Mortem escrita por Ju


Capítulo 1
Capítulo 1




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“A morte não é nada para nós, pois, quando existimos, não existe a morte, e quando existe a morte, não existimos mais.” - Epicuro

 Escuro. Estava tudo escuro. Nada se comparava aquela escuridão, a sensação era de eu não possuir mais olhos, nem mesmo relances de imagem eu conseguia ver. Mas esse não era o pior...

Em meio a essa escuridão, a única companhia que tinha era eu e minha mente enlouquecida. O frio era imensurável a ponto que o único movimento do meu corpo era estremecer, minhas mãos não eram mais sensíveis ao toque e parecia que em algum momento meu corpo ia congelar.

Semicerrei os olhos com esperança de encontrar alguma saída daquele breu, foi quando eu vi aquele pequeno feixe de luz. Pisquei várias vezes pensando que aquela visão era originada da minha ilusão, me aproximei,tentando decifrar da onde aquela luz se originava e pude sentir uma leve brisa quente (nunca pensei que ficaria tão aliviado com algo tão simples e que pudesse me trazer tamanha esperança).

Rapidamente comecei a apalpar aquela coisa para encontrar um modo de abrir. A cada segundo a curiosidade me atiçava ainda mais, queria saber a origem daquela luz. O auge da minha curiosidade foi quando ouvi risadas abafadas, fiquei mais desesperado ainda para encontrar uma saída. Apalpei mais com mais precisão e foi quando senti algo redondo, pequeno e metálico. Um parafuso! O que era para ser minha salvação virou uma incógnita: como iria desparafusar e para onde aqueles quatro parafusos iriam me levar.

Comecei a girar o parafuso apenas com as pontas dos dedos, mas percebi que ele não saía do lugar. Tive que optar por algo mais invasivo, encravar minhas unhas na cabeça do parafuso para não escorregar mais de minhas mãos. Na primeira girada, senti o gelado do ferro penetrando debaixo de minhas unhas, ao sentir a dor apavorante, tentei afastar-me o mais rápido possível do objeto, mas senti que ele tinha ficado preso em minha carne. Acho que estava sangrando tanto que comecei a sentir um cheiro forte de ferro e algo escorria pelos meus braços.

Eu tentava resistir, não agüentava mais, então me lembrei de que aquela era minha única saída, a minha única esperança, então continuei.

Quando percebi que já tinha desparafusado por inteiro, tive que arrumar um jeito para tirar meus dedos daquele metal apavorante. Sem outra opção, usei minha outra mão para arrancá-los. Ao puxar, não saiu de primeira, tive que colocar cada vez mais força até que eu nem sentia mais dor. Eu percebi que o parafuso havia se soltado por causa de um barulho que veio de meus dedos, parecia que eles estavam se dilacerando.

Fui limpar minha mão em minha camiseta, foi ai que eu senti uma dor inevitável e desgraçada. Passei a outra mão para ver o estado que o ferimento em meus dedos estava, senti algo pendurado e ao meu toque, queimava parecendo que meu dedo estava sendo incendiado, porém eu tinha de continuar, pois faltava ainda mais três daquelas coisinhas infernais.

Tentei tirar aquela coisa indefinida que estava pendurada com a outra mão, mas escorregava demais por causa do sangue. Sem outra escolha, inseri-os em minha boca, prendi em meus molares e puxei com toda força que ainda me restava. Saiu com facilidade, senti o sangue quente e ferroso descendo pela minha garganta, mas pode ter certeza que essa sensação foi melhor do que a dor que eu sentia em meu polegar e meu indicador que foram ridiculamente machucados.

Para os outros três, utilizei os mesmos dedos anteriores, queria evitar mais dores em meus dedos intactos.

Quando retirei meu último parafuso, senti um alívio e ao mesmo tempo um formigamento incomum e diferente, parecia que faltava um único nervo para que meus dedos fossem arrancados fora.

Tirei a placa com desespero, dei um impulso no chão para subir no buraco da parede então fui engatinhando seguindo a luz misteriosa e clara como o sol. Dei de cara com uma grade e senti uma pontada em minha cabeça, tentei ignorar e me preocupar com ela depois. Para abrir a grade, eu não tinha condições de usar as mãos, então optei em chutar violentamente, deu certo. A grade era de metal, então ao cair no chão, fez um barulho estrondoso o que fez com que eu olhasse para ver o estrago, assim descobri que fez muito barulho porque o chão era de madeira velha e rangente.

Assim que pus os pés no chão, senti uma respiração quente que vagarosamente percorria minha nuca,por um segundo meu coração parou,pude jurar que por alguns segundos havia alguém ou algo atrás de mim,me virei e não encontrei nada alem da escuridão,continuei meu caminho, após caminhar mais um pouco naquele espaço delimitado pelo feixe de luz pude ouvir novamente aquelas mesmas vozes que eu ouvi mais cedo no quarto, mas dessa vez o som não estava abafado igual anteriormente. Comecei a seguir as risadas que pareciam familiares, me traziam conforto e ao mesmo tempo medo. Mas não, não poderiam ser eles, fazia tempo que eu não ouvia a risada de meus pequeninos, acho que a saudade está me enlouquecendo. Mas então algo cortou as risadas dóceis, outra voz familiar chamava meu nome, minha amada sussurrava lindamente e vagarosamente, “Osmar”. Não podia ser meus olhos se encheram de lágrimas perturbadas, eu tinha de ver se eles tinham voltado de onde foram para me proteger, para não me deixar só.

Resolvi ir atrás deles porque eu não acreditava que aquilo era real, como meus filhos e minha mulher sobreviveram ao incêndio?! Como me encontraram aqui? Por que eles não me tiraram daquele quarto sombrio? Que casa é essa? E a principal pergunta, onde eles estavam?

Eu comecei a correr em meio à escuridão, pois não consegui saber de onde vinham aquelas vozes, a casa parecia um labirinto que mudava a cada passo que eu dava, eu estava praticamente andando em circulos. Entrei no primeiro quarto que eu vira, era rosa e tinha um berço. Ele seria lindo, se não tivesse aqueles bichos de pelúcia macabros, empoeirados e horripilantes. Meu corpo se estremeceu, por alguns instantes tive um vislumbre de um pequeno embrulho naquele berço deturpado, meu maior medo: tudo me parecia assustadoramente familiar, me recordei das noites que passei em claro com aquele pequeno ser em meus braços, senti necessidade de envolver aquele minúsculo ser e tira-lo daquele quarto obscuro, mas no momento em que levantava seu cobertor para pega-lo, meus olhos perderam o foco e a veracidade do ambiente se revelou. Tudo ainda era sombrio,sem vida e solitário.Me deparei com a realidade,aquele embrulho não era real.

Continuei a investigar.

Cada vez que eu avançava, as vozes ficavam mais altas e repetitivas. Continuei minha busca que por enquanto estava sem sucesso. Entrei no próximo quarto, ele estava cheio de livros empoeirados e rasgados, nem ousei investigar ele por completo, pois não tinha como andar lá dentro, eram entulhos e mais entulhos de diversos objetos, mas um determinado objeto me chamou a atenção, era um binóculo, mais especificamente o binóculo do meu filho, o quarto escureceu por completo e isso impossibilitou maiores investigações.

Avancei no corredor, encontrei algumas portas trancadas e outras entreabertas, porém não dava para entrar porque algo do outro lado prendia a porta.Era como se algo não queria que eu investigasse.

Bem no final daquele imenso corredor, tinha uma porta escancarada e no teto havia uma lamparina que quando eu cheguei perto dela, começou a piscar consecutivamente. Arrepiei-me, mas tive que entrar porque as vozes e as risadas vinham de lá.

Ao entrar, era um quarto vazio, frio, com as paredes que tinham algo que aparentava ser gosmento e meio acinzentado e a luz que o iluminava era fraca. De repente, tudo ficou quieto por um longo tempo, senti uma mão tentando entrelaçar as minhas, me assustei, mas logo vi que era Otavio, meu filho, observei seus olhos esbugalhados pelo pavor e o questionei, mas ele não respondia era como se seu boca estivesse selada, então ele simplesmente agarrou mais fortemente a minha mão e me puxou em direção a porta, era como se quisesse me mostrar algo.

No momento em que seu pequeno corpo passou pelo batente da porta, ela se fechou, nos separando.

 Depois que a porta se fechou pude ouvir gritos agonizados, pedindo por socorro, não somente de meu filho, mas também de minha esposa, assim como o choro desesperado de um bebe. Ouvi inúmeras pancadas na parede,como se as pessoas que se encontravam do outro lado suplicassem por salvação,esta que poderia vir somente de mim,eu não poderia deixá-los.

Tinha que fazer algo.

Então fui procurar alguma coisa para quebrar a parede, mas o quarto estava vazio, nada além de um chão de cimento. Numa tentativa desesperada de chegar até eles,joguei meu corpo em direção a porta para ver se a madeira cedia,foi em vão: cai para trás rasgando minha camiseta e machucando minhas costas.

Os choros continuavam e o grito da mulher também, sem saber o que fazer, eu comecei a esmurrar a parede, mas meus dedos ainda doíam demais então à força que eu batia não era o suficiente para quebrá-la. Ainda sem sucesso, resolvi tentar chutar a parede com toda a força que me restava. Dessa vez, foram meus dedos do pé direito que se feriram, porém consegui abrir um buraco de tamanho médio. Tentei esquecer a dor de meu pé e me preocupar mais com o que tinha acontecido com eles.

Com a minha mão não machucada, aumentei o buraco que eu tinha feito. Assim, entrei lá e a única coisa que eu enxergava era um corredor sem saída e escuro, sua única iluminação vinha do quarto nojento que eu estava. Era como se todo aquele corredor que eu andei por horas estivesse sumido e tudo que havia nele se resumia em apenas um feixe de luz.

Decidi andar poucos metros a fora, somente por onde a luz pudesse me guiar a cada passo que dava mais me aproximava daquela escuridão que aparentava ser interminável. Eu não podia perder a esperança de encontrar minha família, eu estava com tanta saudade daquela mocinha que corria aos meus braços quando eu chegava do trabalho, com apenas dois anos já era considerada por mim a melhor pintora dos sete mares e do meu menininho então, que me fazia perguntas tentando entender o mundo através de mim. Ele dizia que queria se tornar um grande investigador, apaixonado por mistérios e segredos, vivia bisbilhotando a vida dos vizinhos com seu binóculo,me via como seu herói. Acho que ele estava errado, tentei proteger ele tanto que no final quando ele mais precisava de mim, eu preferi me salvar a salvar ele.

E minha mulher, minha melhor amiga, como me fazia falta aquele olhar de menina, sorriso encantador, beijos enlouquecedores e abraços que me confortavam. Oras noites discutindo, oras noites nos amando. Casamento perfeito, todos diziam.

Eu me lembro de quando nos conhecíamos, tão pequenos e ingênuos, mas já sabíamos que estávamos destinados a um grande amor. Lembro-me de quando ela me dizia que queria ter dois filhos, uma menina e um menino, Olívia e Otávio em homenagem ao meu nome que ela amava tanto.

Depois que eles se foram, me senti tão vazio, tão só. Eu não tinha amigos, eles eram meus amigos, eu não tinha vida, porque eles eram a minha vida. A dor que senti foi lancinante e impetuosa, como se eu não vivesse, somente existisse. Ouvindo suas vozes, era como se eu tivesse voltado um pouco a viver e eu precisava encontrá-los para viver inteiramente.

Silêncio.

As vozes subitamente pararam e senti um arrepio. O maior problema era que elas me guiavam e já que eu não via mais nada, parei de andar e olhei para todos os lados para ver alguma coisa que fosse diferente da escuridão.

Desapontado, eu sabia que tinha que voltar. Eu não queria, queria seguir as vozes, mas que vozes? Elas já não existiam mais, por quê?

Há muito tempo eu não chorava, não havia mais porque chorar, eu não tinha mais motivos, arrependimento não os traz de volta.

Lentamente e desanimado, voltava para onde eu tinha saído. A penumbra não me deixava saída, a não ser voltar.

Assustei-me, algo molhado, quente e consistente havia caído em minha testa. Parei de andar, passei a mão para ver o que era, mas eu não enxergava nada. Virei-me para onde havia um pequeno feixe de luz que vinha do cômodo, estendi minha mão a frente de meus olhos e vi que era uma substância vermelha, vermelha como o sangue fresco. Eu não sabia de onde se originava aquilo, então comecei a procurar em meu corpo por lesões novas e também verifiquei meus machucados, porém tudo estava em ordem.

Ouvi um tilintar no chão e uma nova claridade tomou conta do ambiente. Olhei para aquele objeto e eu o peguei com as mãos, era um anel, o mais perturbante era que não era qualquer anel, aquele pequeno objeto dourado era a representação do meu casamento feliz.

Antes que eu raciocinasse, caiu outra daquela gota misteriosa em meu ombro, só que dessa vez eu vi de onde ela veio. Olhei em direção em direção aonde parecia ter originado o liquido viscoso.

Arrependi-me amarguradamente.

A cena me fez ficar estático.

 Meus filhos e minha mulher, pendurados cada um por uma corda, todos ensangüentados e mortos.

Um grito agonizante que penetrou minha alma e que apoderou meu corpo. Aquele grito parecia que veio de minha mulher, pois ela estava com a boca entreaberta e seus olhos estavam sangrando, parecendo um choro tenebroso. Tudo isso fez com que eu, sem pensar duas vezes, corresse. Antes que eu pudesse estar a uma distancia segura, um fogo que surgiu sabe-se lá de onde, bloqueou meu caminho, eu não tinha mais saída. Um círculo se formou ao redor de mim e de minha família.

“Por que você fez isso? Você dizia que nos amava e que jamais nos abandonaria, papai.”

“Papai, por que você não veio me salvar?”

Não podia ser eles, eles estavam mortos e inteiros, ali em minha frente. Como isso? O fogo se aproximava e os três começaram a gritar chorar, me perturbar... Eu não conseguia fazer nada, a não sentar, abaixar a cabeça, fechar meus olhos e esperar pela minha destruição.

“1,2,3, o fogo está vindo com rapidez.”

O fogo se aproximava e o calor se tornava insuportável a ponto de bolhas começarem a se formar em meu rosto. A dor era agonizante e a cada segundo eu implorava cada vez mais pela morte.

“4, 5,6, a morte está me seguindo outra vez.”

Comecei a sentir uma respiração ofegante a frente de meu rosto, o cheiro era de algo podre em decomposição. Senti suas mãos se aproximarem de minha face, mas aquilo não podia ser considerado mãos, havia garras que perfuraram minha pele a caminho de meus olhos, que nem por um segundo me atrevi a abrir. A coisa sussurrou em meu ouvido:

“Abra seus olhos”

Suas garras me forçaram a olhar seu rosto que não poderia ser descrito como algo ou alguém, era o rosto de um demônio. Seu corpo parecia um amontoado de pele putrefata, seu sorriso era assustador e cheio de ironia e seus olhos eram escuros, como se não houvesse nada lá.

Ele se aproximou lentamente a garra em um dos meus olhos, eu não pude fazer nada para impedir, era como se meu corpo estivesse paralisado e não pudesse realizar nenhum tipo de movimento, parecia que ele se divertia em brincar de fazer círculos com sua garra em minha córnea, algo que me causada uma dor indescritível e um medo ainda maior. Um movimento brusco como se algo tivesse perfurado um nervo se apoderou de mim, e o sangue começou a escorrer de meu olho esquerdo, quando pensei que ele iria simplesmente arrancá-lo fora, ele se aproximou em um movimento rápido, algo que me fez ter a sensação de que já possuirá mais um de meus olhos e gritou:

“7, 8,9, acorde e veja o que você fez.”

Abri os olhos e percebi que estava na cama, imobilizado por uma camisa de força. Vi o quarto cinza, grades na janela, vi enfermeiros e o psiquiatra me olhando cautelosamente com seu rotineiro olhar de preocupação. Por mais estranho que fosse me vi feliz em estar naquele lugar do que na minha própria ilusão, a realidade era muito podre para se suportar, o arrependimento, a saudade, o medo e a loucura me corrompiam. Mas a maior pergunta: o que era a realidade? Algo tão desfocado para mim aonde meus pesadelos se mesclavam com a minha realidade,era como se existisse um véu de alucinações sobre meus olhos.

Me acalmei diante de tantos pesadelos.

Ou seriam lembranças?Então eu a vi.

Aquela figura obscura de sempre, mas por que ela estava aqui? Nós não tínhamos um trato, a vida da minha família pela minha?

Debatia-me tentando fugir, mas era inútil estava preso ao meu próprio corpo.

Ela se aproximou com cautela e pousou sobre mim, ficamos cara a cara, a esse ponto já me encontrava mergulhado no terror, um sorriso se formou em sua face. E com um único beijo nos selou.

“10, te peguei dessa vez.”


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