As chaves Infernais escrita por LarissaTeles


Capítulo 3
Capítulo 2 - O BARALHO DA MORTE




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Alguns filetes de suor quente escorriam pela minha testa e têmporas. Minha respiração oscilava e eu já não estava mais preocupada em diminuir a velocidade dos meus passos. Havia cortado caminho por três avenidas extremamente movimentadas, empurrando quem quer que ousasse se meter no meu caminho. A neve estava sempre afundando os meus pés como se quisesse me impedir de chegar lá. Aquele ar frio parecia cortar a minha pele e espalhava um tipo de carga elétrica nos meus pulmões, e isso, de certa forma, me incentivava a ir mais rápido. Mas o percurso era longo, e eu continuava na metade. Maldita cidadela! Eu estava a um segundo de desistir daquela merda e voltar para o meu plano de fuga, mas eu já havia assistido Death Note e aquela porra me dava sérios arrepios. Eu não estava disposta a arriscar.

Foi no momento em que eu parei na frente de uma banca de revistas para retomar o fôlego que o meu celular começou a vibrar. Puxei-o do bolso da minha calça e atendi a maldita ligação, aproximando o aparelho do meu ouvido. Era só o que me faltava agora... mais distrações.

— Por que você estava correndo? — Era a voz de Tristan, ele parecia estar disfarçando o nervosismo.

— Como é que você sabe?— Franzi o cenho e olhei para trás num reflexo, tentando procurá-lo. Ele estava do outro lado da rua, perto da floricultura. Atravessei a rua assim que tive a oportunidade. O garoto me recebeu com um sorriso largo. Eu, no entanto, preferi socá-lo no nariz. — Eu não acredito nisso, você estava me seguindo?!

— Ouch! — Ele gemeu de dor, massageando o nariz que sangrava. — Claro que não! Qual é o seu problema?

O meu problema? Bem, eu tinha vários. Começando pelo meu estresse pós-traumático e o meu pai alcoolatra; pela minha falta de perspectivas e de um bom café da manhã, a última temporada de Lost, o fim das Spice Girls, e agora eu tinha esse maldito baralho homicida para adicionar à minha lista de problemas mal resolvidos. É, estava ficando cada vez mais divertido ser eu.

— Nenhum. Por que você está aqui?

— Eu moro aqui. A cidade é pública, caso você tenha esquecido.

— Faça um favor para você mesmo e deixe o sarcasmo para os profissionais. — Cruzei os braços rente ao tórax. Meus dedos doíam pelo soco desferido e tudo o que eu queria fazer agora era puxar Tristan para um abraço apertado. Mas por algum motivo não o fiz. Eu sou um belo de um fracasso ambulante. — Responda logo a minha pergunta.

— Minha irmã sumiu. — O rapaz hesitou, mas finalmente tomou coragem para me encarar. Seus olhos castanhos expressavam medo. Eu só não sabia dizer se era a mim que ele temia, ou o que quer que pudesse estar acontecendo com a Sarah. Pude perceber que o garoto estava se controlando para não chorar em desespero. — Eu já fui de casa em casa perguntando se ela poderia estar lá. Comecei pelas residências de conhecidos, mas agora eu não tenho outra opção senão vasculhar o quarteirão inteiro. A nossa mãe não gosta que saiamos na hora do jantar, e a pirralha é sempre a primeira a me alertar quando tento dar as minhas escapadas, mas hoje ela simplesmente resolveu sair. Numa hora a Sarah estava dentro do quarto fazendo a lição de casa, e na outra ela já não estava mais lá. Eu encontrei a porta dos fundos escancarada. Está vendo como isso não faz sentido, Claire? Alguma coisa está muito errada. Acho que foi o maníaco. Ele a pegou.

— Eu não sei nem o que dizer. — Murmurei, arrependida de tê-lo machucado. Então, com o meu cachecol, tentei limpar o sangue que teimava escorrer de suas narinas. Ele se afastou num primeiro reflexo, mas eu insisti e o garoto acabou permitindo que eu me redimisse. Lembrei do meu pai e das marcas roxas que eu tinha visto em seu corpo desde que nos mudamos para cá. Ele podia muito bem ser uma babaca agressivo de merda, mas dóia cogitar a possibilidade dele ser o assassino que assombrava aquelas vielas. Era difícil de acreditar que a minha mãe teria se casado com alguém desse tipo. Muitas vezes essa mesma desconfiança tirava o meu sono. — Você tem certeza disso?

— Não, não. Na verdade, a minha irmã tem o incrível poder de ficar invisível. 

— Não me dê mais um motivo pra socar a sua cara. — Adverti, colocando as mãos nos bolsos do casaco novamente, sentindo o relevo da caixa amaldiçoada que ali havia guardado. "O virar desta carta tirará a vida de alguém muito próximo a você até a meia noite", eu lembrei de supetão, assustando-me com o que aquilo realmente significava. Se tudo fosse verdade, Sarah estava fodida. Eu nunca gostei muito da irmã de Tristan, a garota nem teria entrado na minha lista de preocupações se não tivesse sumido tão de repente. Não sou uma heroína e o meu principal objetivo não é salvar a bunda de uma pessoa ingrata. Mas se o meu pai estivesse envolvido naquilo, era a minha responsabilidade lidar com as consequências. Tenho feito isso nos últimos cinco anos; já estava acostumada. —Eu tenho uma ideia de onde ela possa estar.

— Sério?! — A face dele se iluminou com uma esperança que partia o meu coração. Eu assenti em resposta. — Onde?

— Perto da minha casa. — Umedeci os lábios, notando a repentina expressão de confusão no rosto alheio. Não sabia como dizer aquilo, então apenas cuspi as palavras. Ser insensível era o que eu sabia fazer de melhor, aparentemente. — Tristan, eu acho que o meu pai é o estuprador.

*****

A noite finalmente havia caído, o que deixava a minha rua ainda mais assustadora. Poucos postes de iluminação estavam funcionando e o caminhão de lixo parecia ainda não ter dado o ar da graça. Talvez fosse por isso que o caminho estreito de paralelepípedos estivesse fedendo. Tristan seguia ao meu lado, cobrindo o nariz com o cachecol. Ele fazia o possível para iluminar a trilha enevoada com a tela do celular, mas a bateria estava fraca. O rapaz deveria amar demais a sua irmã para se submeter a passar por um lugar tão sujo quanto este. Sarah era diferente de mim em muitos aspectos. A leveza com que caminhava e o sorriso que sempre enfeitava o seu rosto; a desgraçada tinha até um brilho diferente no olhar quando se animava - o que acontecia bastante. E eu a invejava por ter uma vida perfeita, não que isso fosse exatamente um pecado. Qualquer um na minha situação teria o mesmo sentimento. Gostaria de acreditar que meu pai, na verdade, era a pessoa que aquela carta ameaçava de morte. Seria mais correto.

Paramos bem na entrada de um prédio mofado. Eu pensei que nunca mais teria a necessidade de voltar para esse lugar. Estava me sentido como o filho pródigo da bíblia: um ordinário sem ter onde cair morto. Sentia muito medo do que poderia acontecer caso eu entrasse em casa novamente, mas o forcei goela baixo enquanto entrava no salão velho onde costumava ser uma charmosa recepção e comecei a subir as escadarias. Afinal, o elevador daquela porcaria estava quebrado.

— Fique aqui. — Sussurrei para Tristan. Não queria que o rapaz visse o que meu pai fazia comigo todas as noites. Enlouqueceria se ele tivesse mais um motivo para perguntar qual era a razão dos meus hematomas. — Se em algum momento eu precisar de você, eu juro que te chamo.

— Nem fodendo que eu vou deixar você sozinha com um psicopata! — Ele protestou, segurando o meu braço com afinco.

Aquilo fez a linha tênue dos meus lábios ganhar uma curva singela e sem humor. Por um momento, achei a ingenuidade do garoto uma coisa indescritivelmente bonita.

— Você está atrasado pro resgate, Superman. Não há mais salvação para esta garota aqui. — Me desvencilhei de seu aperto e o deixei para trás. Meu coração estava pesado. Não por ele, mas por mim mesma.

Subi aquelas escadarias até chegar ao primeiro andar. E com certa relutância, pus a mão sobre a maçaneta da minha porta, girando-a devagar. A madeira rangeu, avisando sobre a minha chegada, e eu mordi o lábio inferior por conta do nervosismo. Pisava com cautela no mármore empoeirado. Parte de mim rezava para que Gregory Roseflare (meu pai) não estivesse em casa. Mas há muito tempo eu havia aprendido - da pior maneira possível - que Deus gostava de tapar os ouvidos para as minhas orações.

A sala estava vazia e escura, fiz um caminho cauteloso até o interruptor. Acabei tropeçando numa garrafa vazia e praguejei em alto e bom som pela dor que sentia no mindinho, denunciando mais ainda a minha presença. Mas por que era sempre o dedinho do pé que se fodia nessas horas?

— Pensei que você nunca fosse voltar, Claire. Isso aqui já estava ficando chato.

Havia um homem sentado com a perna semi-cruzada no meu sofá, bebendo sua sexta ou sétima garrafa de cerveja. Provavelmente havia acabado com todo o estoque da geladeira. E ele definitivamente não era o meu pai.

— Jesus Cristo! — Arquejei assustada, pegando a garrafa do chão e quebrando-a na mesinha para usá-la como arma.

— Na verdade, eu sou muito mais bonito. — Ele disse, mostrando-me um sorriso charmoso. Enterrou os dedos nos cabelos louro platinados, que eu percebi ter raizes escuras. Tinha um porte tão elegante quanto suas roupas. Ele deveria ser rico e, pelo sotaque, estrageiro. — Se eu fosse você, abaixava isso logo. Alguém pode se machucar. Já lhe disseram que vossa senhoria é esquentadinha demais pra alguém da sua idade?

— Vá se foder.

— Viu só? É exatamente disso que eu estou falando.

— Cadê o meu pai? O que você fez com ele?

— Que fofo. Você fala como se isso realmente te importasse. — Um riso de escárnio ecoou por toda a sala. E quando ele finalmente parou, cravou seus olhos heterocrômicos em mim. Senti um arrepio percorrer por toda a minha espinha, e não foi do jeito bom de quando eu transei casualmente com Tristan. — Gregory saiu de casa há algumas horas... E parece que está armado. O que é bastante engraçado se levarmos em conta que o seu pai não trabalha nos fins de semana.

Ele falava gesticulando, como se estivesse num espetáculo de teatro - a estrela principal -, e parecia se divertir com a minha confusão e inocência.

— Mas quem diabos é você? — Apertei a boca cilíndrica da garrafa entre os dedos, apontando a parte quebrada e perigosa para o pescoço dele. Mas eu não poderia enganar ninguém com aquela pose de mulher dissimulada. Estava tremendo. No entanto, não deixaria que invadissem a minha casa tão descaradamente. Era uma questão de honra; aprendi com os Starks. Eu só esperava não ter que morrer também por causa disso. — Se você tiver roubado alguma coisa daqui, por menor que seja, eu juro que vou te cortar!

O homem revirou os olhos e inclinou a cabeça para o lado, incrédulo. Internamente rindo da minha suposta capacidade de matar. E com apenas o dedo indicador, afastou a garrafa quebrada de seu pescoço tatuado.

— Me chame de Jerry. — Ele afrouxou a gravata azul e alinhou o terno preto que outrora estava levemente abarrotado. O homem era charmoso, devo admitir. E não aparentava ter mais de vinte e cinco anos, apesar de ter os cabelos quase brancos. Um de seus olhos era vermelho e o outro era verde-esmeralda. Mas por mais bonito que ele fosse, ainda era um invasor e assaltante em potencial. — Eu teria beijado a sua mão por mera cordialidade, mas a senhorita insiste em me ameaçar com uma garrafa quebrada de cerveja vagabunda.

— É porque você ainda não me disse o que está fazendo aqui.

— Ah, pelo amor de Sheol! Eu estou só me divertindo um pouco antes do julgamento final. Sou o suposto dono do objeto guardado no bolso do seu casaco e, pra variar, o seu novo tutor. — Declarou, fazendo-me abaixar a garrafa e franzir o cenho automaticamente. Se esse infeliz quisesse me matar, eu já teria virado presunto há muito tempo. — Ah, e eu também sou um demônio nas horas vagas. Se eu fosse você, já teria me apressado. Está quase chegando a meia noite... A senhorita não vai querer perder o espetáculo, ou vai?

— O meu nome é Claire Roseflare, não "senhorita". — Resmunguei, pegando a caixinha preta do meu bolso e colocando-a na mesinha. Ele era um verdadeiro flamboyant. — Que espetáculo? Olhe, vou logo avisando que eu não estou muito afim de ganhar um shinigami. Pode pegar o seu negócio de volta e ir embora daqui.

— Ugh, eu odeio esses animes. — Balançou a cabeça e se dirigiu até a porta, abrindo-a. — O baralho da morte é seu, por enquanto. Se ficasse na minha mão por muito mais tempo eu seria rastreado. E você não está me vendo só porque tocou na carta, ou algo assim. É porque eu quero. Seu amiguinho lá embaixo também terá o prazer de contemplar a minha beleza, não se preocupe. Agora vamos, temos um maníaco estuprador para rastrear e, é claro, uma grandiosa morte para assistir. A carta escolheu alguém que você conhece para arrastar pro inferno, já que você não tem autonomia para escolher. Eu explico depois.

— Escuta, no inferno por acaso vocês tem TV a cabo? — Perguntei, intrigada com o fato dele ter entendido aquela referência. Era muita informação para ser processada, e eu não teria me aproximado dele se realmente não precisasse saber mais. No final, a minha curiosidade foi maior que o meu medo. Talvez com ele eu tivesse alguma chance de salvar a irmã de Tristan das mãos imundas do meu pai. Embora ainda desconfiada, peguei a caixa de tarô e uma faca na cozinha antes de passar pela porta aberta atrás dele.

— Queridinha, nós inventamos o pornô. O quê que você acha?

Jerry sorriu largamente por ter conseguido o que queria. Ignorava completamente a lâmina nas minhas mãos como se esta fosse inofensiva. E havia malícia em absolutamente tudo o que ele fazia. Fechou a porta atrás de si e ofereceu o braço para que eu segurasse durante a caminhada. E eu, obviamente, recusei.


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Notas finais do capítulo

Não que essa seja a minha única motivação para escrever, mas é sempre bom mandar rewiews. Afinal, isso deixa o coração de qualquer autora mais quentinho. E me incentiva a continuar postando.