As chaves Infernais escrita por LarissaTeles


Capítulo 6
Capítulo 5 - UM BANQUETE DE SANGUE




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Os demônios deformados arrastaram-me até as escadarias. Foi difícil acompanhar seus passos largos e pesados. E eu, de tão pequena e cansada que estava, tropeçava nos meus próprios pés. O castelo era tão grande que eu já não tinha mais forças para lutar. Feridas começaram a se formar entre os meus dedos devido ao atrito causado na pele desprotegida pelos degraus enquanto subíamos. Já tinha perdido os meus sapatos em algum lugar entre a cabeça do tapete de leão e o corredor que daria para o salão de banquete. A minha barriga roncava de fome. Não havia comido nada desde que fugira de casa. A minha ânsia de matar Leviathan só havia me cegado sobre a situação do meu estômago e também sobre o verdadeiro mal-caráter que me empurrara para esta situação. Mesmo antes de eu ter pedido por isso.

Ele pôs o tarô do príncipe da inveja ali para que eu pegasse. Sabia sobre o paradeiro de Sarah, e provavelmente sobre a sua condição instável, e mesmo assim nos deixou correr o risco. Me levou ao inferno sem hesitar, mesmo sabendo que esse poderia ser o motivo de sua ruína. Me pergunto se Jerry sabia o tempo todo dos perigos que eu - uma simples mortal - estava sujeita ao trazer-me ao escritório de Leviathan. Eu poderia ter morrido naquele vão, e posso muito bem estar sendo arrastada para a minha morte agora. Certamente me levarão para alguma sala de tortura. Me aprisionarão como um animal até a hora do abate. Esse talvez fosse o plano de Jerry o tempo todo. Maldito. Espero que Leviathan o estrangule mais mil vezes se precisar.

— Você não acha isso estranho? — O demônio com caninos proeminentes, parecidos com os de um morcego, perguntou.

O outro, com focinho de porco, apenas franziu o cenho e o encarou. Pelo silêncio que pairou nas escadarias antes deste se pronunciar, percebi de imediato que o suíno não era do tipo falante. E quando abria a sua boca fétida, o fazia por mera obrigação. Não demorou muito até que ele apertasse o meu pulso sem um pingo de consideração ou piedade, fazendo-me gemer de dor bem baixinho.

— Não somos pagos para achar nada estranho, Calisto. Você é novo aqui, mas vai aprender.

— Eu sei, mas... De tantos outros lugares no castelo, por quê logo o Quarto de Esmeras? — O demônio chamado Calisto assobiou para o chão, potencialmente impressionado. — O que será que essa coisinha magricela fez para conseguir um destino desses?

— Ei! — Protestei, ofendida. — Magricela não, okay? Deficiente de massa corporal. Eu sei que pode até não parecer, mas eu tenho sentimentos.

— Quieta! — O porco reclamou, e então paramos num andar. O piso sob nossos pés brilhava intensamente; ora preto, ora azul naval. Talvez o mármore que erguia o castelo de Leviathan não fosse transcendente o suficiente, mas parecia que nós estávamos caminhando sobre as águas. Levi deveria ser um piadista. — Você tem o dever de permanecer calada!

— Não seria direito?

— Ora, não sei. Você nasceu na temporada da inveja? — O demônio - que eu mentalmente havia apelidado de Peppa - perguntou.

— E como é que eu vou saber?

Quando Peppa estava prestes a responder-me, Calisto o interrompeu.

— Sabendo, humana burra! Vocês mortais são tão desinformados que eu quase sinto pena. Dá pra acreditar, Davos? Eles só descobrem de qual estação são quando acordam mortos nos ducados.

Mas o suíno Davos não pareceu estar impressionado com a observação do novato. Muito pelo contrário, seu tédio era perceptível quando tirou dos bolsos fundos (da parte interna da armadura) um molho de chaves. Calisto lhe era insuportável. Davos escolheu uma chave esverdeada no meio de toda aquela bagunça tilintante, e abriu uma porta de madeira maciça que se estendia à nossa frente.

— Se você não sabe a qual estação pertence, então não pode exigir direitos. Nem aqui e nem em qualquer outro ducado. Vai ter tempo o suficiente para pensar nisso durante a sua reabilitação espiritual. — Davos empurrou a abertura e me atirou no que deveria ser minha prisão.

A minha atenção, no entanto, permanecia nele. Sim, eu estava fraca e faminta - e os meus polegares doíam à beça -, mas também estava furiosa. E isso era difícil de aplacar.

— Caso não tenha percebido ainda, eu não estou morta!

— Isso não é problema meu. — Davos murmurou, fechando a porta pesada e estrondosa.

Pude ouvir o atrito da chave contra o buraco da fechadura quando esta fora trancada. Ajoelhei-me no mármore negro, ouvindo o som de água correndo. Como se uma cachoeira estivesse colidindo contra as paredes de forma violenta. Como se o oceano estivesse à um diamante negro de distância. Eu virei o rosto, encarando finalmente o local de meu aprisionamento. E este arrebatou-me o fôlego.

Parecia o quarto de uma princesa. A cama tinha cortinas de seda ao redor. Os arranjos dos estofados e tecidos eram todos tingidos num verde semelhante ao das esmeraldas. O cômodo era maior que a minha casa. Mas levando em conta que eu morava num imóvel de dois quartos, uma sala, cozinha e banheiro minúsculos, não era de se admirar. Qualquer coisa seria maior que aquela porcaria. Eu só não conseguia entender a razão de eu estar ali agora. Bem, a não ser que tudo isso tenha sido um terrível pesadelo, eu, Claire Roseflare, havia quebrado um vaso de porcelana na cabeça de Leviathan. E agora, por incrível que pareça, ele decidiu retribuir-me com um aposento luxuoso. Era impressão minha ou demônios possuíam certa inclinação ao sadomasoquismo? 

Levantei e explorei o vão. Havia uma harpa dourada deixada para que eu tocasse e uma fonte de água corrente perto da sacada, cuja vista daria para todo o território do príncipe da inveja. E como os lírios traziam um aroma agradável ao ambiente, foram deixados nos vasos de marfim pelos cantos. A decoração era impecável. Numa das paredes, novamente, havia um quadro da mesma mulher que eu vi nos retratos do escritório de Leviathan. Mas este era maior e mais majestoso, digno de alguém da realeza. A criatura tinha olhos cerúleos e longos cachos dourados, e a face semelhante à de um anjo. Mas havia algo nela. Algo diferente na forma como olhava e subjugava àqueles que paravam para admirá-la. E não havia absolutamente nada de angelical nisto. Era inveja. Inveja por eu estar neste lugar, por respirar, por ter um coração pulsante. Invejava-me por ter roubado a atenção de seu mais querido amante. Não que eu tivesse alguma intenção de roubá-lo, então a ignorei.

Aproximei-me da fonte. O barulho de água corrente não vinha somente dali. As paredes daquele castelo escondiam segredos, e eu podia sentir em minha pela um calafrio quando pensei ter sentido a presença de alguém ali. Atrás do mármore, espiando meus movimentos com expectativa. Eu certamente estava ficando louca. A fome certamente começara a brincar com a minha sanidade. Leviathan era também conhecido como o monstro dos mares, aquele que se alimentava dos pobres viajantes e das carcaças de suas embarcações. O demônio mais temido pelos exploradores durante a expansão marítima. Bem, fazia sentido toda essa sua obsessão pela água, talvez ainda se orgulhasse dos títulos que conquistara. Mergulhei na fonte as mãos machucadas pelo aperto das garras dos demônios deformados, lavando o sangue seco que derramara das feridas. E estas logo se curaram.

— Mas que porra-?! — Arquejei assustada, tirando as minhas mãos da água imediatamente. Encarei-as com os olhos arregalados e a boca entreaberta. Não demorou muito para que eu também mergulhasse os meus pés em carne viva no líquido milagroso. O alívio veio logo depois. — Agora só me falta um pedaço bem grande e gorduroso de frango frito!

E então, como se o Todo Poderoso tivesse ouvido as minhas preces, alguém bateu na porta.

— M'lady? — A voz feminina ecoou hesitante pelo quarto através das frestas na madeira.

— Entre! — Eu disse, como se tivesse alguma escolha.

A maçaneta contorceu-se à medida que a porta era destrancada. Foi escancarada com um rangido alto e agonizante, revelando a figura baixinha e destrutiva atrás dela. Meus olhos não conseguiam acreditar no que estavam vendo. A garota de cabelos escuros e sardas nas bochechas parecia estar igualmente estupefata. Eu a conhecia. Jerry a tinha assassinado.

— Sarah?! O que você está fazendo aqui?

— Eu é quem te pergunto! — Ela resmungou, trazendo consigo uma bandeja com algumas toalhas e sais de banho. Entrou no quarto antes dos guardas tornarem a fechar a porta. Deixou o objeto sobre a cama e se recompôs para examinar-me. — Você não está morta, está? Pois não parece.

— Não, querida, eu estou vivíssima. Só não posso dizer o mesmo de seu irmão. 

— Então é verdade? Oh, não... — A menina caiu sobre os próprios joelhos. Tinha o semblante devastado enquanto uma de suas mãos gordinhas pousava sobre onde deveria estar seu coração. — Não. Não. Não... Não! Eu juro que não foi culpa minha! Era para a bala ter atingido você e não ele! Mas que merda!

— Ah, claro, isso me deixa extremamente aliviada! — Fiz uma careta amargurada e me aproximei da falecida. Se olhares pudessem matar, eu certamente já a teria fuzilado. Pela segunda vez. — Você tem noção do que fez? Não só o seu irmão morreu por sua causa, até onde eu sei, mas também as outras vítimas do maníaco da cidade! Porque é isso o que você é, Sarah, uma assassina!

Segurei-a pelos ombros e joguei-a contra a parede. A morena derrubou algumas peças decorativas quando seus braços espalhafatosos atingiram o chão. Eu não sabia que mortos podiam chorar ou gritar de dor, mas era exatamente isso o que ela estava fazendo agora. 

— Me desculpa! Por favor, me desculpa! — Sarah protestou, colocando as mãos sobre o rosto, com medo de que eu a machucasse ainda mais. — Eu fui estúpida e fraca! Eu não deveria ter feito um pacto com Leviathan, eu sei! Mas eu estava tão cega pelo ódio e pela inveja que eu-

— Inveja? — Eu franzi o cenho, achando graça na piada contada pela outra. — Inveja de quê, Sarah? Você sempre teve tudo o que quis!

— Você diz isso porque é bonita! Nunca fizeram piada com o seu peso. Nunca te jogaram numa lata de lixo só porque você não calçava trinta e seis! — Ela gritava a plenos pulmões. Eu comprimi os lábios; não imaginava que ela se sentia assim. Sarah era bonita. Seu peso nunca tinha importado para mim. — Escute, eu gostava de um garoto da minha escola. Agora isso parece idiotice, mas eu pedi para que uma amiga minha entregasse-lhe um bilhete que eu havia escrito, convidando-o para ir ao baile comigo. Mas ele gostou dela ao invés de mim. Claro, Jane era estupidamente bonita, não o culpo. Mas fiquei com raiva e voltei pra casa transtornada quando descobri. Procurei algumas coisas sobre feitiçaria na internet e fiz um pacto com um demônio pra matar a desgraçada. 

— E o que as outras garotas tinham a ver com isso, Sarah? Por que você decidiu simplesmente matá-las?

— Eu não decidi, Claire! Leviathan me usou! — A morena sussurrou, enxugando as lágrimas que encharcavam-lhe o rosto. — Se eu pudesse fazer tudo diferente, as coisas não teriam tomado esse rumo desastroso. E o meu irmão ainda estaria-

— Vivo? — Completei, amargamente. 

Ela enxugou as lágrimas e assentiu.

Sem saber direito o que fazer - se deveria socá-la até que seu nariz se deslocasse para a nuca ou se deveria consolá-la -, obriguei-me a sentar ao seu lado em silêncio. A garota ainda estava tremendo de medo de mim - provavelmente por causa do empurrão -, e raramente permitia que nossos olhares se cruzassem, mas ainda assim se esforçava para continuar falando.

— O seu amigo Jerry... — Sarah começou, com a voz rouca e hesitante. — Leviathan uma vez me disse que o estava procurando. Há alguma possibilidade dele ter me usado para matar aquele monte de garotas apenas para encontrar algum rastro do demônio da luxúria? Bem, se ele estava na cidade, deve ter fodido com uma ou duas das minhas vítimas, certo?

Eu assenti com a cabeça em resposta. Aquilo fazia sentido.

— Elas deveriam ser todas da mesma temporada. É por isso que as encontrei nesse ducado.

— Você poderia, por favor, me explicar todo esse negócio de temporada?

— Claro. — Ela deu os ombros e buscou na minha cama as toalhas e os sais coloridos. — Mas primeiro você precisa tomar um banho. Tenho ordens urgentíssimas para arrumá-la antes do jantar.

— Que jantar? — Perguntei curiosa. Minha barriga logo roncou em agradecimento.

Sarah se ergueu e me puxou consigo, levando-me até uma porta de vidro que daria para uma sala de banho estilo Roma Antiga. Vapor se espalhava pelos azulejos de diamante e a água da grande banheira borbulhava. A garota tirou seus sapatos e pôs os frascos coloridos sobre a pia de mármore. Parecia escolher qual desses usaria comigo. Não conseguia me lembrar da última vez que tomei banho numa coisa grande dessas. O encanamento do chuveiro lá de casa costumava sempre entupir.

— A menos que tenha outra humana viva aqui, acho que é para você. Demônios não precisam se alimentar, fazem isso apenas por prazer. Você tem muita sorte, Claire, pois será um banquete.

— Oh. — Arquejei, finalmente entendendo aquela parte da situação. — Talvez ele só esteja tentando me engordar antes de tirar a minha vida.

— Duvido muito. Se quisesse, Leviathan provavelmente já teria feito isso.

Por algum motivo isso me deixou desconfortável. Mas Sarah estava concentrada demais em seus sais para perceber tamanha incerteza na minha expressão. Despejou todo o líquido de um frasco rosa na banheira e adequou a temperatura da água. E eu, por outro lado, permaneci absorta em meus próprios pensamentos. Tinha medo de que Leviathan estivesse me tratando como uma cópia fiel da mulher pintada em seus retratos. Não queria que o demônio pensasse que tinha qualquer poder ou direito sobre mim. Afinal, Mabel poderia até se parecer comigo, mas não há possibilidade alguma de termos o mesmo temperamento.

— Dispa-se. — Sarah ordenou, enquanto tirava seu uniforme. Infelizmente, ela manteve as roupas íntimas. — Não me olhe com essa cara, apenas obedeça e entre na banheira.

— Tão cedo assim? Quero dizer, você não vai nem me levar para jantar antes?

— Idiota. — Ela revirou os olhos e riu, envolvendo uma toalha ao redor do corpo. — O que está esperando? Não temos muito tempo. 

E então eu tirei o casaco vermelho e o cachecol, seguido dos sapatos e da calça jeans azul. O tarô de Leviathan ainda estava num daqueles bolsos. Não sabia se deveria devolvê-lo ao dono ou se era melhor mantê-lo em segredo comigo até eu descobri para que servem e porque estou com eles. Acho que escolheria a segunda opção, só por precaução. Despi-me por completo, deixando que Sarah visse as marcas roxas que eu ainda tinha pelo meu corpo. Estas que foram brutalmente causadas pelos punhos do meu pai. Ela agora parecia desconfortável. Eu dei de ombros e lentamente entrei na água quente e cheia de espuma, encostando-me nas laterais da banheira para que a garota morta pudesse esfregar as minhas costas com uma esponja.

— Sobre as temporadas, como isso funciona mesmo? — Perguntei, enfim quebrando o gelo.

— Ouvi dizer que há um grande torneio em Sheol a cada cinco anos, onde os sete príncipes do inferno competem entre si para ganhar o direito de controlar a natureza dos humanos que tiverem o desprazer de nascer nesse período. Cada príncipe representa um pecado capital, mas acho que isso você já sabe.

— E o que isso tem a ver com os ducados? — Questionei, enquanto me lavava gentilmente. Estar ali era de certa forma relaxante. Lentamente, os hematomas desapareciam com a água do castelo.

— Quando você morre, a sua alma é mandada para um tipo de reabilitação no ducado do príncipe que te governa. Bem, eu nasci na temporada da inveja. Então trabalho como escrava para Leviathan até que a minha alma esteja enfim purificada e pronta para reencarnar novamente.

— Então aquela festa de despedida de temporada-

— Sim, haverá um torneio em breve. Ouvir dizer que as batalhas são sangrentas e brutais. Eu não vejo a hora de poder assistí-las.

*****

Sarah vestiu-me com esmera. Deveria ter suspeitado sobre as intenções de Leviathan através do significado desta palavra, mas estava nervosa demais para pensar direito. Algo feito com esmera é certamente realizado com imensurável capricho e deleite. O vestido lembrava-me da Era Tudor, e possuía um vibrante pigmento de vermelho-escarlate no tecido e também detalhes bordados à fios de ouro. E por mais que o decote deixasse meus ombros à mostra, tinha as mangas compridas. Era simplesmente lindo. Me perguntava quem mais estava convidado para o banquete. Seria Lúcifer e sua rainha, Lilith? O que havia de tão importante nisto para que eu precisasse usar algo tão caro?

Esperava que Jerry, ou melhor, Asmodeus, não estivesse presente no banquete. Não queria sequer olhar em sua face novamente. Mas sabia que ele era a minha única chance de voltar para cima, para o mundo dos vivos, para o lugar onde eu verdadeiramente pertencia. Não sou burra a ponto de deixar claro que sei sobre seus planos malignos, ao menos não explicitamente. Fingir não seria uma missão tão fácil, visto que o desgraçado pode ler os meus pensamentos sempre que quer. Me pergunto se isso é algo que todos os demônios podem fazer com os mortais ou é meio que um dom que apenas a realeza possui.

Um arrepio percorreu-me a espinha quando estava prestes a bater na porta, ao lado de Sarah, afim de que deixassem-me sair. Olhei para trás, instintivamente, e Mabel parecia olhar para mim. Eu notei, finalmente, que naquele quadro ela também estava usando um vestido escarlate. E as flores bordadas em linhas douradas de sua vestimenta eram as mesmas que ornamentavam o tecido da minha. Leviathan decidiu vestir-me como uma de suas roupas? O quão velho aquilo deveria ser? Era possível que ele ainda estivesse esperando que eu ficasse tão estonteante no vestido quanto ela. Bem, o príncipe da inveja provavelmente não contava com o fato de que a falecida possuía seios bem maiores que os meus. Eu estava radiante, mas jamais seria como ela. E estava farta disso.

As portas finalmente se abriram e a minha atenção voltou para os guardas lá fora. Por algumas horas eu estaria livre da minha prisão. Poderia até conversar com o dono desta imensa fortaleza e lhe explicaria que tudo não passava de um mal entendido; e também pediria permissão para ir embora. Bem, a serpente do Castelo Negro tinha Jerry, não tinha? Era isso o que Levi estava procurando todo esse tempo... e agora ele finalmente o tinha encontrado. Final feliz, ao menos para mim. E se Deus decidisse fazer as minhas vontades, ambos continuariam apodrecendo no inferno. Sinceramente, eu só queria ir para algum lugar bem longe de toda essa loucura. Qualquer lugar. Mas havia uma figura me esperando no início do corredor. Ele estava encostado na parede com um livro de poesia aberto numa mãos e um sorriso de canto agraciando-lhe o belo rosto. Ah, como eu queria matá-lo.

—  Boa noite, senhorita. — Jerry disse, fechando o livro num baque e guardando-o de novo no bolso de seu terno-inglês mágico. O objeto logo desapareceu no buraco costurado do tecido. 

— Vai se foder. — Eu resmunguei. Não posso dizer não tentei me controlar.

Asmodeus, por outro lado, não conseguiu conter o riso - e ele parecia realmente estar tentando ficar sério. Mas quando as suas tentativas falharam, decidiu vir de bom grado na minha direção, sem sequer tirar os olhos heterocromáticos de mim. Nem mesmo por um segundo. 

— Acho que não tive a oportunidade de pedir perdão pelos prévios eventos. Ao menos não apropriadamente. E pra ser sincero, eu não imaginei que você fosse presenciar uma cena tão deplorável como aquela, mas o meu irmão tem um temperamento difícil. Entenda, é de família.

— Também é de família o hábito de vestir pessoas com roupas de gente morta, seu cretino?

— Não, isso é mesmo uma peculiaridade de Levi. Volúpia até mesmo se ofereceu para te emprestar uma blusa ou duas, mas ele insistiu. Não há como negar a autoridade de uma anfitrião em sua própria casa, Claire. É uma regra básica de etiqueta.

— Você está no inferno, Asmodeus. A moral dos homens não deveria importar aqui.

—  E não importa. — Ele retrucou, estendendo a mão para acompanhar-me até o salão de banquete. Ouvir-me chamá-lo pelo seu verdadeiro nome o deixava desconfortável. — Mas isso é algo nosso. É diferente.

— Não. — Eu o recusei e me afastei, consideravelmente enojada. Tentava a todo custo evitar pensamentos que delatassem a minha ira, mantendo a minha mente ocupada com as coisas mais aleatórias que eu pude lembrar. — Eu posso andar sozinha. Fique longe de mim.

— Isso envolve mais do que apenas o vestido, não é?

— Não brinca, Sherlock! Como você descobriu?

— Claire... você está pensando em pôneis. Isso nunca é um bom sinal. 

— Eu estava sendo sarcástica, Asmodeus.

— E eu não dou duas fodas pra isso. — Esclareceu, pegando um dos meus braços e enroscando-o com o seu. O demônio da luxúria conseguia fingir um sorriso tão bem quanto eu poderia controlar a minha raiva. — Isso envolve muito mais do que o penteado que a sua amiguinha morta fez em você. Então tente ser educada e um pouco agradecida. Pois é graças à mim que você ainda está viva.

—  Eu te odeio. — Murmurei, enquanto o loiro me guiava pelas escadarias. Andávamos lado a lado; eu não tinha outra escolha. Jerry era forte e estava irritado. Era hilário. — Definitivamente.

— Vou superar. — Ele deu de ombros, ajudando-me com o vestido e os degraus. — Agora sorria.

Não demorou muito para que chegássemos na sala de banquete. A mesa de jantar era feita de Maracatiara e poderia acomodar mais de cem pessoas. Os arranjos eram feitos em vasos de vidro e rosas amarelas e violetas. Os grandes candelabros acima de nossas cabeças estavam com todas as suas velas acesas. Havia dezenas de cadeiras e espaços vazios. As refeições seriam postas apenas para cinco pessoas. Volúpia, eu, Jerry, Leviathan e mais alguém que eu não conhecia. O anfitrião e a filha de Asmodeus já estavam sentados à espera. Tal como um homem que parecia ser a sua cópia com barba. Ambos tinham a pele bronzeada e os olhos brilhantes. No entanto, a mulher se destacava dentre todas aquelas flores. Nem mesmo o olhar insistente do príncipe da inveja era capaz de roubar a minha atenção da forma como ela fazia. Volúpia usava um vestido longo e negro como a noite, e eu não conseguia parar de pensar no quanto ela estava linda.

Jerry olhou-me com malícia e dessa vez eu percebi que seu sorriso era genuíno e orgulhoso.

— Gostou? Fui eu que fiz.

— Ah, cale a boca, pelo amor de D-

— É sério, se você a acha bonita, deveria se animar para conhecer a mãe dela. Foi Lilith quem inspirou a deusa Afrodite. Ela é criação mais bela de meu Pai. Eva nem se comparava.

Mas parecendo contrariado com os nossos burburinhos, o anfitrião, Leviathan, levantou de seu assento e limpou a garganta, fazendo-se ser percebido.

— Vejo que ambos já fizeram as pazes. Mas não é educado cochichar durante o jantar.

— Como você sab-

— Por que você acha que as paredes deste castelo são repletas de dutos d'água, minha querida? É para que eu saiba de tudo que acontece sob o meu teto. Agora queira se sentar, por favor. Espero que saibas que estais simplesmente encantadora esta noite.

Comprimi os lábios e caminhei em silêncio até a cadeira que me fora reservada, bem ao lado de Volúpia. Asmodeus se sentou no lado oposto da mesa, tendo o homem desconhecido à sua esquerda. Havia uma infinidade de talheres perto do meu prato. Era difícil me lembrar quais eram os garfos apropriados para cada tipo de refeição. Não me preocupava com isso desde que minha família falira. A morena pareceu notar o meu nervosismo e inclinou o rosto para sussurrar-me algo enquanto Leviathan conversava com o quinto convidado.

— Este é o da sobremesa. — Disse, com um sorriso gentil no rosto. Eu apoiei os dedos em outra colher prateada e depois sobre um conjunto de facas maior. Ela assentiu.  — Sopa e prato principal.

— Obrigada. — Sussurrei, fitando os seus olhos timidamente. Havia me enganado na festa, pois estes não eram azuis, mas sim de um verde-mar intenso e cativante. — Não sei o que faria sem você.

— Não precisa agradecer. — Ela retribuiu no mesmo tom, não muito antes de se recompor na cadeira e umedecer os lábios. — Você está linda, Claire. E eu sinto muito por seres obrigada a usar o vestido dela. Não é justo. Você merece algo melhor... e só seu.

Não sabia de onde aquilo tinha vindo, mas as minhas bochechas coraram. O rubor, ainda que leve, me parecia estranho. Eu quase nunca corava. Então agradeci mentalmente às forças de Sheol pelo jantar ter começado a ser servido bem na hora que a lilin viraria o rosto para me encarar. Teríamos lagosta cozida com legumes, acompanhamentos bem acebolados, um ensopado divino de carne e uma grandiosa torta de frango. Sem falar nas saladas e outros aperitivos exóticos que enchiam o salão com um aroma rico e agradável. Os servos do castelo - gente morta - iam para lá e para cá com as bandejas de comida e garrafas de bebida. Leviathan era mesmo detalhista. No entanto, eu confesso que gostaria de provar um pouco de cada prato. A minha barriga já estava roncando novamente, era tentação demais para que eu pudesse suportar ou resistir.

Um dos mordomos me serviu com um pedaço da torta e purê de batata com açafrão e ervilhas. Meu prato estava tão colorido que eu nem mesmo estava prestando atenção na conversa que se desenrolava entre os convidados. Não gostava de conversar na hora do jantar. Havia perdido o costume de sentar à mesa com a minha mãe e o meu pai para aproveitar a refeição e partilhar sobre as venturas do meu dia. Comer havia se tornado algo mecânico para mim. E eu não seria mal educada a ponto de falar com a boca cheia de comida. Os sabores se misturavam na minha boca e me traziam uma sensação nova de prazer. Era a melhor refeição que eu já havia experimentado em toda a minha vida. Contudo, a minha atenção só foi reconquistada novamente pelo resto do ambiente quando encheram a minha taça com um líquido tão vermelho e denso quanto sangue.

— Ei, o que é isso? — Questionei, pouco após engolir o bolo formado em minha boca.

— Vinho, minha querida. — Leviathan respondeu, tinha um sorriso no rosto. — Pode beber.

— Então não deveria ser mais escuro? — Perguntei desconfiada. Ele poderia muito bem estar tentando me envenenar.

— É de uma safra muito antiga e especial. Pedi para que Dantallion fosse pessoalmente buscar uma amostra pra você.

— Quem é Dantallion?

— O cavalheiro sentado ao lado de Asmodeus. Irmão gêmeo de Volúpia e demônio da estratégia.

O rapaz então assentiu e mostrou-me um sorriso de pura satisfação.

— É um imenso prazer conhecê-la, mademoiselle.

— Igualmente. — Respondi, por mera educação, e sua irmã sorriu. Gostaria muito de ter deixado a situação com este tom leve e repentinamente agradável. Mas eu necessitava de respostas. — Diga-me, por que teve todo esse trabalho para me trazer vinho, Leviathan?

— Ora, porque este é o seu preferido, querida.

Jerry parou de comer no mesmo instante para me encarar. Os olhos arregalados, como quem sabia o que eu estava prestes a fazer. Ele balançava a cabeça negativamente para que eu desistisse. Mas eu era teimosa e estava tomada pelo asco da obsessão de Leviathan.

— Eu nunca sequer bebi uma gota de vinho na minha vida! Você está me tratando como Mabel, não está? — Empurrei a minha cadeira para trás e levantei-me bruscamente. Volúpia segurou a minha mão, tentando me acalmar, e eu me desvencilhei de seu toque. — O que você sabe sobre mim? Vamos, diga! Estou farta de ser tratada como uma marionete por Asmodeus e como a réplica de uma mulher morta por você!

Leviathan também ficou de pé, mas em sua voz estava clara a dor da perda de uma amante.

— Mabel, por favor-

— A porra do meu nome... — Eu vociferei para os quatro cantos da terra. Empurrei os pratos e as bandejas de comida todas para o chão. Num ultimato de raiva, chutei a parte da mesa de Maracatiara onde ninguém estava sentado. Fazendo-a escorregar com os vasos de vidro e talheres para o outro lado do salão. Uma força sobre-humana que eu não sabia que tinha. — ... É Claire Roseflare!

E a taça de vinho que eu outrora segurava entre os dedos, fiz questão de virar na boca, bebendo o líquido carmesim com goles rápidos e profundos. O gosto de álcool, bem lá no fundo, obrigava-me a parar para apreciar a qualidade da bebida, mas forcei-me a continuar freneticamente até a última gota. Terminei com um arquejo, apreciando as faces assustadas me encarando. Exceto a de Jerry, ele não poderia estar mais decepcionado. Uma das mãos tampava a sua testa e ele olhava preocupado para os restos de lagosta em seu prato de porcelana. A culpa não era minha se ele havia colocado expectativas na pessoa errada. Peguei a garrafa de vinho das mãos do mordomo e comecei a andar na direção da saída. Eu era a personificação de um furacão.

— Pra onde você vai? — Asmodeus perguntou, impaciente.

— Encher a cara e, se eu tiver sorte, morrer!

— Se você fizer isso, vai ficar presa no meu ducado para sempre! — Ele retrucou.

Eu teria paralisado se não estivesse longe demais para voltar. Meus joelhos fraquejaram mas eu estava determinada demais para chegar até a porta e voltar para o meu quarto. Ou melhor, para a minha prisão. Eu era nascida da luxúria. Asmodeus era o demônio que me governava. Talvez por isso ele fosse o único a conseguir desvendar os meus pensamentos. Esta poderia ser a razão para a lascívia ter despertado tão cedo em minha natureza. Não era de se admirar que o meu rosto estivesse vermelho de raiva e a minha respiração oscilante. Ouvi passos pesados vindo na minha direção, bem quando eu estava prestes a empurrar a porta e sair, mas a voz autoritária de Volúpia os fizeram parar.

— Não! Fiquem aqui e deixem-me tentar acalmá-la desta vez.

Eu parti e não olhei para trás. A lilin, no entanto, me seguiu; alcançando-me já nas escadarias.

— Claire, espere! — Ela pediu, segurando a minha mão e fazendo-me desacelerar os passos.

— Ah, finalmente alguém aqui sabe o meu nome! — Resmunguei, levantando a outra mão na altura dos ombros dramaticamente apenas para deixá-la cair num baque sobre o vestido. — O que você quer? Que eu volte para lá e peça desculpas?

— Claro que não. Você só exigiu que te tratassem como o ser humano único que você é. E não há nada de errado nisso.

As esmeraldas de seus olhos traziam consigo toda a esperança do mundo. Ela realmente desejava que eu acalmasse os nervos e engatasse uma conversa amistosa consigo. Mas a sensação de angústia e solidão me tomou novamente e me impediu de ceder àquele intenso olhar. Puxei meu braço de volta, afim de que a morena me soltasse.

— Você quer parar de me tocar?!

— Não. — Ela respondeu, talvez mais rápido do que deveria. Mas respeitou a minha vontade e afastou as suas digitais melancólicas de mim. — Eu sei porque você está irritada, de verdade. Sinto muito pelas mortes daquelas trinta e sete meninas. Asmodeus não vale tudo isso.

— Eu pensei que fossem vinte e sete.

— Os outros dez corpos ainda não foram encontrados, provavelmente.

— Leviathan matou o meu melhor amigo...

— Eu perdi alguém especial para mim também, Claire.

— Pra você é fácil falar, pode visitar a alma desta pessoa a qualquer momento nos ducados.

— Não, não posso. — A lilin encolheu os ombros e procurou o pingente de seu colar, segurando-o como se o rubi deste fosse lhe trazer algum conforto. — Ela já reencarnou.

Senti-me automaticamente envergonhada por tê-la tratado tão mal.

— Eu sinto muito.

— Não sinta. Ela está num lugar bem melhor agora. — Volúpia sorriu de canto e colocou as mãos atrás de seu pescoço, abrindo o fecho de seu colar antes de oferecê-lo à mim. — Quero que fique com isto. Vai te proteger.

Sua expressão era tão serena que, sem perceber, acabei perdendo a chama da ira que havia se acendido em mim. E nem mesmo me importava. Tentei recusar, mas a mulher insistiu que eu usasse seu rubi. Não tive outra escolha a não ser virar a parte inferior de meu cabelo que estava solta para o lado, afim de que ela mesma colocasse o colar envolta de meu pescoço. E ela o fez sem dizer uma palavra sequer. Apenas o som oscilante de sua respiração dedurava o quanto ela estava nervosa.

— Pronto. — A mais velha disse, como se pedisse para que eu virasse de frente outra vez. E vislumbrou-me com um sorriso largo no rosto. — Mas agora eu preciso mesmo ir. Leviathan deve estar descontando toda essa confusão no meu pai.

— Me desculpe.

— Está tudo bem. Vá beber um pouco e logo as coisas se resolverão. — Ela disse, dando os primeiros passos para trás, preparando-se para ir embora. — Boa noite, Claire.

— Boa noite, Volúpia.

E quando outra se virou, pude ver que tinha uma tatuagem nas costas. Observei-a partir até que sua bela figura desaparecesse do meu alcance. Subi os restantes degraus da escadaria e com a ajuda de um dos guardas, Calisto, consegui entrar no Quarto de Esmeras. Não demorou muito para que eu terminasse o vinho da garrafa e, depois de meia hora pulando na cama, adormecesse com o pingente de Volúpia bem próximo do meu coração. Por consequência ou ironia do destino, as imagens que tomaram-me o subconsciente eram definitivamente esplendorosas - mas nada que se comparasse ao evento desta noite. E sua procedência era misteriosa: ora de sonho, ora de lembrança.

Desta vez, como uma mera expectadora, pude ver que era verão e a escuridão da noite já havia abraçado toda a extensão do reino Francês. A lua cheia iluminava o orfanato de San Francisco, agraciando-o com um belo tom prateado. Enquanto todos os outros nobres e desafortunados dormiam em suas próprias camas, usufruindo de sonhos tão agradáveis quanto a brisa fresca que lhes soprava o rosto, duas crianças remelentas e pobres permaneciam de olhos bem abertos num dos quartos mofados. Partilhando segredos enquanto o sono não lhes abatia. A menina loira era sempre a primeira a começar um novo diálogo. Os cabelos dourados enroscavam-se sobre as cobertas remendadas de sua cama, enquanto encarava o rosto de uma outra menina. Esta, por sua vez, era bronzeada e esguia. Mas que criança estranha ela era! Mabel jamais conhecera alguém tão quieta e taciturna quanto sua companheira de quarto.

— Não durma agora. — Mabel a proibiu, com a voz rouca para que ninguém acordasse. — Você prometeu que me responderia tudo o que eu te perguntasse hoje.

A mais velha então franziu o cenho, controlando-se para não rir. Se mostrasse o quanto achava graça na curiosidade da loira, estaria perdida. Mas a verdade era que Volúpia gostava da noite. Gostava do silêncio que ela trazia consigo, gostava de estar em meio a suas sombras, aventurando-se enquanto parte do mundo se entregava a doces sonhos que os levava a outros mundos, que os transformava em outros personagens. Mas sequer tais detalhes poderiam atrair sua atenção naquela noite; nada a arrastava para fora quando tinha a loira como companhia, nada poderia encantá-la mais do que a mera presença de Mabel. Não que ela lhe contasse isso. Não, ela nunca deixava isso escapar. Apreciava sua companhia em silêncio, pego pela sua doçura, por sua voz quase infantil, por seus sorrisos fáceis. Não havia nada no mundo que pudesse ser mais precioso, ela sabia. Contudo, quase nada em sua postura demonstrava isso. Tinha sempre uma expressão austera vestindo-lhe o rosto, uma garota de poucos sorrisos, poucas palavras. Sentia-se também estranha quando perto dela. Era algo que brotava no mais profundo de seu estômago e lhe atormentava, mas era uma sensação que ela havia aprendido a estimar. Uma sensação pela qual ansiava sempre. E, enquanto olhava para o teto do quarto, engolido pela escuridão, foi aquela mesma sensação que lhe fez cócegas por dentro quando ouviu a doce voz de Mabel chegar até ela.

— Eu não disse nada, Mabel. Vá dormir. — Sua voz ecoou pelo quarto, invadindo o escuro, e ela alcançou as cobertas, trazendo-as até seus ombros, dando as costas para a outra.

Volúpia manteve as íris atentas, pois não tinha sono. Mas a pequena não gostava de ser contrariada, então levantou de sua cama e subiu no colchão alheio, enfiando-se debaixo das cobertas dela. Pôs-se a beliscar-lhe as costas até que esta cedesse e virasse para encará-la novamente. E quando o fez, Volúpia pôde vê-la claramente: Suas bochechas coradas e seus sorrisos quentes e cheios de energia. E sem dar-lhe tempo para protestar, Mabel banhou-a com inúmeras perguntas. Todas aquelas que vinham à sua cabeça e a impediam de repousar.

— Como é que os morcegos conseguem ver no escuro, Lupy? Como os pássaros sempre sabem para onde ir? E por que as abelhas não fazem geleia ao invés de mel? Você vai mesmo casar comigo quando a gente crescer?

Os olhos da garotinha refletiam sua imensa curiosidade. Volúpia tinha doze anos e Mabel tinha sete. A morena respondeu cada uma de suas dúvidas com tamanha paciência e destreza que apenas as pessoas mais estranhas do reino teriam. Era como se somente ela tivesse a habilidade de combinar a sua loucura à da menor. E no entanto, Volúpia não era nenhuma sábia, nem mesmo possuía as respostas para todas as suas perguntas, mas com afinco ofereceu-lhe o que sabia e, para aquelas que não tinha certeza, ela deu-lhe suposições. A última, no entanto, afogou as palavras em sua garganta. Aquela sensação novamente se manifestou, deixando-a dormente pelo mais breve segundo.

— Sim, minha pequena, eu irei... — Volúpia afirmou, sua própria resposta pegando-lhe de surpresa. Ainda que as palavras servissem apenas para colocar um sorriso no rosto da mais nova, ela descobriu que aquilo era o que também desejava. Mesmo que isso significasse que elas poderiam ser queimadas lado a lado numa fogueira. A jovem Lilin a protegeria. — Eu ainda irei me casar contigo algum dia.

— E eu serei a noiva mais linda de toda Paris?

Volúpia assentiu.

— E também a mais feliz, é uma promessa.

A mais velha também explicou-lhe como a lua controlava as correntezas e o balanço dos mares, algo que tinha aprendido com um velho marinheiro que visitara o orfanato. E então Mabel disse que Volúpia era como a lua e ela como o mar, sempre seguindo os seus passos como se a mais velha fosse o centro de seu mundo. Volúpia sorriu fracamente para tal resposta, abstendo-se de ir mais longe. A morena inclinou-se, depositando um beijo demorado na testa da loira e virou-se novamente, outra vez dando-lhe as costas. Sabia que não poderia esconder por muito tempo que não era humana como a outra, e que seu cerne logo despertaria e ela teria que partir para treinar no submundo. Então permaneceu quieta e pensou em como na verdade a situação era inversa. Mabel era como a lua e ela como o mar, e ela sempre a seguiria, pois a mais nova era não somente o centro de seu mundo, mas sim o seu mundo por inteiro. A pequena, por outro lado, não entendeu o silêncio repentino da morena; mas logo permitiu que o sono também deixasse as suas pálpebras pesadas.

E então, gradativamente, eu acordei.


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Notas finais do capítulo

O próximo capítulo não tem previsão para ser postado, mas já está em processo de escrita.

~~~ Não que essa seja a minha única motivação para escrever, mas é sempre bom mandar reviews. Afinal, isso deixa o coração de qualquer autora mais quentinho. E me incentiva a continuar postando.



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