Caminhantes escrita por Serin Chevraski


Capítulo 111
O Valor de uma Receita




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Lucy POV

O espelho meio sujo acima da mesa da escrivaninha retornou meu reflexo desfigurado pela cicatriz de uma queimadura.

Quem me fez isso foi Natsu, com um intenso ódio gravado nas suas ações, mas quem fez a marca de dragão nesse corpo, também foi Natsu.

Ele a amou e a odiou. Com certeza um romance distorcido.

— Lucy! -a voz de Erza fora da barraca me chamou- Saia para comer!

Coloquei a máscara de volta com velocidade e encarei Zeref ao meu lado.

Os olhos ônix do corvo me fitaram e então passei por ele, saindo da barraca. Com o batimento das asas, duas garras se prenderam no meu ombro direito.

— Você... -o encarei estranhamente.

A cabeça do pássaro tombou pro lado, me encarando inocente.

— O que foi?

A pergunta natural de Zeref me deixou sem palavras.

Esquece, é só um ombro e um corvo. O que isso pode dar errado? Apenas um folgado me usando de carona? Sou mais generosa do que isso.

Quando ergui o pano para revelar o lado de fora da barraca, um acampamento bem ensolarado se estendeu na frente dos meus olhos.

Os homens robustos com cicatrizes me encararam.

— Bom dia -eu os cumprimentei.

— B... Bom dia! -eles disseram, meio assustados.

Pisquei achando estranho, mas logo vi a cabeleira ruiva com as costas retas e confiantes.

— Lucy! -ela acenou para mim, se sentando num tronco em frente à uma das muitas fogueiras espalhadas pelo acampamento.

Depois que passei pelos outros mercenários, escutei alguns sussurros.

— A Platina Sanguinária nos cumprimentou?

— Eu também escutei.

— Aquele pássaro no ombro dela... É um corvo?

— Ahh!! -um suspiro de susto foi exclamado.

— O símbolo da morte!

— Por que ela tem um pássaro sinistro com ela?

... Essas palavras... Eu deveria ter reconsiderado em levar Zeref comigo?

— Sente aqui comigo! -Erza deu palmadas ao lado dela com um sorriso.

A mulher não parecia se importar ou já havia se acostumado com o pássaro, fingiu não ver o ser pousado no meu ombro.

— Zeref, até quando você pretende ficar aí? -não aguentei os olhares persistentes dos homens ao meu redor.

— Zeref? -Erza me encarou, enquanto segura uma tigela de sopa fumegante.

De repente mordi minha língua. Ops, Zeref é um nome tabu, certo?

— É o nome do pássaro? -ela me passou a tigela.

— Sim. É um nome estranho?

— Nunca escutei esse nome antes, mas você pretende ter um corvo como estimação?

Parece que o problema era o corvo e não o nome.

— Eu não sou de estimação -veio uma resposta de Zeref.

— Ele não é de estimação -tive que concordar com uma cara séria.

O mago negro malvado sendo meu animal de estimação? Se fosse, então os demônios que eram subordinados deles, seriam o que? Os capangas do meu animal de estimação?

Senti arrepios na espinha. Isso é muito sinistro.

— Oh -Erza ergueu as sobrancelhas.

— Você precisa comer, Zeref? -questionei erguendo meus olhos para cima do ombro.

— Não, as vantagens de ser imortal é que não preciso fazer coisas de mortais.

— Mas você respira, certo?

— ... Você acha que eu respiro?

— ... Qual a diferença entre um zumbi e um imortal?

— ... Ok, eu respiro. Essa é a diferença.

— Lucy, por que você está falando com um corvo?

Me deparei com os olhos castanhos da ruiva, ela me encarou como se fosse um bicho raro e esquisito.

Logo lembrei que ela não consegue escutar as palavras de Zeref.

— ... Não é nada. -respondi, colocando uma colher de sopa na minha boca com urgência.

— ... Lucy, não é bom falar com animais, isso pode ser sinal de demência. Devo chamar um médico? -o rosto sério dela expressou uma preocupação muito grande.

— Coff coff -me engasguei.

Não falar com Zeref perto de Erza. Anotado!!

— E o homem de ontem? Ryos? -perguntei apressada, tentando desviar do acontecimento.

A mão da ruiva que estava erguendo uma colher de sopa para os lábios, pausou por um minuto.

— Depois de sumir por dias, finalmente volta, mas agora disse que tinha mais coisas a resolver e sumiu de novo. Ele prometeu voltar de noite -sua resposta saiu seca- Você já decidiu uma punição para ele?

Toquei minha garganta com a ponta dos dedos, me lembrando do olhar dele. Ainda dói um pouco.

— Estou pensando ainda.

— Hmpf, ele deve ter enlouquecido.

A voz dela cheia de aborrecimento me fez sorrir.

Erza não conhece o meu passado. Nem o passado de Rogue. Mesmo assim é uma líder que dá um lugar para pessoas que possam ser suspeitas, as tratando como família.

Isso foi um pouco misterioso.

E uma pessoa assim, Lucy Knightwalker não conseguiu ver seu carinho e amizade.

De repente me senti triste por ela, Erza já era uma boa amiga, mas ela rejeitou isso.

Então pensei na estranheza da ruiva em não reconhecer o nome do mago maligno.

— Zeref, você não tem presença nesse mundo? -sussurrei bem baixinho para o corvo.

— Sou só um pássaro despercebido -ele assentiu.

Ou seja, a existência de Zeref realmente desapareceu. Nessa vida ele não é nada mais que um corvo sem nome e identidade.

Coloquei outra colher de sopa na minha boca.

— Hum, hoje também está muito salgado -riu Erza.

Um homem moreno com uma cicatriz pálida no braço direito peludo ergueu uma concha de sopa, com um sorriso.

— Não está salgado! Talvez seja o novo tempero que compramos da última vez no mercado. Líder, não é bom ser muito exigente!

Sua voz forte ecoou alto, e todos os mercenário à nossa volta riram. Alguns estavam comendo pão, outros sopa. Alguns seguravam uma caneca e outros poliam suas armas. Mas todos estavam iniciando o dia de forma vagarosa.

— Não, claramente isso é excesso de sal! -Erza franziu as sobrancelhas, mas não pode deixar de ter um coração mole no seu tom rigoroso.

As vezes esses cenários pacíficos também são bons e relaxantes.

Enquanto escutei a troca de risadas e provocações, percebi algo estranho.

 

Zeref POV

Quando Lucy mostrou seu rosto por baixo da máscara, não pude deixar de encarar. Mesmo a seguindo por um ano, nunca havia visto essa cicatriz de tão perto, embora já tivesse visto de longe, então sei exatamente o que haveria ali.

E dessa vez resolvi seguir ela usando seu ombro como poleiro. Embora as pessoas à nossa volta fiquem sussurrando certas coisas, isso não era realmente um problema.

Afinal, a reputação de Lucy já estava ruim, se adicionar uma coisa ou outra não faz diferença. O que está no fundo do poço não pode ser escavado mais, certo?

Então Lucy me fez uma pergunta estranha, sussurrada no meio da risada entre as vozes fortes dos mercenários.

— Zeref, na vida passada você via tudo que acontecia na Fairy Tail?

Na vida passada?

Demorei um pouco para entender.

Mas depois de pensar um pouco, assenti.

— Sim.

Na vida passada fui uma existência que não poderia existir. Fui como uma anomalia do mundo, mas sabia o que acontecia na guilda.

— Aconteceu algo, Lucy?

Quando a encarei, sua mão que colocava a sopa nos lábios, parou de se mover.

Está envenenado?

Então olhei para a mulher ruiva. Ambas comeram a mesma comida, e Erza parece estar bem.

Virei o bico para Lucy, questionador.

— Quando... -sua voz ficou cada vez menor- Quando... Eu entrei na guilda... Levy-chan... Segurava uma nota.

Pisquei os olhos e tentei me lembrar.

Sim, uma garotinha que é adulta, mas tinha o tamanho de uma criança, com o cabelo azul e arrepiado, sempre ao lado de um Dragon Slayer de humor cínico.

Levy Mcgarden. Eu me lembro dela.

— A nota que ela segurava... Por que ela segurava uma nota?

Sua voz tremeu, meio incerta. A pergunta de Lucy carregava emoções estranhas que não consegui entender. E sua pergunta era menos compreensível ainda.

Fechei meus olhos por um instante, tentando me lembrar.

Então uma conversa foi puxada da minha mente.

"- O que você tá fazendo, baixinha? Gehee

— N... Não te interessa!

— Não precisa ficar com raiva, sua cara tá muito vermelha!

— Tira a mão da minha cabeça, Gajeel!!

— Aí, aí, a suas tapas estão ficando mais fortesGehehe

— ...

— Hmmm... O que está escrito? Receita...?

— G... Gajeel! Isso não é da sua conta!

— Você está fazendo uma carta para a Bunny-girl?

— ... É porque você disse...

— O quê?

— É porque você disse! Lu-chan vai voltar para se despedir, então tenho que me preparar!

— ...

— Então... Hic... Eu vou escrever a minha receita... Lu-chan sempre tem a mania de guardar os problemas dela sozinha... Então...

— Entendi, entendi. Não precisa chorar.

— Gajeel!! Quem está chorando!? E tira a mão da minha cabeça!

— Está bem.

— E... E quando ela vier aqui, eu vou colocar esse papel no bolso dela secretamente! Para pesar na consciência dela do quanto ela está perdendo por me abandonar!!

— Sim, você é insubstituível, baixinha.

— Eu tô falando sério! Estou me vingando!

— Sim, sim. Eu sei. Gehee."

Levy McGarden estava brigando com Gajeel Redfox, e depois disso ela levava aquele papel com receita vingativa todos os dias.

— É por que ela queria se vingar -respondi.

— Vingar? -Lucy respondeu pasma.

— ... Para colocar esse papel no seu bolso. Quando você encontrasse, ia descobrir que ela era insubstituível.

— ... Zeref...

— Diga.

— Você sabe o que estava escrito no papel?

— ... Uma receita.

Lucy sorriu, encarando para a própria sopa.

— "Minha receita secreta para a Lu-chan! Já que você vai morar na Sabertooth, e não pode viver sem meu chocolate quente, vou passar para você a minha receita! Seja agradecida!"

Os mercenários ainda estavam rindo e conversando sobre fofocas e provocações, sem perceberem que Lucy parecia deslocada.

Erza estava empunhando uma arma e começou uma briga com os outros mercenários. Mas eu sei, se ela fosse a sério, nem existiria um acampamento e talvez um cânion.

Enquanto assistia essa bagunça na minha frente, Lucy murmurou tão baixo, que apenas eu, quem estou pousado no ombro dela, poderia escutar.

— Ela me passou a receita para que nunca a esquecesse.

Seu rosto escondido por uma máscara me impossibilitou de ver sua expressão. Antes que eu pudesse dizer algo, Lucy mudou de assunto repentinamente.

— Zeref, você sabe como foi que consegui essa queimadura?

— ... Talvez...

— Sim. Foi Natsu.

— ...

— Ele queria me cegar. Talvez estivesse se vingando. Não, eu tenho certeza que estava se vingando.

Eu a fitei em silêncio, sua voz cheia de tristeza não pode ser escondida. E a mão dela subiu até a parte de trás da própria cabeça, se escondendo entre os cabelos curtos.

— Ele segurou meu rosto com força e comprimiu a minha cabeça com tanta raiva, que na batida, até o chão se quebrou. Tem uma cicatriz aqui atrás.

Franzi minhas sobrancelhas com o relato de Lucy.

— Dizem... Dizem que uma pancada na cabeça, pode trazer sequelas. Entre elas... Perca de paladar.

— Espera... Lucy, você...

— Natsu tentou me cegar, não deu certo... Mas parece que perdi outra coisa no lugar.

Arregalei meus olhos, nesse tempo que a observei, nunca houve nenhuma anomalia nesse sentido. Eu não pude perceber isso, e Lucy Knightwalker estava vivendo sem demonstrar nada.

— Ah... Haha... Levy-chan... Você finalmente me contou o segredo do seu chocolate quente... Mas... O que devo fazer com isso...? Talvez eu possa nem sentir o gosto, mesmo sabendo dessa receita.

... A última coisa que Levy McGarden deixou, não poderia ser usado.

O som triste da sua voz indicou que ela estava chorando. Mas suas lágrimas estavam bem escondidas por trás da máscara e eu não pude ver.


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