As chaves Infernais escrita por LarissaTeles


Capítulo 4
Capítulo 3 - AS TRÊS CABEÇAS NO PEDESTAL PRATEADO




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Jerry nos guiava pela escuridão quase perturbadora de um lugar abandonado da cidade. Jamais imaginara precisar seguir por este caminho, mas eis-me aqui. Empurrando pedaços de escombros e madeira podre afundadas na neve, para assim abrir caminho e me deslocar. Tinha um objetivo; e este era afastar Sarah das mãos sujas do meu pai. Não era justo que ele machucasse mais alguém. Minha cabeça latejava só de pensar que Tristan poderia descobrir sobre o meu passado. Socos e murros não eram nada, nem mesmo uma arma apontada para a minha testa significava alguma coisa em comparação ao que sucedia quando meu pai decidia se esgueirar pela porta do meu quarto. Acredite, o terror do meu lar ia muito além disso. Perguntava-me também se esse completo estranho de cabelos platinados estava certo sobre o baralho da morte. Não confiava nele. Como poderia? Da última vez que ousei depositar a minha confiança em alguém, fui violada. 

No entanto, continuava impulsionando-me na direção de um lugar em ruínas. Avistava o prédio de uma escola a poucos metros de onde estava. Faltava muito pouco para que Tristan, o demônio e eu alcançássemos o lugar. Ouvira algumas lendas sobre o Recanto dos Corvos. Nem mesmo a polícia local tinha coragem de adentrar aquelas colunas.O apelido fora dado à escola abandonada por ser abrigo para essas aves nojentas da cidadela; as quais pareciam apreciar a minha companhia. Alguns diziam que a aparência da estrutura escolar era apenas uma fachada para um programa de investigação contra os nazistas organizado durante a segunda guerra mundial. Aquela para mim era a história mais improvável de todas. Não cheguei a tempo de saber se, de fato, alunos frequentaram aulas no prédio. Muitos dizem que sim, mas um incêndio acabou prendendo as almas daquelas crianças nas paredes mofadas e deterioradas. Contudo, não vejo tais marcas de incêndio. E por mais que me esforce em encontrá-las, é completamente em vão. E por último, mas não menos importante, há a minha teoria de que a companhia de demolição simplesmente esqueceu de derrubar esse grande monstro de concreto. Ninguém dá duas fodas para Raventown mesmo.

— Você tem certeza de que a minha irmã está aqui? — Tristan finalmente interrompeu o silêncio gélido entre nós. Jerry umedeceu os lábios antes de responder.

— Sim.

— Você a viu entrar nesse pandemônio abandonado? Por acaso pensou em impedi-la?

Jerry ponderou novamente. Decidi ficar fora daquela discussão. Estava empenhada demais em tentar decifrá-lo, em capturar algum traço de mentira na sua fala. E fitando o seu rosto de perfil, pude perceber que ele não tinha muita habilidade em lidar com sentimentos humanos. Muito menos com as reações imprevisíveis e ilógicas deles. A forma como pensava nas inúmeras palavras que poderia usar naquele diálogo, e sua frustração em só conseguir proferir três delas, me fez cogitar a possibilidade dele ser um demônio deveras pragmático. Ou preguiçoso. Eu voto na segunda opção.

— Sim... e não.

— É só isso que você sabe dizer? Sim e não?! — O garoto franziu o cenho. A bochechas coradas tanto pelo frio quanto pela sua cólera e indignação. — Ah, pelo amor de Deus, Claire! Onde você encontrou esse cara? Ele pode muito bem ser um serial killer nos levando pro abate!

— Na verdade — O demônio interrompeu, um sorriso de canto se formando em sua boca. Coisa boa não viria dali, eu poderia sentir os calafrios. — Eu sou o novo brinquedinho sexual dela.

Eu revirei os olhos, abrindo caminho entre a dupla de imbecis. Acelerava o passo enquanto praguejava. A ventania fazia com que os meus cachos dourados esvoaçassem e cobrissem parte do meu rosto vez ou outra. Os olhos tão gélidos quanto o próprio céu durante uma tempestade. Eu agradecia mentalmente por ter pego as luvas e o cachecol antes de sair de casa. Caso contrário, já estaria congelando até a morte. E eu estava irritada, com toda razão. A linha outrora tênue dos meus lábios fazia uma curva para baixo, franzidos e taciturnos. Havia uma garota sendo estuprada ou torturada numa sala arruinada, com cicatrizes em seu corpo e também em sua memória. Em breve, Sarah seria exatamente como eu. Perdida e arruinada. Estávamos a poucos metros de interceptá-la, e a única coisa que os rapazes faziam era discutir. Não tenho paciência pra todo esse drama juvenil. Não está na minha natureza. E é por isso que eu prefiro lidar com os meus problemas sozinha.

— Vocês parecem duas putinhas brigando. — Murmurei, virando-me para encarar aqueles que ficaram para trás na caminhada. Tristan pareceu ofendido, mas o demônio loiro riu. — Mexam-se.

*****

A madeira sob nossos pés rangia a cada passo que dávamos. Os degraus da escadaria eram velhos e cheios de poeira, mas descíamos através deles mesmo assim. Eu insisti para que procurássemos por todo o prédio, mas Jerry disse que seria perda de tempo, que eles estavam no porão da escola. Era onde costumavam guardar as cadeiras quebradas e objetos de Educação Física. Estava começando a achar que ele, de alguma forma, era o assassino. Ou pelo menos tinha alguma coisa a ver com aquilo. Então agarrei o cabo da faca que guardava no coldre da calça. Aquela que havia pego na cozinha.

Havia uma porta no final da escadaria. Tudo estaria um completo breu se não fosse pela lanterna que o demônio retirou do bolso interno de seu paletó caro. Achei o compartimento no tecido demasiadamente pequeno para abrigá-la. Sequer havia notado o formato do objeto proeminente em sua roupa. O que me levava a crer que os demônios, de alguma forma, podiam providenciar utensílios mortais quando bem entendessem. Como se fosse mágica. Jerry só precisava enfiar a mão na fenda do paletó e buscar o que necessitasse. Me peguei imaginando quanto tempo ele levaria para puxar de dentro do bolso uma bazuca. E, consequentemente, ri baixinho.

— Legal. — Sussurrei enquanto colocava as costas de uma das mãos contra os lábios, numa tentativa falha de conter o riso.

— É, eu sei. — Jerry respondeu, como se pudesse ler meus pensamentos. Eu arregalei os olhos, completamente muda e desprevenida.

Tristan permaneceu atrás de mim. Dentre nós ele era o que estava mais indefeso. O demônio guardou a lanterna e puxou do paletó uma arma. A primeira reação do garoto fora arquejar, mas tapei-lhe a boca no ato. Jerry encostou o ombro sobre a madeira podre da porta e posou uma das mãos sobre a maçaneta. Eu apertava o cabo da faca contra a palma da minha mão, preparando-me silenciosamente para a cena que estava prestes a ver. Meu pai torturando outra pessoa que não fosse eu. Algo que guardaria na memória para sempre. Pobre Sarah. Escorreguei a mão que tapava a boca de Tristan para apertar o seu pulso, esfregando a pele alheia com o polegar para fazê-lo entender que tudo ficaria bem. Nenhuma palavra se fez necessária. Ele entendeu e assentiu, estava pronto. E então, num belo rompante, meu acompanhante demoníaco abriu e escancarou a porta. Apontava a pistola na direção da sala; ele estava alerta. E a poeira subia como uma neblina.

A pintura das paredes estava descascada, e um forte odor de carne asquerosa e podre invadiu as minhas narinas. Fazendo-me, por um momento, ter ânsias de vômito. Era como se uma dezena de cadáveres tivessem sido depositados ali. Por dias, talvez meses ou anos. E a cena que visualizamos a seguir foi tão perturbadora quanto eu imaginava que seria. Exceto pelo fato de que fora incomparavelmente mais confusa. Sim, meu pai estava lá. Mas encontrava-se inconsciente, ferido e amordaçado. E não havia algum sinal de Sarah Fitzenberg.

Foi então que um estrondo ecoou pela sala fétida. A porta atrás de nós fora brutalmente fechada. Olhei para trás no ato, assustada pelo barulho. E encontrei um rosto familiar, mas a expressão neste era irreconhecível. Tristan também estava assutado. Afinal, não era todo dia que você via a sua irmã coberta em sangue. Segurando numa das mãos a arma do meu pai.

— Sarah?! — O garoto chamou, erguendo as mãos na altura dos ombros em rendição. — O que diabos você está fazendo? Abaixe essa coisa agora!

— Não, eu não posso! — A mais nova balbuciou, tinha os olhos vermelhos e marejados. Os soluços vieram logo em seguida, junto com as lágrimas. Ela era a assassina. — Eu fiz coisas terríveis, Ty! Não foi culpa minha, eu juro! Ele me obrigou! Você não pode contar pra nossa mamãe!

— Ele, quem? O meu pai? — Perguntei de imediato, virando o rosto para encarar a figura abatida na cadeira. Gregory estava ferrado demais. Sequer teria disposição para obrigar garotinhas como Sarah a fazer atrocidades desse tipo. Ela definitivamente estava mentindo. — Tenho certeza de que você consegue inventar uma desculpa melhor.

Jerry lançou um severo olhar de desaprovação para mim. Como se dissesse "fique fora disso". Sem chance. Aquele não era um assunto exclusivo dos Fitzenberg. Todas as pessoas que tiveram seus entes queridos divididos ao meio por uma psicopata de catorze anos com um bisturi enferrujado mereciam saber a verdade. Os cemitérios não eram assim tão extensos para abrigar todos esses corpos espalhados pelo porão. E os seus olhos heterocromáticos cravados em mim são tudo o que eu me lembro com clareza antes que o loiro me puxasse pelo braço para trás dele. Uma arma disparou. Não fora a dele. A bala ricocheteou numa coluna atrás de onde eu estava e atingiu o meu pai de raspão, cortando sua bochecha. Aquilo certamente acertaria a minha cabeça se não fosse pelo demônio. Tristan, por outro lado, se aproximou devagar de sua irmã. Pedindo para que ela se acalmasse e desistisse. Ambos choravam juntos. Ele planejava abraçá-la, tomar a arma de suas mãos.

— Você não precisa fazer isso, Sarah. Confie em mim, okay? Vai ficar tudo bem, eu vou cuidar de você. Eu vou dizer pro papai que você exagerou nos medicamentos, só isso. Eu prometo.  

— Não, Ty! Ele vai me fazer matar você também! — Sarah disse entre soluços. A dor em sua voz era tão perceptível que eu estava quase acreditando nela. Quase. — Fica longe de mim, por favor! Eu sou um monstro!

— Não, você não é! — Tristan gritou, dando mais um passo hesitante para frente. Ele estava a alguns centímetros de agarrar a arma das mãos da garota e imobilizá-la. Me perguntava se ele estava apenas fingindo para chegar até ela ou aquela lágrimas eram realmente verdadeiras. — Só me diz o que esse desgraçado fez com você! Quem é ele, Sah? Eu juro, eu vou até o inferno procurá-lo!

— Teoria interessante. — Jerry comprimiu os lábios, dando de ombros como se toda aquela situação não o assustasse de fato. Ele era imortal. Não haviam motivos para que se preocupasse, certo? — Porque você realmente  o encontrará lá.

— Do que você está falando, Jerry? — Perguntei, agarrando o tecido de seu terno. Por um momento, um espaço muito curto de tempo - talvez até numa fração de segundos -, pude sentir o calor de sua pele contra o tecido sendo emitido nas minhas digitais. E isso causou-me uma reação espontânea, como se eu tivesse tocado sem querer numa panela quente. Meu braço recuou. — Ouch!

— Leviathan. — Ele disse, mirando a arma na testa de Sarah. Pareceu ignorar o fato de ter quase me queimado apenas com o calor que irradiava de sua pele. De qualquer forma, seu corpo servia de escudo pra mim, caso a garota resolvesse atirar novamente. Enquanto eu estivesse com as cartas, ele teria de me proteger. — Ele sente falta do brinquedinho dele e agora está tentando me rastrear.

— Você roubou um dos sete príncipes do inferno?! Por acaso perdeu a noção do perigo?! — Eu gritei, me escondendo de novo atrás dele quando outro disparo ecoou pela sala. E depois outro. 

Jerry sorriu de canto, o escárnio de sempre carregado em sua voz. Ergui os olhos para encontrar a arma do meu pai no chão, ensanguentada. Tal como as mãos de Sarah. Ele havia atirado nelas.

— Ninguém é perfeito.

Tristan se ajoelhou ao lado da irmã, tomando as mãos dela entre as suas. A dor que ela agora sentia parecia ser a mesma dele. Toda família tem seu fracassado e Sarah era a desgraça dos Fitzenberg. De repente, eles não pareciam ser tão perfeitos assim. Quando seu olhar caiu no rosto do demônio, notei que estavam carregados em ódio. Eu nunca o tinha visto tão irritado. O amor cegava as pessoas. E mesmo que Sarah tivesse assassinado dezenas de pessoas a sangue frio, o garoto ainda a tratava como aquela menininha delgada que ele se esforçava para proteger quando ambos eram apenas crianças. Afinal, era isso o que ele sempre fazia, certo? Protegia as pessoas que ele amava. E a qualquer custo, as defendia.

— Você atirou na minha irmã! Desgraçado, você machucou ela!

— Ela não é mas a sua irmã. É um fantoche de Leviathan. E precisa ser eliminada o quanto antes.

Tristan estava prestes a avançar no pescoço do demônio, mas antes que isso acontecesse, me lancei entre os dois e os afastei. O garoto não fazia ideia de com quem estava comprando uma briga. Não era apenas sobre Jerry. Havia uma poção de segredos sujos por detrás destas cartas. E eu estava disposta a descobrir.

— Não, Jerry, está tudo bem. Eu acho que Sarah só precisa ser encaminhada pra um psiquiatra ou uma detenção para menores. Mas matar a garota não é realmente necessário, é? Afinal, ela não tinha controle sobre si mesma quando degolou todas essas pessoas. — Retruquei, tentando ser diplomática por Tristan. Ainda devia um favor a ele. Não só pelo dinheiro que havia me emprestado durante a minha fuga, mas também por ter me confortado quando ninguém mais o faria. — Por favor?

— Não é assim que as coisas funcionam, Claire! Você mesmo acha que celas de ferro ou camisas de força vão impedir que essa criaturinha cause mais destruição? Não que eu me importe, um bom caos é sempre bom de se assistir. Mas ela vai continuar até chegar.... até chegar a mim e a você.

— E desde quando você decide o destino da minha família, huh?! Quem te deu esse direito?

Tristan tentou alcançar Jerry novamente e eu o abracei, contendo-o. Sentindo seu vociferar latente contra os meus ouvidos. Foi ao abraçá-lo que vi os olhos de Sarah ficarem completamente brancos, os cabelos castanhos e sujos de sangue caíam sobre suas bochechas na medida em que se movia. E um sorriso demoníaco tomava agora conta de seus lábios. Mesmo com as mãos feridas, agarrou a pistola e antes que eu pudesse avisar, ou reagir, mirou na pessoa que ela mais amava. Bang. Outro disparo violento ecoou pela sala, mas dessa vez, não atingiu o concreto das paredes. O som fora abafado pela carne entrecortada dos músculos tencionados e rígidos das costas de Tristan.

O demônio respondeu-lhe rapidamente com um tiro na testa. A bala era de prata, pude ver a pequena parte do metal que ficou para fora do crânio perfurado. E então a garota desabou. Debatendo-se por alguns segundos, com uma espuma branca e sangue jorrando de sua boca. Era óbvio que uma pessoa não conseguiria se mover após receber um tiro na cabeça. Um machucado nessa região significava morte certa, automática. Sarah só teria tempo de cair como bosta no chão. O que havia se manifestado, fazendo seu corpo gélido e agora pálido convulsionar, fora o demônio que a havia possuído. Tristan caiu sobre os próprios joelhos, e eu o acompanhei, segurando-o e deitando sua cabeça sobre o meu colo. Meu pai, do outro lado do vão, começava a despertar.

— Claire... — O garoto sussurrou. Estava fraco e algumas lágrimas caíam de seus olhos. — Levar um tiro dói como os diabos.

— Posso imaginar. — Respondi, limpando as suas lágrimas. Maldita carta, maldita profecia.

— Eu não sinto as minhas pernas. — Podia notar o desespero em sua voz. Havia muito sangue jorrando de suas costas. E eu sabia que depois que a poça atingia determinada proporção, não havia como reparar os danos. Eu o perderia.— Que nem no dia que eu conheci você.

— Vocês vão demorar muito? — Jerry comentou impaciente, cutucando a cabeça do meu pai. Ele estava finalmente consciente, mas confuso ao encarar o corpo inerte de Sarah a poucos metros de si. Eu revirei os olhos. Poderia muito bem lidar com o meu pai depois. Então Tristan continuou.

— Acabe comigo de uma vez. — Ele agarrou o meu pulso, implorando para que eu desse-lhe um fim menos doloroso. Quando notou minha hesitação, se preparou para me dar mil e um motivos, para protestar, para argumentar e me convencer a fazer aquilo. Ele achou que eu resistiria, que negaria. Mas não o fiz. Seria melhor assim, que ele não sofresse. Era a minha forma de dizer que me importava.

— Tudo bem. Só... feche os olhos. — Balbuciei, com os olhos marejados. Ele obedeceu.

Busquei a lâmina no cós da minha calça, reparando no material da mesma pela primeira vez naquele dia. Minha mãe trouxera aquele jogo de talheres da Itália, após a sua lua de mel. Uma mera lembrança feita de prata. Empurrei o objeto cortante contra a jugular do rapaz. Afundando-a até que sangue o suficiente jorrasse da ferida aberta. Tristan sufocou com o próprio sangue por algum tempo, lutava por uma vã sobrevivência, mas estava fraco demais. Senti o calor de sua pele se esvair e tive certeza de que ele estava morto. 

— Não se preocupe, meu amigo. Eu vou chutar a bunda do Leviathan por isso.

Era uma promessa. E eu faria o possível para cumpri-la. Deitei a cabeça de Tristan no chão frio, era minha última despedida, e me levantei. Jerry me assistiu dar passos firmes em direção à Gregory Roseflare. O homem semicerrou os olhos, fitando-me com certa dificuldade até finalmente me reconhecer. Se não estivesse com as mãos atadas atrás da cadeira, certamente me abraçaria falsamente. Meu pai estava sorrindo. E mesmo que não gostasse de admitir, aquilo era mais do que o suficiente para me causar repulsa.

— Querida! — Gregory comemorou, como se estivesse vendo um anjo. — Você veio mesmo resgatar o seu velho pai? Vamos, me desamarre para que eu possa te dar um abraço!

— Apodreça no inferno. — E cravei a lâmina em sua virília, persistindo no corte e dividindo-a em duas partes através do tecido de seu pijama. O homem urrava palavrões no ápice da dor. Aquilo não era nem metade do que eu havia sentido quando o mesmo me violara. E ele ainda fedia a licor, se você quiser saber. Velho imundo. 

— Você pretende matá-lo? — Jerry perguntou. Tinha um sorriso orgulhoso entre os lábios. Qualquer idiota perceberia que estava tentando se conter para não rir, a vermelhidão de seu rosto dedurava sua vontade de explodir numa gargalhada. O caos lhe agradava.

— E estragar a diversão? Claro que não. — Sorri de volta. Me sentia diferente. Vingar-me, mesmo que numa pequena parcela, pelo que meu pai havia feito comido era libertador. Me sentia outra pessoa. Uma Claire que não podia mais simplesmente fugir de seus problemas como uma garotinha assustada. Faltavam dez minutos para o badalar da meia-noite, aquele ainda era o meu aniversário de dezesseis anos. E portanto, eu me daria esse presente. — Você tem gasolina e um isqueiro?

— Não, não, por favor! Me perdoe, querida! Tenha piedade do seu pobre pai! — Gregory suplicou, tentando desesperadamente se livrar das amarras. Nós simplesmente o ignoramos.

— Tudo o que a senhorita quiser. — Ele fez uma breve reverência para mim antes de tirar do bolso do paletó dois galões de gasolina e um isqueiro, como eu havia pedido. — Permita-me ajudar, sim?

*****

Aqueles foram os seis minutos mais prazerosos da minha vida. Nem mesmo a noite que eu havia passado com Tristan se comparava à sensação de finalmente fazer o meu pai pagar por seus pecados. Jerry me esperava do lado de fora da escola enquanto eu esvaziava o último galão. Os braços cruzados sobre o tórax e uma expressão de satisfação no rosto. Ele estava prestes a assistir um grande espetáculo. Meu pai ainda estava vivo, agonizando pelo pau perdido. Vai entender. 

— Pronta? — O demônio perguntou, entregando-me o isqueiro.

— Eu nasci pronta. — Respondi, ascendendo a chama do objeto e atirando-o no rastro de líquido inflamável a centímetros de onde estávamos. 

Primeiro a entrada da escola sucumbiu ao fogo, e depois o primeiro andar, e então o segundo. As mesas e cadeiras mofadas das antigas salas de aula serviriam como lenha, alimentando as faíscas. E em dois ou três minutos, o estupendo fogaréu consumiu todo o prédio em ruínas. Os cidadãos de Raventown deveriam me agradecer pelo favor. Aquele monstro empoeirado já deveria ter sido demolido há décadas. Agora eu finalmente poderia adicionar a categoria "Madre Maria Teresa de Calcutá" ao meu currículo, não poderia me sentir mais realizada. E com sorte, havia eliminado também uma pequena parcela dos corvos que nomearam a cidade. Só me dei por satisfeita ao ouvir os novos gritos de dor do meu querido pai capado. Seus palavrões carregados de aflição eram como uma sinfonia para os meus ouvidos. Eu sorri, sentindo finalmente o peso de sua presença se esvaindo dos meus ombros. Suportá-lo já não era mais a minha responsabilidade, deixaria esse trabalho para o diabo. Já deveria tê-lo matado há muito tempo atrás.

— O que você quer fazer agora, m'lady? — Jerry perguntou, afastando-me de repente de um turbilhão de pensamentos. Ofereceu-me o braço para que eu segurasse durante a caminhada. E dessa fez, sem muita resistência, eu entrelacei o meu braço ao dele. Caminhamos para longe do incêndio com a neve derretendo aos poucos sob nossos sapatos.

Busquei o baralho escondido no bolso do meu casaco e o encarei, avaliando o relevo das figuras pintadas em branco na caixa preta e lustrosa. Tinha num rosto uma expressão determinada, de poucos amigos. Eu era Claire Roseflare, afinal. Humana e também guardiã de um artefato demoníaco e muito poderoso. O que me tornava poderosa, e com mais um plano glorioso de vingança em mente.

— Matar Leviathan. Leve-me até ele.

— Naturalmente. Seu desejo é mais do que uma ordem.


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Notas finais do capítulo

Não que essa seja a minha única motivação para escrever, mas é sempre bom mandar rewiews. Afinal, isso deixa o coração de qualquer autora mais quentinho. E me incentiva a continuar postando.



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