Cartas para Harriet escrita por Ahelin


Capítulo 4
Cambridge, 26 de dezembro de 1915


Notas iniciais do capítulo

Feliz Natal, pudins.
Obrigada por tudo.
Eu amo vocês!



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Querida Harriet, 

 

Chamei-a de Dorothy, em homenagem àquela personagem do livro O Maravilhoso Mágico de Oz que você tanto gosta.

Li e reli sua última carta até que as palavras não fizessem mais sentido. Estou enviando um pacote com algumas latas daquela sopa que você gosta, esconda-as muito bem. Vai reparar que uma delas está aberta e tem, em vez de sopa, pedaços de chocolate dentro. De nada!

Estou dormindo e comendo direito, eu juro! Descobri que é bem mais fácil subir na cama se eu me alavancar de costas ao invés de subir de bruços, e você vai ficar bem orgulhosa ao saber que estou conseguindo erguer meu próprio peso quase sem esforço. Eu tenho músculos, Harry, músculos! Engulam essa, soldados!

Além disso, as panquecas não explodem mais. Assim que decidi evoluir para algo um pouco mais complicado (torta de frango), descobri que cozinhar é muito divertido, mais homens deveriam tentar. Isto é, quando você não queima a comida, se isso acontecer a irritação pode chegar a níveis críticos. Eu chutaria o forno se conseguisse, mas já que não é possível me contento em gritar aquele palavrão pela janela. A senhora Turner sempre faz uma careta muito engraçada quando ouve. 

Depois do episódio no jardim, a velha não fez mais nenhum comentário maldoso, muito pelo contrário; ela até se ofereceu para me ajudar com um bolo de morango. No fundo, é uma boa pessoa. Mas bem lá no fundo, bem fundo mesmo...

Ah, e não se preocupe com a colônia. Fiz um estoque enorme delas aqui em casa, você nunca mais vai ficar sem, eu prometo.

Sinto sua falta cada vez mais, gostaria de poder te ver. Será que tem tempo pra desenhar algo e me enviar junto com a próxima carta? Adoro seus desenhos. 

Também aprendi alguns passos de dança interessantes. Preciso de uma parceira pra me ajudar a treiná-los. 

Chega de divagar, vamos aos fatos! 

Fiz o que me pediu, meu anjo. Eis a história: um dia antes da véspera de Natal, a filha dos Jacksons estava novamente na calçada e veio me cumprimentar com tanta alegria que me contagiou. Depois de alguns minutos desperdiçados com os habituais "Boa tarde", "Como vai você?", entre outros, tive a brilhante ideia de lhe pedir que me ajudasse a buscar as decorações natalinas no sótão. Ela trouxe tudo tão depressa que fiquei surpreso. Depois, ao ver todos os enfeites coloridos, seu irmão mais novo me perguntou se eu tinha uma árvore para decorar. Respondi-lhe que não, ao que ele abriu um enorme sorriso e saiu correndo para sua casa. Em minutos, ele estava de volta no quintal, arrastando dificilmente consigo o maior pinheiro que já vi em toda a minha vida. 

Eu, a irmã dele e a senhora Turner (que por coincidência estava outra vez regando seu jardim, mesmo que todas as flores estivessem secas por causa do frio, um fato no mínimo peculiar) fomos ajudá-lo e em pouco tempo (cerca de duas horas) a planta já estava na sala de casa. Saí à rua e chamei todas as crianças que encontrei para me ajudarem a enfeitá-la, e acho que nem preciso dizer que nós fizemos uma festa da bagunça. 

Ah, Harry, você devia ter visto... Tantas risadas, tantos problemas que pareceram desaparecer em questão de segundos com aqueles pequenos se divertindo tanto... No começo, tive medo de que eles quebrassem algo, pois crianças são apenas crianças, mas, ao contrário disso, elas seguravam as bolas de vidro como se fossem pequenos tesouros. 

Colocamos também laços de todas as cores, e soldadinhos de chumbo. 

— Eles não vão ficar sozinhos? — perguntou uma garota que tinha os dois dentes da frente faltando e os olhos mais brilhantes que já vi. Mais tarde descobri que seu nome é Janine. 

— Mas eles são todos amigos, um faz companhia ao outro — respondi, mas isso não a deixou satisfeita. Ela correu até sua casa e voltou com uma caixa cheia de delicadas bailarinas, que a ajudei a pendurar perto dos soldados. 

— Pronto! Agora eles podem conhecer novas amigas — disse ela e deu-me um sorriso cativante. Nunca vou me esquecer dele. 

Foi bem difícil pendurar as luzes, mas depois de algum esforço nós conseguimos. Um menino se equilibrou no sofá e colocou a estrela dourada bem no topo da árvore. Quando terminamos, já estava escurecendo, mas a sensação de acender tudo e observá-la brilhar foi indescritível. 

A simplicidade de todos eles, a forma como conseguem rir e se divertir em meio a tanto caos, é algo a se admirar. Ela pode encher qualquer um de esperanças. 

As crianças me ajudaram a espalhar a notícia. Logo o bairro todo estava sabendo que o Natal seria comemorado bem aqui na nossa casa, e fiz questão de convidar a todos. 

Na noite seguinte, a sala se encheu de pessoas. As mulheres colocaram seus melhores vestidos, usaram pérolas e aqueles chapéus de pena que nós dois achamos engraçados. Os garotos jovens demais para lutar foram arrumados por suas mães como se fosse um dia de igreja, alguns até usavam gravatas (um deles trazia no pescoço uma gravata-borboleta maior que a minha mão, Harry!). Parecia uma festa de gala! Por algumas horas, foi como se todos se esquecessem da Guerra e apenas aproveitassem a noite. 

Não só tivemos frango assado, como bolo, pudim, muitas tortas de tudo que você imaginar e panquecas. Cada um trouxe o que podia. Acho que você já pode imaginar qual dessas foi a minha contribuição, não é? 

Depois que todo mundo se serviu (comemos na cozinha e alguns na mesa grande da varanda, mas por sorte todos tiveram comida e lugar para se sentar), fomos para a sala. As moças colocaram o sofá perto da parede e tiraram seus sapatos. 

No mesmo instante, entendi a deixa; movi a cadeira até o piano e toquei algumas canções animadas. Elas dançaram de meias no tapete. Até os meninos deixaram sua vergonha de lado e dançaram um pouco de Charleston com elas! Foi muito divertido, a casa estava clara e quente e cheia de risadas. Só faltava sua presença para que tudo estivesse perfeito. A garotinha das bailarinas da qual falei puxou um banquinho e se sentou do meu lado, olhando fascinada para as teclas enquanto eu as pressionava. 

Aos poucos, a animação da noite foi diminuindo. As crianças estavam cansadas, algumas adormeceram nos ombros de suas mães. Conforme todos pararam de dançar, larguei o piano, pronto para descansar. Janine, ao contrário, estava cheia de energia. Ela correu para a sua estante e puxou exatamente o mesmo livro que você teria puxado: O Maravilhoso Mágico de Oz. 

— Lê pra gente! — pediu, com tanta inocência que me derreteu por dentro. Ao ouvirem isso, as outras crianças acordaram magicamente e se sentaram no chão, todas esperando ansiosas. Olhei para as moças e as mães, e elas também apresentavam um quê de interesse. 

Não tive escolha senão abrir, com cuidado, no primeiro capítulo do livro. A vira-lata que adotei se aninhou junto à menina e ouviu a leitura junto aos outros. 

Só ao fim do segundo capítulo as crianças começaram a bocejar. Suas mães perceberam e começou a pequena confusão da hora de ir embora. 

A mulher que carregava Janine no colo foi a última a sair. Ela me lançou um sorriso cansado e estendeu a mão para me cumprimentar. O garoto que acompanhava as duas, que também devia ser filho dela e era um pouco mais velho que a irmã, fez o mesmo. 

— Obrigada — disse. — Você nos deu algo a fazer além de chorar nesse Natal. Sei que talvez esteja ocupado, mas as crianças querem vir amanhã e ouvir o resto da história. 

Então tive uma ideia, Harry. E se eu lesse todos os dias para eles? Talvez isso possa fazer com que ao menos as crianças se ocupem um pouco. Aguardo sua resposta. 

Não demore pra me escrever, certo? Sinto saudades. Preciso de notícias daí. Está conseguindo dormir e comer direito? Há algo que eu possa fazer por você?

Na noite de Ano Novo eu estarei no jardim observando a lua. Se puder, faça isso também. Me sentirei um pouquinho mais perto de você. 

Volte logo pra casa, Harry. Eu te amo.

Sempre seu,

Luke. 


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado! Nos vemos no próximo capítulo ;) até lá, um abraço.



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