Ainda dói. Todos os dias.

Sabe, Gon... Você surgiu na minha vida e me salvou. Eu dediquei cada célula do meu corpo e cada segundo da minha vida apenas a você desde então. Eu era uma sombra. Tanto pelas trevas que me compunham, quanto por minha forma não me pertencer, mas sim a alguém maior. Meu irmão, meu pai, minha família. Você surgiu como uma luz. Brilhando. Me livrando das trevas. Porém, eu continuei uma sombra. Então eu era a sua sombra. Agora continuo uma sombra. Uma sombra do que já fui.

Nunca fui nada.

Posso segurar meu fôlego por você, Gon. Posso morder minha língua, posso ficar acordado por dias. Se é isso o que você quer, eu posso, Gon. Serei seu número um. Um escravo voluntário. Te seguirei cegamente até o fim dos tempos. Não havia para mim um fim mais provável e confortável do que morrer por ti. Parecia certo.

Por você, eu morreria sorrindo, Gon.

Eu posso fingir um sorriso, forçar uma risada. Eu fiz muito isso com você. E agora faço todos os dias, com minha irmã. Para ela. Mas por você.

Sempre por você.

Posso dançar e interpretar o papel, se é isso que você me pede. Fingir ser quem não sou. Até não ser mais ninguém.

Eu nunca fui ninguém.

Te dar tudo que sou. Posso fazer isso. Eu posso fazer isso, Gon. Sim, eu posso. E eu fiz. Cada célula. Cada segundo. Meu corpo, meu coração e minha mente são seus, use-os como quiser.

Mas você não usou. Você usou a si mesmo e me destruiu.

Mas sou apenas humano, Gon. Eu posso ser um assassino mais do que qualquer coisa, mas eu ainda sangro quando me corto. Sou apenas humano. Fui ensinado a não ser. E talvez não seria.

Mas você me impediu que eu deixasse de ser humano. Para quê?

E eu tenho limites, eu quebro, eu desabo. Eu decaio, sou destruído, minha força expira até eu esmorecer. Mas, por você, isso não acontece.

Acontece. Claro que acontece. Mas eu me levanto antes mesmo de cair. Cair é um luxo que eu não tenho.

Palavras intrusas na minha cabeça, facas em meu coração. Por você eu não enlouqueci. Você me salvou sem nem saber que eu precisava de ajuda.

Agora, sem você, quanto tempo levará para que eu enlouqueça?

Você me coloca lá em cima e depois eu caio aos pedaços. Não caio porque você me jogou ou porque não aguentaria mais. Eu aguentaria tudo. Afinal, sou apenas humano. Um humano devoto disposto a ignorar a existência de todos os seus limites.

Eu caí porque você se jogou. Você saltou sem olhar para trás. Eu saltei para te puxar. E ainda estou aqui em baixo.

 Posso ligar, ser uma máquina boa. Fui criado para isso. Fui feito para isso. Programado para ser uma máquina. Todas as minha engrenagens funcionam a todo o vapor sem nenhuma lubrificação. Afinal o único combustível que eu preciso é a sua existência.

Não use sua vida como combustível para ganhar poder. Quem faz isso sou eu. Veja como eu sei fazer direito.

Posso segurar o peso de mundos, se é isso que você precisa. Serei seu tudo. Posso fazer isso. Fiz isso. Eu superarei os limites. Mas sou apenas humano.

E não superei você.

Sangro quando desmorono. Eu desmoronei tantas vezes por ti. Sangrei litros por ti. E você nunca soube porque também quis poupar seu psicológico. Sou apenas humano. E eu, despedaçado, arruinado na mais terrível dor, encarando a morte por você, te poupo do menor abalo psicológico.

Eu não sinto a minha dor. Eu sinto a sua. É a sua dor que dói em mim.

Suas palavras na minha cabeça, facadas em meu coração. Você, lá em cima, me despedaça com suas palavras. Pois sou apenas humano, sou seu humano e você pela primeira vez me machuca conscientemente.

E suas palavras não passam de mentiras. Você diz que aquilo não importa para mim, quando nada antes importou tanto.

Sou humano, Gon, apenas humano. Apenas um pequeno humano inútil que não pôde impedir que você se destruísse porque fui fraco demais. Você tinha me destruído e eu tinha que ter superado isso antes.

Muito antes.

E eu ainda não superei.

Eu só pude aguentar um tanto até ficar de saco cheio, pois fui apenas humano. E eu sangrei quando caí. Fui apenas humano. E eu me despedacei e desmoronei. Suas palavras na minha cabeça, não pude te impedir de pôr facas em seu coração.

Por que fez isso, Gon?!

Você não pensou em mim?!

Eu nunca te pedi para pensar em mim antes.

E você sempre pensou.

Menos quando precisou.

Menos quando pensar em mim poderia ter te salvado.

Quando pensar em mim não atrapalharia minha estúpida ânsia suicida de te proteger.

O que acontece com uma sombra quando sua luz sucumbe às trevas?

Você pediu desculpas.

Desculpas inúteis e casuais.

Eu já havia te perdoado muito antes.

Mas eu sou apenas humano.

E ainda dói, Gon.

Porque eu sou, graças a você, apenas humano.