Vida, vida, vida escrita por Eduardo Marais


Capítulo 4
Mais CONFIANÇA




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Sentados num banco de um parque, Regina e Martino continuam sua conversa sobre a vida ou sobre assuntos mais suaves e sem importância.

— Você se casou depois que se recuperou? – Regina come mais uma colherada do sorvete de massa. – Tem namorada? Amante?

— Estou celibatário há quatro anos.

— Quatro anos sem sexo?

Martino confirma com um movimento de cabeça.

— Descobri que quando temos sexo com alguém, nossa alma transmite algo para essa pessoa. E recebemos algo da alma dela. Então, não devemos ter sexo com várias pessoas por simples prazer, porque não é saudável fazer e receber esse “algo”. É como se você se tornasse carne e sangue de muitas pessoas.

— Mas você tem desejos? – Regina olha-o rapidamente e volta seus olhos para as pessoas que transitavam por ali.

— Tenho. Mas por enquanto eu os sublimo, até que meu próximo relacionamento seja feito conforme as novas leis que regem a minha vida.

Os olhos escuros de Regina se fixam no belo rosto de Martino e gosta do que vê ali. Não poderia explicar a quem lhe perguntasse, o verdadeiro sentido do emaranhado de emoções que preenchia sua alma. Tudo o que conseguiria dizer é que sentia confiança naquele homem.

— Martino, gostaria que você me acompanhasse no dia de minha cirurgia. Preciso que esteja ao meu lado neste dia, porque preciso dessa paz que você me transmite. Por favor, atenda a um pedido de uma desconhecida, eu lhe imploro porque...

— Tudo bem.

— Como disse?

— Tudo bem. Eu ficarei ao seu lado durante sua cirurgia, porém penso que este papel caberia a alguém de sua família ou ao seu namorado. – ela se movimenta no banco. – Ele sabe de sua condição?

Um movimento negativo de cabeça é a resposta.

— Não disse nem ao seu filho?

— Não tive coragem. Henry não saberia lidar com minha morte iminente.

— Nossa, que trágico! – Martino fala desdenhoso, se levanta e estende a mão, oferecendo amparo para Regina. – Vamos caminhar pelo parque?

Momentos depois, Regina e Martino caminham tranquilamente pelas ruas do parque e demonstram não se preocupar com compromissos ou horários. Tudo estava resumido aquele passeio. Um bonito casal caminhando para espairecer.

— No hospital, você encontrou conforto em que ou em quem? Seus pais?

— Meus pais não souberam lidar com a minha doença e ficaram afastados. Das pessoas que se diziam meus amigos, apenas dois se mantiveram firmes ao meu lado. – ele se mantém sereno, com sua mão sobre a mão de Regina, que segurava seu braço. – Fiquei dois meses internado e convivi com diversas pessoas que me ajudaram a aceitar o quanto eu precisava retomar a retidão em meus dias. Foi nesse período que pude conhecer o meu Deus.

Parando e obrigando Martino a parar também, Regina o olha com profundidade.

— Meu passado ficou para trás, assim com a culpa pelos erros. Hoje não me preocupa mais viver como transgressor, porque não me satisfaz mais. Encaro essa fase de minha vida, como uma preparação para meu novo nascimento.

— Por isso me disse que Deus o conhece?

— Eu me apresentei a ELE. Nunca havia conversado com ELE, até que uma enfermeira me disse que eu era o resultado de um milagre. Ela me perguntou se eu já havia agradecido pela segunda chance e eu não sabia a quem agradecer além dos médicos.

— Você conversou com Deus? Como se conversa com Deus?

— Da mesma forma com que estou conversando com você, porém, com servidão, porque ELE conhece o seu coração. Eu me reconheço como servo DELE e amor ser assim. Mesmo em civilizações mais primitivas, as pessoas sempre se colocam como servidores de algum deus: um animal, uma pedra, um fenômeno da natureza. É uma necessidade básica do ser humano, o fator de exaltar algum ser, como criador de tudo o que vemos.

Regina desfaz o sorriso e leva a mão ao abdômen. Torna-se ofegante e olha suplicante para Martino. Abre os lábios, porém não consegue falar ou pedir ajuda.

Quando Regina desperta, sente-se zonza e sonolenta. Observa que há um objeto plástico fincado na veia de sua mão e que recebia soro por uma cânula acoplada ao objeto. Olha em volta e vê Martino sentado, lendo uma revista de maneira displicente.

— Poderia me dar água? – ela sorri ao vê-lo levantar-se e atender ao seu pedido. – Desmaiei?

— Não. Você sentiu dores fortes e eu a trouxe para este hospital. Tomei a liberdade de abrir sua carteira e encontrei o cartão de seu convênio médico. Seu médico conversou por telefone com a médica que a atendeu. Eu falei com ele também e foi decidido que você será operada hoje mesmo.

— Você decidiu isso por mim? – ela tenta sorrir, mas para. O quarto estava rodando.

Martino coloca o copo de volta e cima de uma mesa. Aproxima-se da cama.

— Foi o seu médico e eu concordei. Não há motivos para carregar algo ruim dentro de você, apenas para perpetuar seu sofrimento.

— Você ficará comigo...

— Serei seu companheiro até que saia andando daqui. – Martino segura a mão de Regina, carinhosamente. – Penso que você deveria avisar seus familiares...

— Eu lhe imploro que não faça isso...eles devem ficar fora. Depois conversarei com eles.

— Você está fora de sua cidade e vai sofrer uma cirurgia. Precisa avisá-los sobre seu paradeiro.

Regina pisca várias vezes e acaba por fechar os olhos. A sonolência era muita.

— Respeite a minha vontade, por favor.

— Não tenho porque desrespeitar, Regina.

Naquela mesma noite, Regina é preparada para a cirurgia de emergência. Quando ela é levada para a sala, encontra Martino no meio do caminho e estende a mão para tocá-lo mais uma vez. Recebe um beijo no dorso da mão e o vê sair de seu campo de visão.

Ao abrir seus olhos, Regina vê um teto branco e luzes tão lindas, que não consegue desviar sua atenção delas. Não eram luzes comuns e oscilavam entre a cor prata e a dourada. Pareciam dançar diante de seus olhos. Ela estende a mão tentando tocá-las.

Flutuando, trajando vestes brancas, um anjo se aproxima de sua cama. Não tinha rosto nítido, mas os cabelos escuros podiam ser vistos com a aura produzida pelas lindas luzes. Ele lhe toca a testa e um movimento em seu rosto, é identificado com um sorriso.

— Como se sente, Regina?

— Você sabe meu nome?

— Sim. – o anjo estende a mão e toca o rosto dela. – Você foi forte e tudo foi um sucesso para nosso trabalho. Parabéns!

— Onde está Martino? Ele precisa saber disso...- ela começa a rir, tamanha a felicidade que invade a sua alma. Estava falando com um anjo. – Você pode me dizer como é o rosto de Deus?

O anjo emite uma risada.

— Nada sei sobre o rosto de Deus. Mas deve ser sem forma definida. Quando eu era criança, minha mãe me dizia que Deus era barbudo e tinha sobrancelhas grossas.

Mãe? Criança? Mas anjos nascem, crescem e morrem como os humanos? Ela começa a ficar confusa e imediatamente uma forte sensação de medo domina seu coração. Queria Martino! Por que ele não estava ali?

— Onde está Martino? Eu o quero comigo! – Regina se altera e esconde o rosto com as mãos.

Mais tarde, mais tranquila e sem os efeitos dos sedativos, ela observa a enfermeira entrar no quarto trazendo uma bandeja com o seu jantar. Atrás dela, Martino vinha sorridente, usando avental e máscara.

— Martino, por que demorou? Eu queria lhe dizer que um anjo esteve aqui em meu quarto! Veio vestido de branco e conversou comigo!

— De fato, um anjo esteve mesmo dentro da sala de cirurgia, guiando as mãos dos médicos. E certamente ainda deve estar neste quarto, mas você estava conversando com o seu médico.

A enfermeira não contém o riso e Regina fica sem entender.

— Vou ajudar você a se alimentar. – Martino assume a tarefa dali para frente e depara-se com uma paciente faminta.

As horas se passam e as luzes são apagadas. Regina deveria dormir e usar seu sono como mais um fator para sua recuperação. Sentando na poltrona do acompanhante, Martino envolve-se por um cobertor e adormece.

Regina demora a adormecer, atenta a todos os sons noturnos e à luz que vinha de fora e passava pelas frestas das cortinas do quarto. De repente uma sensação de leveza começa a invadir o seu corpo e a dominar os seus músculos. Era como se a cama estivesse ficando cada vez mais macia e aconchegante. Sente-se ser embalada sobre a cama, como se ela estivesse transformando-se em uma concha acolchoada. Quente, grande e protetora, a cama havia se transformado em um bojo formado por duas imensas mãos, que embalavam seu corpo e transmitiam tranquilidade e segurança. Mãos? Duas mãos?

Subitamente, uma onde de pânico domina seu espírito e Regina se debate sobre a cama. Grita.

— Está tudo bem, Regina. Estou aqui para você para que nenhum mal a atinja. – a voz era o som mais suave, grave e delicioso. Acalmava, serenizava e fazia sua alma transbordar de paz. – Eu estive ao seu lado na cirurgia e sempre estarei até que consiga andar com seus próprios pés.

Sem conter sua emoção, Regina chora até dormir. Mas não era um choro de dor e sofrimento. Ela desperta quando a enfermeira acende a luz do quarto. Era dia e a rotina precisava ser iniciada. É banhada, medicada, alimentada e depois recebe a visita da equipe médica. Conversam por algum tempo e é informada de que a cirurgia tinha sido um sucesso. Mais três dias, seria liberada do hospital. Seria uma rotina que deveria ser seguida a risca até a alta hospitalar.

— Bom dia, moça! – Martino chega ao quarto e cumprimenta a equipe médica que estava saindo. Ele se aproxima da cama e sorri de forma malina. – Sei que não deveria, mas contrabandeei uma pera bem madura para você.

Regina sorri lindamente e apanha a fruta embrulhada. Delicia-se com a maciez suculenta em seus lábios. Que gostoso comer algo proibido!

— Obrigado por ter ficado comigo durante a noite toda. Penso que delirei devido às medicações. Obrigado por me acalentar, quando chorei.

— Eu adormeci algumas horas e depois saí do quarto para comer algo. Passei boa parte do tempo lá na recepção, conversando com as enfermeiras. As plantonistas vieram diversas vezes aqui e você estava serena e adormecida.

— Eu delirei a ponto de sentir que a cama havia sofrido alguma modificação. Você me falou algo que me tranquilizou. Tenho certeza de que alguém ficou ao meu lado enquanto eu chorava. Não foi você? Deve ter sido alguma enfermeira.

— Talvez tenha sido um sonho, Regina.

— A cama se transformou em duas mãos imensas, formando uma concha e eu estava deitada lá dentro daquele espaço. Alguém me disse que...ah, deixe para lá!

Martino observa Regina terminar de comer a fruta e entregar alguns restos para que ele atirasse ao lixo. Percebe que ela queria falar sobre a sensação.

— O que esse alguém lhe disse?

— Disse-me que ficaria ao meu lado para que nenhum mal me acometesse e que sempre estaria ali. Aquela fala me encheu de paz e chorei como Henry chorava quando queria que eu ficasse ao lado do berço, velando seu sono. Talvez tenha sido algum enfermeiro.

— Já pensou na possibilidade de ter sido a voz de Deus? Ou um anjo enviado? Eu tenho orado para ELE em seu nome e creio que fui atendido. Você pode ter recebido um sopro da voz de Deus, serenizando sua aflição.

Regina emite alguns muxoxos e demonstra irritação. Move-se na cama e faz uma careta de dor.

— Poderia me dar minha bolsa? Preciso conversar com minha família e inventar alguma história que justifique minha ausência.

— Aqui está. – sereno, ele entrega a bolsa para ela. – Vou para casa e pretendo tomar um banho, dormir um pouco e resolver algumas vendas. Voltarei logo mais pelo final da tarde.

— Obrigada! – Regina se mostra irritadiça.


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