As chaves Infernais escrita por LarissaTeles


Capítulo 2
Capítulo 1 - O COMEÇO DO FIM: SOB A TRILHA ENEVOADA




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— Claire! — Meu pai batia na porta incansavelmente, a ponto de arrombá-la. Levantei a cabeça do travesseiro encharcado com a minha baba e esfreguei os olhos. Empurrei as cobertas para longe do meu corpo e me arrastei até a sala, onde certamente encontraria o responsável por toda aquela barulheira. Desse jeito acabaríamos no olho da rua... de novo. — Vamos, Claire! Abra logo essa droga!

— Já estou indo. — Murmurei sonolenta. Podia sentir os solavancos violentos da madeira contra a minha mão pequena quando destranquei a porta e puxei a maçaneta, abrindo-a. A camisola fina e abarrotada deixava perceptível o contorno dos meus seios ainda em botão. Eu não deveria ter mais que quinze anos nessa época, e tudo no meu corpo - desde os cabelos dourados até as unhas do meu pé - costumava gritar "cuidado, eu sou frágil". O passado é uma coisa engraçada, não é? Justo quando quero esquecê-lo, sou obrigada a revivê-lo escrevendo-o num diário. Patético.

— Mas que história é essa de que você passou a noite de ontem com o filho da senhora Fitzenberg?! Eu pensei que você estivesse com uma de suas amigas! — Papai gritava à todos pulmões enquanto enfiava as mãos no coldre da calça, tirando de seu uniforme de guarda noturno uma pistola carregada. Se ele me conhecesse o suficiente saberia que eu não tenho amigas. Mas, afinal de contas, quem havia contado? Ah, é claro, as velhas infelizes da cidade. Como não pensei nisso antes? Desgraçadas. - Eu vou lhe dar três segundos, ouça bem, três segundos para me convencer a não atirar em você agora mesmo!

— Papai, eu estudo com a irmã dele, tínhamos trabalho escolar pra fazer. Eu só fiquei até mais tarde porque a mãe deles insistiu. Abaixa isso, por favor, o senhor está bêbado! — Ergui as mãos em rendição; minhas pernas bambeavam, temia pela minha vida. Coisa que jamais deveria ter feito. Muito pelo contrário, deveria ter admitido que só por uma noite havia deixado o medo e a miséria abandonarem a minha alma. Que foi bom ter o calor do corpo de Tristan consolando o meu, que minha espinha se encheu de doces calafrios ao sentir o toque de seus lábios no meu colo. Sim, estes mesmos seios pequenos e ainda em formação. Ele os adorava. Que desgraça eu deveria ser! Ah, quão envergonhada eu deveria me sentir! Não. Não mais. Eu não tinha nada a perder, nenhuma perspectiva de vida e nada que pudesse me redimir. Mas mesmo assim, eu menti. — Não aconteceu nada demais. As pessoas desse lugar falam pelos cotovelos.

— Mentirosa! Vagabunda! — Urrou, e o tapa que ele desferiu contra o meu rosto me fez cair no chão frio. — Eu deveria ter te matado há anos atrás! Antes de toda essa avalanche de merda ter nos afogado! Todos nós teríamos ficado bem com a sua mãe... Ela está num lugar muito melhor que esse agora!

O forte cheiro de licor que vinha da boca do meu pai já estava irritando as minhas narinas. Tapei os meus ouvidos com ambas as mãos, fechando os olhos com afinco. Esperando pelo pior, pelo disparo da arma que finalmente tiraria a minha vida e espalharia pedaços do meu cérebro no piso. Mas este não veio. Ao invés disso, senti o pé daquele homem detestável bater contra o meu estômago, fazendo-me cuspir um pouco de sangue e o resto do meu jantar. Meu pai sempre ficava descontrolado quando chegava em casa, isso não era segredo para mais ninguém. Era normal que me batesse e me acordasse para lembrar o quão desprezível eu era para ele, ou para nossa mãe. Que eu fui a causa da morte dela, que eu deveria ter sido abortada quando o mesmo havia pedido. Que eu era nada além de um problema, o motivo de toda essa desgraça ter nos atingido, quando na verdade era eu quem ainda mantinha a casa de pé. Nessa época eu costumava acreditar que um demônio muito malvado o possuía todas as noites e o fazia violentar-me. Hoje eu sei que isso seria uma ofensa brutal até mesmo para Lúcifer.

— Sabe o que vai acontecer com o meu nome agora? Estará manchado para sempre! Nunca mais poderei recuperar o meu cargo na empresa, tudo o que um dia nos roubaram, sem que aqueles ordinários me lembrem a vadiazinha que você é! — Papai desferia socos em mim. Nas minhas coxas, nos meus braços, costelas e no rosto. Eu não tinha forças para levantar. Que fosse para o inferno o nome daquela família e ele também! Mais e mais hematomas enfeitariam a minha pele depois disso. Não tardaria para que Tristan me perguntasse o que eram aquelas manchas roxas no meu corpo e porquê elas estavam lá. Detestava quando ele me enchia de perguntas. Ele não era meu namorado. Eu nem mesmo o amava.

— Você... Você nunca será.... Rico novamente... — Balbuciei, ainda fraca. E ao tossir, o sangue quente e fétido de minha boca respingou no rosto do meu pai. Parece que após desferir-me o primeiro tapa da noite, o homem havia guardado a arma no coldre, mas com aquelas palavras tão ásperas, mesmo que sussurradas, eu o tinha feito sacá-la novamente. Meu corpo gelou, por um momento acreditei que aquele brutamontes realmente me mataria. Lembrei-me de nossos passeios no lago, quando fazíamos piqueniques pelas manhãs. Eu, ele e a mamãe. Éramos todos felizes. A família Roseflare, outrora perfeita e cheia de vida, aos poucos sucumbia à ruína. Meu pai era uma pessoa completamente diferente agora, um doente mental. E para ser sincera, eu também estava ficando louca.

Não saberia dizer exatamente como aquela noite pavorosa acabou, foi há muito tempo atrás. Mas num momento eu estava consciente, abatida e deteriorando, mas acordada. E depois tudo o que eu pude sentir foi o metal gelado da arma do meu pai batendo contra a minha cabeça com força, fazendo-me apagar.

*****

Na manhã seguinte eu acordei no sofá. Meu pai estava debruçado na mesa da cozinha, com a arma deliberadamente jogada no chão. Eu poderia pegá-la agora. Poderia tê-lo matado naquele mesmo instante com uma única bala na cabeça. Ele nem teria tempo de acordar e descobrir o que o havia atingido. Eu ainda não tinha uma boa mira, mas à queima-roupa não dava pra errar. No entanto, preferi tomar um banho frio para lavar todo aquele sangue e vômito de mim, e também, se fosse possível, as lembranças da noite passada. Era durante esses pequenos momentos que eu finalmente entendia porque a igreja gostava de usar água-benta para purificar os fiéis. O frescor daquele líquido que jorrava do chuveiro já parecia ser uma benção; um bálsamo escorrendo pelos meus ombros cansados e doloridos, aliviando-os.

Vesti-me com uma calça azul-naval e uma blusa de lã vermelha. Esta última tinha buracos na região das axilas. As luvas que eu usava estavam gastas e a calça já parecia estar mais surrada que a minha cara. O cachecol que eu peguei no armário tinha um bordado engraçado: renas, duendes e coelhos. Algum gênio resolveu juntar a Páscoa e o Natal num presente só. Eram as roupas mais quentes que eu tinha, não podia me dar o luxo de reclamar. Afinal de contas, o rádio de pilha do meu pai avisara que naquela madrugada começara a nevar como nunca. Não havia nada mais apropriado. Eu estava no inverno da minha vida.

Peguei o gorro do papai que estava sobre o sofá e pus na cabeça antes de abrir a porta e sair. Assim que ambos os meus pés tocaram os paralelepípedos, senti uma corrente gelada soprar o meu rosto. Segui para a casa de Tristan, sabia que não havia ninguém lá, mas eu não consegui pensar em nenhum outro lugar mais tranquilo para ficar ou, ao menos, pensar no que fazer. Sentei-me nos degraus que dariam de encontro para sua porta e esperei que o mesmo voltasse da escola. Ninguém sentiria a minha falta se eu matasse aula, principalmente com tantos bons motivos. Mas os Fitzenberg eram conhecidos por serem comprometidos, inteligentes e razoavelmente ricos. 

Não demorou muito para que a movimentação na frente da casa chamasse minha atenção. Era ele e sua irmã chegando de bicicleta, tudo porque era melhor para o meio ambiente. Toda essa baboseira que a mãe deles falava me dava vontade de gargalhar, mas eu nunca o fiz. Sempre fui uma boa menina. Sempre obedeci e respeitei os mais velhos, fiz as minhas tarefas escolares, cuidei do meu pai quando ele mais precisou e doei anos da minha vida escondendo a minha dor para fazer os outros felizes. E o que de bom eu ganhei com isso? Absolutamente nada.

— Claire?! — Tristan largou a bicicleta no chão no momento em que percebeu o inchaço no meu olho direito, e correu na minha direção. — Claire, você está bem? O que aconteceu?

Suas mãos eram tão macias quando tocavam o meu rosto. Um gesto tão singelo e quente como aquele fora, de fato, a melhor coisa que havia acontecido comigo desde que acordei. Dei-me alguns segundos, apreciando toda esta atenção que eu tanto precisava antes de finalmente respondê-lo.

— Isso não importa. — Encolhi os ombros, a voz ainda rouca. Ergui o rosto para aproximar-me dele, e finalmente o beijei. Algo apressado e um tanto desajeitado pela posição em que estávamos. Eu não gostava quando sua irmã ficava nos assistindo, mas não estava com paciência para mandá-la embora. E além do mais, aquela era a casa dela, não o corredor da escola. E só porque não nos amávamos não significava que não nos preocupávamos um com o outro. Tristan era a coisa mais próxima de um amigo que eu tinha. Um amigo com benefícios. — Vou pegar o trem das seis pra algum lugar bem longe daqui. Vim me despedir.

— Você perdeu o juízo?! — Ele indagou com os olhos arregalados. Seu tom de voz alertou sua irmã mais nova, Sarah, que já era hora de entrar em casa. Agradeci mentalmente por isso. — Amanhã é o seu aniversário. A gente ia comemorar, lembra? — Fitzenberg me encarou esperançoso, esperando que eu ainda recordasse. Silenciosamente, eu assenti. — Pra onde exatamente você vai? O que vai comer? Onde vai dormir? Você por acaso tem dinheiro?

— Não sei. Não ligo. — Meti as mãos nos bolsos do casaco. Um calafrio percorreu a minha espinha e eu mordi o lábio inferior. Era ele que me prendia naquela cidade de merda nesses últimos meses. Se eu não desse um fim em tudo aquilo, Tristan não me deixaria ir embora. — Você não entende. Eu preciso ir. Não há nada aqui pra mim, só dor. E eu tô cansada de sentir dor.

Um silêncio constrangedor pairou entre nós em seguida. Tristan parecia avaliar cada palavra que eu havia dito, hesitando com cada fibra de seu ser. Suspirei aliviada quando ele finalmente disse alguma coisa. — Tudo bem, senhorita Roseflare. — Enfiou uma das mãos num dos bolsos da mochila apoiada nos ombros e de lá tirou um pequeno bolo de dinheiro. Todas notas de cem. — Eu estava guardando para a sua festa. É a minha mesada de três meses. Espero que saiba o que está fazendo.

Mas eu não fazia ideia do que eu estava fazendo, ou que poderia acontecer comigo se eu saísse da cidade tão apressadamente. Eu só precisava ficar bem longe do meu pai. Qualquer coisa pelo bem da minha sanidade. Sem hesitar, peguei o dinheiro da mão dele e meti no bolso.

— Obrigada. — Murmurei, puxando-o para um abraço demorado e apertado. Eu nunca mais o veria novamente e era bem melhor assim.

*****

Nos minutos seguintes, eu estava caminhando por uma rua estreita e deserta. O sol acima da minha cabeça já começava a se pôr. A neve fofa fazia um mar branco como leite se estender por debaixo dos meus pés e por toda a extensão da viela pacata. Aquele caminho me levaria à estação de trem mais rápido. Ou pelo menos deveria. Eu sempre gostei de atalhos. Me perguntava se o meu abusivo pai já havia acordado de seu sono induzido, mas fui obrigada a expulsar esses pensamentos da minha mente no momento em que tropecei em alguma coisa escondida na neve.

— Porra! — Praguejei em alto e bom som, massageando os dedos do pé por cima do sapato. Mas os meus olhos me guiaram na direção daquela coisa estranha que outrora me fez tropeçar. Não era uma pedra, muito menos um galho. Me abaixei, afundando as mãos enluvadas na neve para buscar o objeto. — Uma caixa de cartas de baralho? — Me perguntei, encarando-a curiosamente. — Quem em sã consciência deixaria você aqui, caixinha bonitinha? — E com o cenho franzido, verifiquei a frente e o verso do objeto preto, lustroso e meticulosamente lacrado. Parecia novo em folha. — Bem, eu vou precisar me distrair na viagem de qualquer jeito.

Abri a caixa com cuidado, encarando as cartas enfileiradas e presas por elásticos dentro da mesma. Não eram de baralho, logo notei. Ao menos, o verso destas não possuía números ou reis e rainhas de copas. O verso era preto, com um símbolo branco no centro, algo que eu não conseguia identificar. Virei a primeira carta e notei que se tratava de um artefato esquisito de tarô. A imagem que decorava a frente da mesma era a de um homem com a cabeça cortada. E embaixo, em letras miúdas, havia o significado daquela figura perturbadora.

— O homem degolado. — Eu repeti enquanto lia um pouco mais embaixo. — O virar desta carta tirará a vida de alguém muito próximo à você até a meia noite. Boa sorte e obrigado por jogar.

Cobri a boca com uma das mãos. Que brincadeira mais bizarra, pensei. Tive o impulso de abandonar o objeto no chão e continuar meu caminho até a estação. Mas por mais que a minha razão continuasse sussurrando no meu ouvido que tudo estava bem e que aquilo não era sério, o meu emocional - que já estava abalado pelos últimos eventos - gritava para que eu pegasse aquelas malditas cartas e voltasse para casa. E era exatamente isso o que eu pretendia fazer. Precisava saber se Tristan estava bem antes de partir de verdade. Só mais uma checada e tudo ficaria bem, ao menos era isso o que eu repetia para mim mesma. Pois eu sabia que uma vez que eu partisse, nunca mais voltaria para lá. Nem que isso me matasse.


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Notas finais do capítulo

Não que essa seja a minha única motivação para escrever, mas é sempre bom mandar rewiews. Afinal, isso deixa o coração de qualquer autora mais quentinho. E me incentiva a continuar postando.



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