo a primeira de suas motivações.

— Não seja tola. Leviathan já sabe sobre o buraco no chão. — O loiro disse como se aquilo fosse óbvio e apontou para o meu pescoço. Não, mais precisamente para o colar de Volúpia. — Isso pode proteger qualquer coisa. Humanos, demônios sem cerne, animais, objetos e até mesmo memórias. Use-o.

— Como? — Perguntei confusa. O colar se encaixava perfeitamente entre os meus dedos.

— Aproxime a caixa do colar e peça para que o rubi a mantenha segura. — Ele explicou com paciência, logo notando a hesitação na minha expressão facial. — Não precisa ser em voz alta se não quiser, mas Levi sabe sobre o colar. Todos os lilins possuem um desses quando ainda são novos. O feitiço na pedra é feito por Lilith para proteger seus filhos e rastreá-los enquanto passeiam pela Terra. Só que Leviathan não poderá tocá-lo sem a permissão da dona.

Eu assenti com a cabeça e fiz o que ele havia pedido. Assim que as palavras de súplica deixaram os meus pensamentos, uma forte luz vermelha fora expelida do rubi. Fechei os meus olhos para proteger as minhas íris da luminosidade repentina e quando voltei a abrí-los, a caixa já havia sido sugada para dentro da pedra. Não entendi como isso era possível, mas certamente havia magia naquela coisa. E Volúpia usava isso para cima e para baixo, desde o dia em que eu a conheci. Até mesmo no sonho que tive na noite passada, a versão mais jovem da lilin ostentava esta jóia ao redor do pescoço. Talvez ela estivesse se protegendo de Leviathan esse tempo todo sem dizer uma palavra. E agora estava vulnerável por minha causa, alguém que ela nem sequer conhecia. Era estranho.

Jerry abriu um sorriso largo e afrouxou a gravata roxa que usava no terno inglês de sempre.

— Eu disse que funcionava, não disse?

— Sim, de fato. Só não sei o que você quer com isso. Nem mesmo porquê está me ajudando.

— Sou o seu tutor, é o meu dev-

— Pára com essa merda. Você não estava brincando de gato e rato com Leviathan por quase quinhentos anos à toa. Preciso que me conte a verdade.

— Ouvi dizer que você conseguiu a sua liberdade condicional no castelo sozinha. Isso é muito bom. — Jerry interviu desconfortável, olhando para as paredes e para o que elas representavam. Estamos sendo vigiados, e esse não é o melhor lugar para termos essa conversa. — O que me lembra de que o dia está maravilhoso lá fora. Deveríamos dar um passeio.

— Ótimo, eu já planejava sair mesmo. — Disse, um pouco mais alto para que o príncipe da inveja ouvisse. Jerry assentiu em aprovação. Estava entrando no jogo dele, mas ainda tinha algumas cartas na manga. — Me faça companhia.

— Sempre que quiser, m'lady. — O demônio piscou para mim e esticou o braço dobrado para que eu engatasse o meu aperto gentilmente no dele, assim como fiz quando ele me guiou até a escola abandonada. Era algo nosso, parecia. — Venha, é por aqui.

Correspondi o gesto prontamente e deixei que ele me guiasse para fora do quarto, e depois pelos largos corredores. Mas eu não deixaria que essa repentina sensação de segurança que me atingira atrapalhasse o meu julgamento sobre as prévias ações dele. Em Sheol eu não poderia confiar nem mesmo na minha própria sombra. E isso estava mais do que claro.

Quando finalmente chegamos ao salão principal, Jerry me guiou até uma grande porta com trancas de ferro que eu não tinha reparado antes. A entrada frontal do castelo ficava do outro lado do vão, e eu podia ouvir um barulho persistente e tilintante ecoar através da madeira. Algo como dedos arranhando a lousa ou lâminas raspando violentamente uma à outra. Fiquei alarmada. Era uma emboscada. Meu sangue gelou e o meu corpo parou petrificado, enfrente à porta. Seria esta a hora da minha morte? Não, não poderia. Mas eu fitei o meu acompanhante platinado em busca de respostas e ele inclinou a cabeça para o lado, confuso, como se não entendesse o motivo de eu ter parado.

Eu estava traumatizada.

E as cicatrizes deixadas em mim foram tão profundas que talvez jamais se fechassem.

— Cavalheiros, — Jerry chamou os guardas em frente a porta misteriosa. E acompanhado de um gesto impaciente e insatisfeito, pediu: — Queiram abrir a porta, por favor?

Os demônios menores o obedeceram de mau gosto; a insatisfação estampada em suas caretas horrendas. Percebi que eles só obedeciam a um único mestre, e Jerry não era o príncipe da inveja. Mas assim que as portas de abriram, com um estrondo poderoso que se assemelhava ao pulsar de um coração, a luz gélida e indiferente do inferno fez-se ainda mais presente, mais forte e graciosa. Semicerrei os olhos com um misto de fascínio e desconfiança, ainda protegendo-me da claridade. Aquela era a entrada para o maravilhoso jardim de Leviathan.

Hesitantemente, adentrei o local logo atrás do loiro. Sentindo o perfume das flores me saudar.

Era extenso e espaçoso o bastante até para que Volúpia e Dantallion lutassem entre si, pisando furtivamente na grama vasta e desviando dos golpes que ambos desferiam. Ela manejava duas espadas de aço negro e brilhante; ele, uma poderosa lança e um escudo. Os gêmeos eram selvagens e violentos, não se importando em cortar pedaços - ainda que superficiais - da carne um do outro. Me perguntava qual fora o motivo da briga desta vez. Pra ser sincera, eu já esperava que o demônio da estratégia soubesse lutar, devia fazer parte de seu currículo; mas a lilin da solidão não o deixava levar vantagem - nem por um segundo -, atacava-o com tudo o que tinha, levando o meu fôlego consigo a cada golpe aplacado e ela nem mesmo sabia. Não poderia saber. Arranquei a expressão boba do meu rosto. Volúpia estava ganhando - e com ares de quem já estava acostumada com a sensação agridoce que uma competição como esta lhe trazia. Sim, ela era incrível, mas também uma traidora.

— Já se perguntou o que acontece com as flores que são jogadas nas lápides dos mortos? — Jerry perguntou, com um sorriso cheio de expectativa no rosto.

— Pela sua cara, imagino que elas venham para cá.

Ele assentiu e acrescentou:

— É por isso que elas não sentem falta do sol. Já estão acostumadas com a escuridão.

— Acho que é tudo uma questão de instinto, Asmodeus. Aquele que se adapta mais rápido às mudanças no ambiente, sobrevive.

— Eu não... — O mestre da luxúria pestanejou, incomodado. Mas interrompeu à si mesmo no ato, antes de bufar e olhar para os próprios sapatos. — Eu não quero simplesmente sobreviver. Fiz isso por quatrocentos e noventa anos. Sempre me escondendo, fugindo do meu próprio irmão como um rato por algo que eu nem mesmo cometi. Eu quero viver, Claire. Uma vida imortal gloriosa, repleta de orgias e nenhuma preocupação. E foi por isso que te trouxe aqui. Pra acabar com essa merda de uma vez por todas.

— Jerry, ele pode estar te ouvind-

— Não, não está. O alcance dele no jardim fica mais fraco e o barulho do treino de Dantallion e Volúpia vai abafar o som das nossas vozes. Eu pensei em tudo, não se preocupe.

— Oh. — Murmurei, dando-me por entendida. — Então, nesse caso, me diga: O que diabos eu tenho a ver com essa porra?

— Você é a reencarnação de Mabel. — Ele disse, sem maiores rodeios. Esta possibilidade já havia passado pela minha cabeça, mas a confirmação tem o mesmo efeito de uma bofetada no meu rosto. Eu não queria acreditar. Nunca quis. Por que eu? Por que não Sarah ou qualquer outra garota comum de Raventown? Por que logo eu? — Houve uma puta confusão há dezesseis anos atrás e as coisas afundaram de vez na merda quando resgataram Mabel do Castelo Negro e depois levaram-na ao Vale do Renascimento. E mesmo eu não estando em Sheol, a culpa caiu sobre mim.

Seu olhar se desviou para Volúpia de maneira assombrosa.

Eu prossegui.

— Então você me trouxe até aqui só para mostrar à Leviathan que o espírito dela não havia se perdido? Que ele ainda tinha alguma chance de amar novamente? Você me usou como um pedido de desculpas para o seu irmão? Como um passaporte de volta ao coração dele? — Indaguei estridente, profundamente indignada. Ele assentiu em silêncio. — Jerry, eu poderia ter morrido!

— Mas não morreu. — O demônio protestou. — Sou seu tutor, estou sempre cuidando de você.

— Tudo bem. — Comecei, ainda com um pé atrás. Havia algo muito estranho nessa história. E eu precisava saber de todos os detalhes. — Mas se você não matou Mabel, então quem foi?

— Não posso dizer. Eu fiz uma promessa.

— Como espera que eu acredite em você dessa forma?

— Estou tentando consertar as coisas, eu juro. Apenas me dê um voto de confiança, okay?

— Você está me pedindo o impossível.

— Eu sei, você passou por muita coisa. Mas se eu quebrar a promessa, coisas ruins acontecerão.

— Então eu vou ter que descobrir isso sozinha? — Perguntei, exasperada.

O encontro das lâminas dos filhos de Asmodeus ficava cada vez mais voraz e destemido. Deduzi que Dantallion havia pedido por uma revanche.

— Tenho certeza de que a senhorita vai dar um jeito. Você sempre consegue.

Meu rosto se fechou numa expressão concentrada e eu comecei a pensar. Cada palavra já me dita fora questionada e julgada e examinada no âmbito obscuro dos meus pensamentos. Tentava montar o quebra cabeça sozinha. Mas esse tempo todo eu estava procurando pela peça errada.

— Você me disse que eu sou nascida da luxúria, certo? Da sua temporada aqui em Sheol.

Ele franziu o cenho e confirmou. Imaginei que havia se cansado de ler a minha mente.

— Sim. Sou teu regente segundo as leis de Lúcifer e, portanto, você sempre terá um lugar no meu ducado. Ou à minha mesa, se eu permitir.

— Mas há um torneio que decide qual será o novo pecado dominante quando a temporada de outro príncipe acaba, não é? E você precisa comparecer para ganhá-lo... Coisa que o senhor não fez.

— Exato. Você está começando a entender.

— E aqui estou eu, Claire Roseflare, da temporada da luxúria, nascida há dezesseis anos atrás. Mesmo amontoado de tempo que você disse que o resgate de Mabel aconteceu. E você nem estava aqui para testemunhar metade dessa merda. Como isso é possível?

— Eu não sei. Pergunte à minha filha, aposto que ela vai te responder melhor do que eu.

Prontamente dei de ombros e virei as costas para ele, indo na direção da morena.

Jerry segurou o meu braço e me puxou de volta para si.

— Não, não, não. Agora não. — Ele resmungou, livrando-me de seu aperto. — Eu sei que você está louca para conversar com ela, mas aguente firme até chegarmos ao meu ducado, okay?

— Vamos partir? — Perguntei, curiosa. Pensei que ficaria nesse pandemônio para sempre.

— Se tudo der certo, sim. Onde estava com a cabeça pra confrontar um dos sete príncipes do inferno daquela maneira? Agora Leviathan quer te matar durante o sono.

— Como sabe disso? Não parece ser um plano que o seu irmão te contaria.

— Dantallion conhece um par de guardas aliados por aqui. Ou melhor, subornados.

— Mas eu tenho algo que ele quer. Levi não pode simplesmente me matar.

— Não se trata das chaves infernais, Claire. Ele iria usar as cartas contra os nossos irmãos de qualquer jeito. Está errado e reconhece a própria traição, só prefere persistir no erro. Ele perdeu tudo. — Suspirou, e o sorriso de canto da boca que sempre lhe acompanhava no ápice de sua lascívia, agora havia desaparecido. Asmodeus ainda se importava com Leviathan. — O torneio será amanhã. Eu vou partir com Levi em sua carruagem esta noite, com a desculpa de que a minha está quebrada. Volúpia escalará até a sacada do seu quarto pela madrugada, quando tudo estiver escuro e as pessoas adormecidas, e te levará para fora sorrateiramente antes que os soldados do meu irmão cheguem para cumprir ordens. Dante estará esperando vocês duas na minha carruagem.

— Pensei que você tivesse um carro. Estamos no século vinte e um.

— A Felicia é sofisticada demais para que eu gaste os seus pneus nesse lugarzinho medíocre.

*****

Pedi para que a minha porção do jantar fosse servida no meu quarto naquela noite. Leviathan nada disse, mas sabia que havia me concedido este desejo como se fosse o último que eu faria. Me confortava presumir que eu teria mais tempo para decidir o que levaria comigo na mala. Não sabia exatamente se poderia confiar no demônio da luxúria, mas Asmodeus e suas meias-verdades me pareceram mais convincentes que o silêncio amargurado de Levi, que escondia uma ira implacável. Quase senti pena dele ao perceber que mais uma vez o rosto que ele tanto adorava o abandonaria.

Já era mais de meia noite e eu estava começando a me perguntar se lilins costumavam se atrasar, pois eu não tinha muito tempo de sobra. Então, subitamente, enquanto meus pés descalços brincavam com a textura macia do tapete, lembrei do que estava deixando para trás. O conteúdo no fundo falso do piso. Aquele que Mabel havia aberto para si. Não havia tido tempo de investigá-lo mais a fundo, mas sabendo que eu não poderia mais voltar para o ducado da inveja, decidi me empenhar em averiguar aquilo que a amante de Leviathan estava escondendo de mim.

Apoiei-me nos joelhos e arranquei a tapetaria de onde estava, dobrando-a e amontoando-a sobre si mesma. Meus dedos tocaram o piso instável, procurando as extremidades que me ajudariam a puxá-lo. Quando encontrei, cravei as unhas na linha funda e quadrada e trouxe a tampa falsa comigo. Revelando um buraco de meio metro de profundida e um baú trancado dentro dele. Não foi muito difícil puxá-lo para fora da cavidade. Na verdade, desde que bebera o sangue de Cristo, meus músculos têm se provado mais resistentes. Como se esta força viesse de dentro para fora, pulsando.

— Sempre me perguntei como que você conseguia ficar o dia todo trancada nesse quarto sem nunca se entediar. — A voz de Volúpia ecoou pelo vão, seguida de um pequeno baque, que eu imaginei ter sido propagado quando pulou para dentro através da sacada. — Agora eu sei a resposta.

— Shhh — Eu a repreendi no ato, pondo o dedo perto dos meus lábios. — Fique quieta ou ele vai-

— Me ouvir? — A morena arqueou uma das sobrancelhas e sorriu. — Nah, ele já foi embora com o meu pai. O desgraçado preferiu sair de fininho, é bem a cara dele. Mas ainda precisamos sair daqui o quanto antes, você sabe.

A lilin se aproximou com passos vagarosos, mas cheios de presença. O ar melancólico que emanava dela era como uma canção de mil sereias, convencendo-me a experimentar um mergulho mortal num mar cheio de pedras pontiagudas. Novamente, senti-me confusa sobre os meus sentimentos. Ela provavelmente sabia sobre o plano de Leviathan ao me embebedar. E portanto, era uma traidora. Sim, uma deslumbrante mentirosa desfilando numa calça de couro preta. Era parecida com aquela que usara para treinar no jardim. Logo lembrei de sua voracidade em batalha; sempre incansável e passional. E mesmo que Volúpia estivesse desarmada agora, me sentia vulnerável.

— Eu não terminei de fazer as malas ainda. — Balbuciei, colocando uma das mãos sobre o baú.

— Não tem problema, você não precisa mais usar as roupas dela. Além disso, o peso das sacolas só vai nos atrapalhar. — Ela disse, cruzando os braços sobre ao tórax. Seu olhar encontrou o buraco no chão e o objeto de madeira sob minha mão. — Ponha isso de volta no lugar, Claire.

— Não. — Protestei, a teimosia mostrando-se mais do que presente no meu tom de voz. — Preciso saber o que há dentro disso - o que Mabel estava escondendo esse tempo todo. Vocês vivem falando dessa mulher e eu não faço a menor idéia de quem ela era. Não é justo.

— As minhas memórias não lhe são o suficiente? — Volúpia murmurou, o verde de seus olhos escurecendo, seu semblante triste reaparecendo gradativamente. — Tudo o que me conforta agora são as recordações que guardei nesse colar... E mesmo assim eu te dei ele. Não poderia te contar a verdade com Leviathan sempre vigiando os meus passos e os do meu irmão, sem falar do meu pai. Eu realmente quis que você soubesse, Claire, nem que eu precisasse voltar a ter pesadelos todas as noite por isso.

— Então o sonho que eu tive ont-

— Provavelmente era uma das minhas lembranças. Isso se você dormiu com o colar no pescoço.

Ergui-me ereta e inegavelmente boquiaberta. Sim, eu havia feito isso.

— Então você cresceu ao lado de Mabel. Se apaixonou por ela.

Volúpia assentiu. Seu longo cabelo castanho brilhava à luz das velas do candelabro.

— Não pude evitar, ela era fascinante. Uma criatura doce e esperta. Até você teria se encantado.

— Mas ela se tornou a amante de Leviathan. Como exatamente isso aconteceu?

— É uma longa história. E nós não temos tempo pra conversa fiada. — Notei o ressentimento em seu tom de voz. Por Leviathan, talvez. Ou eu provavelmente eu havia tocado num assunto muito delicado. — Você tem certeza de que quer levar essa coisa com a gente?

— Não, eu posso apenas... — Comecei, segurando o cadeado do baú com uma das mãos antes de puxá-lo com força e quebrá-lo. Volúpia arregalou os olhos. — ... Abrir e pegar o que tem dentro.

— Você costumava ser forte assim antes ou só andou malhando desde as vésperas do jantar?

— Não banque a inocente, Volúpia. Eu sei que você sabe sobre o efeito do vinho que eu bebi.

Mas a lilin pareceu confusa. Tinha o cenho franzido e a cabeça inclinada, fitando-me.

— Oh. — Ela finalmente murmurou, entendendo a situação. Suas seus braços se afastaram de seu tórax, e suas mãos caíram nas coxas com um baque. Eu continuei vasculhando o baú. Encontrei três livros, alguns pergaminhos, uma boneca de porcelana e um desenho. Eram as recordações mais queridas de Mabel. Peguei todos os objetos e os joguei na bolsa larga que havia encontrado no closet. Eu estava pronta pra ir. — Você está falando do sangue de Cristo? Eu dei uma coça no nosso anfitrião quando descobri. Reabri a ferida que eu mesma havia colocado em suas costas, a cicatriz de fogo.

Lembrei-me de Leviathan agonizando no meu quarto ao amaldiçoar o nome de Volúpia. Era a cicatriz que o estava incomodando. Agora tudo fazia sentido. Mesmo assim, ainda tinha ressalvas.

— Como eu posso ter certeza de que você não está mentindo pra mim? Que está me levando mesmo para um lugar seguro? Que não é duas vezes pior que Levi, você e também o seu pai?

Volúpia permaneceu em silêncio por alguns segundos, devorando em sua mente as minhas palavras. Tentei decifrar os seus pensamentos através de sua expressão facial, mas não conseguia. Ela era distante, tão distante que doía. Não suportaria confiar nela novamente apenas para ganhar uma faca atravessada nas minhas costas depois. A lilin respirou fundo, e por um instante eu pensei que fosse desistir e me abandonar para morrer. Mas ao invés disso, diminuiu ainda mais a distância entre nós e se ajoelhou diante de mim.

— Eu juro fidelidade à ti, e somente à ti, Claire Roseflare, por esta noite e pelas outras que virão. Prometo servir-te de escudo nas batalhas pesarosas, e ser o teu porto seguro na calmaria dos dias. Premeto guiar-te pelas veredas da verdade, e ainda que as pedras destas machuquem os teus pés, eu não a abandonarei; nem se a minha vida ou a minha honra depender disso. Suas necessidades serão também as minhas, desde agora até o soar da última trombeta do apocalipse. Juro por meu cerne, pelo meu nome, por minha imortalidade e pelo poder de minha mãe e soberana. Está satisfeita?

Um raio lilás cortou o céu assim que as palavras pararam de jorrar de sua boca, seguido de um trovão. Eu permaneci atônita onde estava, encarando-a de cima, sem saber o que responder. Mas assenti com a cabeça em resposta. A morena parecia satisfeita, pois sorria genuinamente. Estava prestes a retribuir o gesto quando passos coordenados ecoaram no corredor lá fora. Estendi a mão para ela, afim de erguê-la, e seu toque melancólico causou-me um pequeno formigamento na pele. Estavam chegando, precisávamos ser rápidas ou eu certamente morreria.

— Venha. — Ela disse, puxando-me pelo braço na direção da sacada o mais rápido que pôde.

Seu corpo esguio lhe permitia ser rápida e precisa. Mas a bolsa pendurada no meu ombro atrasava-me um pouco por causa do peso avantajado. A lilin pôs uma perna para fora da sacada e depois outra, agarrando-se ao estrado para descer. Eu fiz o mesmo. E então ouvi a tranca da porta se contorcer segundos depois da minha cabeça ter desaparecido do campo de visão de quem quer que estivesse entrando no Quarto de Esmeras agora. Ao menos era o que eu esperava.

A luz que iluminava Sheol naquela noite era ainda mais suave que aquela presente durante o dia. Ainda era fria, mas não é como seu eu esperasse menos da imitação da lua. A claridade me permitiu visualizar as sombras refletidas no pátio a poucos metros abaixo dos meus pés. Eram dois soldados. Um com focinho de porco e o outro era tão franzino quanto o derivado de morcego que eu havia visto antes. Davos e Calisto. Mas havia uma terceira sombra - a qual eu não conseguia identificar. Pelo tamanho de seu contorno, imaginei que estava bem atrás dos outros. Continuei a descer. Um passo atrás do outro, minhas mãos procuravam algo para segurar. E encontravam.

— Mas onde será que ela se meteu? — A voz de Calisto fez-se presente. Eu estremeci.

— Procurem no closet e dentro do banheiro, vocês dois. — Davos começou, assertivo. Sua sombra foi ficando maior. Ele estava se aproximando da sacada. E se olhasse para baixo, seria o meu fim. — Eu vou averiguar o resto dessa porcaria.

— Não é você que dá as ordens por aqui, Davos. Sou eu. — Uma voz feminina ecoou pelo vão, fazendo-o parar. Os pés de Volúpia já haviam tocado o chão e eu estava quase lá. — Não importa quanto tempo tenha servido Leviathan.

— Ah, não enche a porra do meu saco, Joanna. Eu só quero fazer o meu trabalho e ir descansar.

E a sombra do suíno ficou cada vez maior. Eu podia ouvir as suas botas colidindo lentamente contra o piso. Ele estava se aproximando. Mais alguns degraus abaixo no estrado e os meus pés finalmente tocariam o chão. Eu podia ver a carruagem púrpura de Jerry nos esperando não muito longe dali. Volúpia caminhava na direção dele sem fazer o menor ruído. Como ela conseguia?

De repente, uma voz ao longe exclamou:

— Ela não está no banheiro, capitã! Nem no closet. — Era Calisto, reconheci. — Acho que fugiu.

— Aquela puta maldit-

A voz de Davos fora interrompida. Sua sombra diminuiu de tamanho, assim como a de Calisto. Ambos caíram de joelhos no chão no momento em que consegui pisar no pátio de mármore escuro. Haviam setas escapando de onde deveriam estar os seus respectivos pescoços. Duas flechas, pensei. A terceira sombra se aproximou da sacada. Era corpulenta e baixa, mas bonita. Joanna apoiava uma besta no ombro quando os seus olhos finalmente me encontraram.

— Vocês não acharam que iam começar a festa sem mim, acharam? — Ela abriu um sorriso e limpou as gotas de sangue demoníaco de seu rosto com as costas da mão. Seu cabelo curto fora beijado pelo vento enquanto me observava recuar amedrontada. Desceu pelo estrado atrás de nós. Mais rápida e mais confiante. — Eu não vejo a hora de comer um bom guisado no ducado do Az.

— Az? — Murmurei, confusa. Tão baixo que Volúpia só pôde me ouvir porquê apressei o passo para alcançá-la.

Mas a lilin não parecia nervosa. Apenas impaciente.

— É diminutivo de Asmodeus. — Disse ela, acenando para a mulher que descia o estrado, como se pedisse para que ela se apressasse. — Vamos, Joanna. Não temos a noite toda.

— Ela é amiga sua? — Perguntei, me aproximando da carruagem também. A porta desta se abriu como se já nos esperasse. E esperava. Dantallion tinha uma expressão orgulhosa na face. Eu entrei primeiro, e depois Volúpia. Joanna foi a última, então fechou a porta e sentou-se ao lado do gêmeo.

— Nope. Está mais para "namorada do meu irmão". — Resmungou, e o seu olhar se virou na direção das janelas acortinadas. Pegou um cobertor azul de algum lugar daquela carruagem e o apontou para mim. — Acho melhor você se abaixar e se cobrir com isso. Vamos passar pelos portões.

— Pensei que a entrada nesse ducado era feita só através de barco. — Comentei, desconfiada. Mas então me lembrei de seu juramento e obedeci. Senti o tecido me aquecer e a carruagem andar.

As ordens de Dantallion para o cocheiro foram quase indecifráveis devido aos flertes de Joanna.

— Há uma ponte do outro lado do Rio dos Fetos para carruagens, não muito depois de onde atravessamos. Agora tente descansar um pouco, você precisa. — Volúpia aconselhou, e a sua mão tocou o meu ombro por cima do cobertor. — Deite no meu colo. Fique confortável. Será uma longa viagem até o ducado do Orgulho.

— Não estamos indo para o ducado de Asmodeus? — Indaguei, apoiando minha cabeça sobre as suas coxas. Os solavancos do transporte deixavam sonolenta. Eu estava cansada.

— Não desta vez, querida. Mas prometo que iremos para casa em breve.

— E por quê não agora? — Protestei, mas sua mão afagou-me novamente. Minhas pálpebras ficaram pesadas. Eu bocejei.

— Shhh... — O som de sua voz ficou cada vez mais distante, fui adormecendo. — Fique quieta, Claire. Amanhã será um dia de glória para o meu pai. Venceremos esse torneio com sangue e luta, você vai ver. Será um show e tanto.


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Notas finais do capítulo

Não que essa seja a minha única motivação pra escrever, mas é sempre bom receber reviews. Isso me incentiva muito a continuar e deixa o meu coração mais quentinho e feliz.

Podem mandar! Eu não mordo! ♥



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