Hiraeth escrita por Uma Qualquer


Capítulo 4
Forasteiras




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A garota despertou minutos depois.

Sentia o cheiro da irmã. A presença. O calor. Mas a cama ao lado, de onde essas sensações emanavam, estava vazia.

A moça estava em um cômodo próximo, ela presumiu. Ouviu uma voz vinda dali - masculina, jovem e clara - intercalando-se a da sua irmã, e deixou escapar um profundo suspiro.

Como Gee podia ser tão estúpida? Confiar em alguém que mal conhecia, logo após o confronto que tiveram, num local desconhecido? Ela se fazia essas perguntas, a mente rodando entre pragas e palavrões. Tinham que ficar juntas, oras. Ela não podia ser tão relaxada apenas por causa da loba. Não sabiam o que podia acontecer.

E não sabiam onde estavam. Ou pelo menos, a garota não sabia.

Sua mão buscou um apoio para levantar-se e encontrou o suporte da cabeceira, de madeira bem polida, esculpida como raízes entrelaçadas, terminando em pequenas castanhas. Era uma escultura peculiar. Os dedos percorreram toda a textura da superfície, curiosos. A cama ao lado tinha o mesmo modelo de suporte. A madeira junto ao chão foi esculpida de modo a parecer raízes brotando das tábuas do assoalho.

Interessante, ela pensou, e então sua mente voltou-se para a urgência do momento. 

E ao fazê-lo, a garota percebeu que esteve sendo observada, o tempo inteiro.

— Gosta de marcenaria? - Indagou o homem na penumbra da porta.

Sua voz sombria e rouca pôs o espírito da garota em alerta. Ele aproximou-se da lamparina sobre a mesinha próxima, revelando um rosto largo e forte, de barba e cabelos castanhos e revoltos. Os olhos claros a prescrutavam, analisando aquele pequeno ser estranho no seu ambiente. A sombra alta dele logo alcançou a garota, que não se intimidou nem com a altura nem com o físico robusto e pesado, capaz de derrubá-la no chão apenas com um tapa em seu rosto. Era ameaçador, sem dúvidas, mas a garota não sentia ameaça alguma vinda dele.

Ao contrário, estava tão curioso quanto ela.

— Então você é adotada. Realmente não parece com sua irmã. - o tom dele era zombeteiro. - Muda feito uma porta, enquanto a mais velha parece uma matraca.

Como que para confirmar o que ele dizia, a garota ouviu o riso melodioso da irmã próximo dali. Até quando não queria, ela era inconveniente, pensou desalentada, e dirigiu um olhar de desafio ao homem.

— Não sabe nada sobre mim - declarou.

— Ah, sei sim. Seu nome é River. - Ele deu uma tossida, como que para disfarçar um riso. - Uma humana que vai estar fora da minha cabana de hoje para amanhã ou até antes, se eu tiver sorte. 

— Não quero ficar na sua cabana - ela rebateu.

— Pois é, mas não é uma situação onde nossas vontades decidem alguma coisa. Você e Georgie tem que estar fortes e bem alimentadas pra aguentar a viagem até Hiraeth. Lá eles vão decidir o que fazer com as duas, ou vocês decidem. Enfim. Não me interessa. Só quero que saiam logo daqui.

Absolutamente desagradável, River pensou sobre ele.

— Não a chame de 'Georgie' - resmungou, descendo da cama.

— O nome dela é muito comprido. Além do mais, ela me deu permissão.

Maldita... Vá, deixe que a chamem do que quiserem. Quero ver onde você vai parar desse jeito.

Havia sandálias de couro aos seus pés, e uma camisola de algodão cobria seu corpo. River sentia os ferimentos e arranhões da pele curados, e no geral muito bem tratada, mas estava pouco disposta a perguntar a um ser tão intratável quanto aquele homem quem tinha cuidado tão bem dela. Certamente não foi ele. Sua irmã estava conversando e rindo, o que significava que ao menos estava viva e bem. 

Alguém as tinha resgatado e cuidado delas, era óbvio. Mas aquele alguém sabia as circunstâncias em que elas se encontravam? Além do mais, o homem se referiu a River como uma irmã adotada... O que será que Gee havia contado àquelas pessoas?

Deixando o quarto ela seguiu por um corredor imerso em sombras e luzes alaranjadas, efeito dos lampíões sobre o assoalho de madeira lisa. O homem entrou num cômodo sem portas, cuja entrada em arco dava para uma sala de jantar ampla e confortável. Havia fogo na lareira e no fogão a lenha, onde fervia um bule que exalava um aroma de ervas familiar a ela. Perdizes e peças de carne seca pendiam do teto, junto a feixes das mais variadas ervas. Ao centro, numa grande mesa com várias cadeiras, Gee e um rapaz conversavam com uma tímida e animada familiaridade.

Ela está bem. 

Um peso deixou o coração de River. A moça vestia uma camisola semelhante à dela, coberta por um robe de lã escura. Os cabelos longos caíam pelos ombros e se espalhavam pelas costas - alguém devia tê-los penteado também. A luz dos fogos acesos dançava em seu sorriso, e com razão o rapaz parecia um tanto atordoado perto dela. River sempre considerou a irmã herdeira da beleza da mãe das duas. E acima de tudo, o sangue, os ossos quebrados, o medo de perdê-la - tudo havia ficado para trás. Ela estava ali, bela, sã e salva.

Assim que a viu, Gee arquejou e sorriu emocionada, exclamando pela irmã. O rapaz ajudou-a a se levantar e River foi até ela, recebendo um abraço forte de loba, que provava que a irmã estava mais do que bem. 

— Pelos deuses, como é bom te ver!- ela cobriu sua cabeça de beijos, e então olhou bem o seu rosto. - Como se sente?

— Depois desse abraço, dolorida- River resmungou.

— Oh, então é uma dor boa- ela a conduziu animada para a cadeira ao seu lado. - Venha, precisamos nos alimentar. Aqui é um lugar seguro.

Não me diga.

— Este é Severin Proctor, do vilarejo de Crestfallen - ela o apresentou ao homem, que sorriu um tanto sem jeito. 

Tinha modos e aparência mais refinados que o carrancudo anfitrião, que agora estava ao lado do forno cortando fatias de presunto numa tábua. Era realmente bonito, com a barba bem feita no rosto forte e harmonioso. River podia entender também o porquê de sua irmã parecer um tanto tímida de repente. Em todos aqueles anos nunca a viu interessada no sexo oposto, mas alguma hora teria que acontecer. 

Apenas uma coisa a incomodou, ao observar as unhas das mãos de Severin.

— Todos em Crestfallen são humanos, assim como eu - ele lhe explicou prontamente. - Dentre eles, apenas eu sei da existência dos transmorfos. As... "Pessoas que mudam". 

— Entendo - River franziu a testa. Não sabia se aquela era uma situação confiável.

— E este é... 

Um fatiar mais forte da lâmina na carne fez Gee se calar abruptamente.

— Reyne Irving - o homem se apresentou num resmungo, sem olha-las. 

River lhe dirigiu um olhar enviesado. Gee devia estar pressentindo alguma indisposição contra o homem por parte da caçula, pois puxou a manga de sua camisola de leve. - O sr. Irving me contou que a curandeira que cuidou de nós disse pra nos alimentarmos bem, assim que acordássemos. Com as comidas mais reforçadas que puderem nos servir.

— Mesmo? - River sabia bem o que era uma comida reforçada: aquilo que elas não tinham um centavo para pagar. - E cerveja também?

Ela manteve o rosto de sério desdém, mas gostou de ouvir o homem bufar irritado ao trazer o presunto, junto com uma tábua de queijos, manteiga e pães. Reyne então olhou para o rapaz. - Severin, o barril.

Aye. - Severin se encaminhou para o barril num canto da cozinha e o puxou para perto da mesa, onde abriu a torneira e começou a encher as canecas.

Se River lembrava bem, a tal Crestfallen era uma aldeia puritana, onde todos prezavam o trabalho, a reza e o controle de excessos. Certamente um homem como Severin não estava acostumado a ver uma doce e encantadora moça como a Gee entornando canecas de cerveja e comendo até não poder mais.

— Espero que não vomitem nada depois - Reyne ameaçou observando as duas beberem da cerveja como pessoas sedentas tomando água. - Todo alimento e bebida nesta cabana é de qualidade.

Ao menos naquilo River tinha de concordar. A cerveja era a melhor que já tinha provado, o presunto e o queijo estavam no ponto certo de maturação, o pão estava quente e macio. Severin apanhou porções modestas para si, assombrado com a quantidade de comida que Gee estava colocando para dentro. 

— Se não se importa - River lhe estendeu a caneca - pode colocar mais?

Reyne já nem parecia se importar com o ar insolente dela. Parecia gostar de ver pessoas apreciando a comida de sua casa. Assentiu para Severin, que encheu a caneca dela e a de Reyne também. 

— Então, quer dizer que vocês foram criadas na floresta - o homem indagou, tomando um gole enquanto as observava.

— Por um tempo - Gee mastigou o queijo e engoliu antes de continuar. - Depois nos criamos na estrada. Foi de lá que veio nossa falta de modos, então, desde já peço desculpas. 

— Modos não enchem barriga - Reyne bufou e entornou a caneca. - Só usamos colher pra tomar sopa porque não há jeito mais fácil de fazer isso. Mas se forem a Crestfallen, vão ver que as moças de lá são mais... Educadas.

Olhava para River ao dizer isso, mas não em tom desdenhoso. Parecia ser um alerta. Ao notar isso, River soltou o pedaço de presunto sobre a mesa e voltou-se para a irmã, pedindo em silêncio por uma explicação.

Então, cheia de pesar, Gee contou sobre a lei de Hiraeth. A vila de transmorfos que elas procuraram por tanto tempo, mas na qual apenas uma delas podia habitar.

— Nós não precisamos realmente ficar - ela apressou-se em dizer. - Não andamos tanto tempo pra vivermos separadas. Deve haver outro lugar...

— Não - Reyne disse, categórico. - Se era uma vila de 'pessoas que mudam' que vocês estavam procurando, um local seguro contra lobisomens, vocês acharam. Não há outra nesse país. Talvez em outros países, mas ninguém nunca esteve a fim de pegar um navio e sair procurando. 

River tomava a cerveja, pensativa. Gee comia com um ar infeliz, e Reyne bebia em silêncio. 

— Bom, vamos resolver isso quando chegarmos a Hiraeth- Severin tentou aliviar os ânimos. - Se concentrem em recobrar as forças. E... Modos realmente não enchem barriga.

A garota o viu largar a faquinha com que cortava pedaços do presunto e pegou a fatia inteira com as mãos, parecendo desajeitado. Mas arrancou um risinho feliz de Gee e fez River sorrir por dentro - Severin era mesmo um bom homem.

Já em relação ao sisudo dono da cabana, com seu olhar arguto perdido em pensamentos enquanto bebia, ela não tinha certeza.

 

 

Quando subiram na carroça, do lado de fora da cabana, o humor de River parecia não ter melhorado nem um pouco. 

— Seu nome é Georgiana - resmungou para a moça. - Não deviam deixar lhe chamarem de qualquer outro jeito.

— Você faz caso por tão pouca coisa - ela reclamou de volta. - Podemos ter que viver separadas de agora em diante, e tudo que lhe interessa é o modo como sou chamada.

 - É o modo que nossos pais escolheram te chamar. Aliás - ela ergueu uma sobrancelha - por que disse a eles que sou adotada?

— Porque seria estranho - Georgiana baixou a voz, entonando-a de modo que River prestasse atenção. - Uma loba não tem uma irmã de sangue humano. Pessoas como nós não geram humanos, não é mesmo?

Ela viu o rosto da irmã ficar branco como cera, mas sem demonstrar nenhuma outra emoção.

— Claro - murmurou.

Georgiana voltou-se para trás. Reyne havia pego as rédeas dos cavalos e Severin tomou lugar ao seu lado.

— É uma viagem curta, mas a estrada não é boa- o rapaz disse às duas. - Segurem-se bem.



Depois de alguns minutos a carroça saiu da floresta escura, adentrando um caminho iluminado aqui e ali por várias tochas. Georgiana podia distinguir as habitações que margeavam a estrada - casas de pedra, de palha, de madeira e outros materiais, construídas nos mais diferentes formatos, mas quase todas do mesmo tamanho. Das portas começavam a afluir os habitantes do vilarejo, que seguiam a carroça agitados. Ela viu rapazes, mocinhas e crianças, diversos tons de pele, cabelos esvoaçando em várias texturas e cores. Sem entender, Georgiana olhava ao redor mais e mais curiosa, tentando encontrar algo que ligasse aquelas peças desconexas à ideia de vilarejo que ela tinha conhecimento. 

A carroça estacionou diante de uma grande casa de pedra, de telhado de palha reforçada e vários lampiões iluminando a varanda. Reyne pulou apressado da condução, enquanto Severin dava a volta e ajudava as garotas a descerem. 

— Estão bem? - indagou, estendendo a mão a Georgiana.

A luz refulgia dourada em seus olhos claros. Ela assentiu num sorriso e segurou a mão que ele lhe estendia, morna e gentil.

Haviam conversado por um bocado de tempo até que Reyne chegasse em casa e River acordasse.  Ela não quis falar muito, por medo do que pudesse acabar revelando, e Severin encarou a quietude dela como simples cansaço. Então tomou a palavra e lhe contou sobre o que conhecia de Hiraeth - pouca coisa, já que não lhe era permitido como humano ficar ali por muito tempo. Contou-lhe de Crestfallen, lugar que ela ja tinha ouvido falar de outras andanças. Georgiana escutava com atenção no início, e aos poucos, com admiração. Algo no tom suave do rapaz a acalmava, sem contar que ele era mais bonito que havia notado de início. Então o homem chamado Reyne chegou na casa feito um trovão, largando armas pesadas pela sala e, ao vê-la na cozinha, enchendo-a de perguntas. Quem era ela. Quem era a garota. O que estavam fazendo naquela região.

As respostas, que o homem exigia naquele momento, tiveram que ser dadas por Georgiana com o máximo de segurança que ela conseguiu reunir. Disse como se chamava, quem ela era, o porquê de vagarem até tão próximo daquela floresta. Reyne não devia ser tão bruto quanto aparentava, ela pensou consigo. Não questionou mais nada e deixou-a em paz com Severin, mantendo apenas um olhar atento sobre os dois. 

Agora ele se encontrava diante da varanda da grande casa de pedra. Havia tirado o chapéu para uma figura encurvada, apoiada num cajado, acompanhada por outras duas.

— Estão entregues- disse ele. - Devo voltar à minha cabana e ao meu serviço agora.

— Sabemos muito bem que você não vai voltar à sua cabana, muito menos ao seu serviço - Uma das pessoas na varanda replicou numa voz áspera e rouca. - Você também faz parte desse conselho. Cumpra com sua obrigação e ande já para dentro.

Reyne apenas baixou a cabeça, para a surpresa de Georgiana. Não imaginou que ele fosse o tipo de homem que faria aquilo para alguém. Em seguida ele subiu as escadas e entrou na casa, permitindo que as garotas vissem os anfitriões.

A figura encurvada era uma velhinha de pele cor de mel, o cabelo longo partido em duas tranças cinzentas. Olhava para as duas garotas com bastante interesse. Ao seu lado havia um homem forte, negro como a noite, olhos pequenos e puxados. Georgiana não soube dizer a idade dele, ou a do outro homem, de pele e cabelos brancos, sem uma única ruga no rosto, embora bem mais franzino que o companheiro. Assim como a velhinha, ambos observavam as irmãs, mas Georgiana podia sentir certa hostilidade vinda deles.

— Você pode entrar - o homem negro apontou com o queixo para Severin, que estava ao lado de Georgiana. - Desde que guarde para si tudo o que ouvir.

Aye... Sim, senhor - Severin balançou a cabeça.

Também era a primeira vez que a moça o via realmente inseguro.

— Quanto às duas, estávamos esperando vocês - disse o homem. - Esse é o Conselho de Hiraeth, reunido para que decidam qual será o destino de vocês. Entrem na casa e vamos conversar um pouco.

Aquela voz áspera não conseguiria soar agradável nem se quisesse. Georgiana subiu as escadas de pedra, enquanto as outras pessoas cercavam a casa e observavam as duas, dezenas de sussurros e cochichos enchendo a sua cabeça. Ela apertou os olhos, segurou a mão de River, que a olhava apreensiva, e lhe deu um sorriso ligeiro.

— Vamos ter fé, Reev - murmurou. - Eles devem ser boas pessoas.

Ela torceu os lábios finos, descrente. Georgiana suspirou fundo e passou pela porta, ouvindo os homens entrarem atrás delas e fechá-la. 

Eles tinham que ser boas pessoas.


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Notas finais do capítulo

Acho que não deu pra perceber, mas há quatro pontos de vista específicos na narrativa além do narrador onisciente: o das irmãs, de Reyne e Severin. Nesse capítulo a primeira parte foi narrada do ponto de vista de River, e a segunda parte, de Georgiana. O cap. passado foi do pdv de Severin, e o anterior a ele, de Reyne. Espero que não fique muito confuso ^^
A você que leu, meu muito obrigada! Caso possa deixar uma review com opinião, dúvida, sugestão ou o que lhe der vontade, a caixa de comments é toda sua! Beijas e té maisinho :***



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