Trina escrita por Gustavo Francisco


Capítulo 12
Capítulo 12 - Destino, você quem faz




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— E então, minha cara? O quê você vai fazer?

— Aahh! Desculpe, estava distraída.

— Você não sabe o que fazer?

Damra respirou fundo. A mente estava trabalhava a toda velocidade.

— Não é isso. É que... - Ela enxugou uma lágrima no canto do olho - É difícil ver o futuro. Saber o que vai acontecer - Ela levantou a cabeça, como se quisesse que as lágrimas descessem de volta pelos canais lagrimais. - Como você consegue?

— Não é fácil, eu admito, mas eu convivo com isso desde pequena. Esse é o meu fardo. - Ela segurou as mãos de Damra.

— Você viu o que aconteceu?

— Não. A visão foi apenas sua.

"Ótimo" - pensou.

— Você está pronta?

Damra respirou fundo. As palavras não queriam sair.

— Não. Não estou.

— Talvez um chá te ajude. O que acha? Eu sou ótima para fazer chá de Camomila.

— Seria ótimo. - Damra deu um sorriso triste.

As duas levantaram e saíram da salinha. Dona Margarida encaminhou Damra até uma cadeira ao pé do senhor Ambrósio.

— Espere um pouquinho que eu já volto.

— Tudo bem.

Dona Margarida entrou cantarolando.

Damra secou mais uma vez as lágrimas e olhou para a bolsa que estava pendurada no seu ombro. Observou o corredor. Nada. Abriu a bolsa e remexeu lá dentro, puxando os frascos para fora e analisando um por um, lendo os rótulos. Ela parou em um específico. Ele era bem translúcido de cor azul clara.

Seus olhos brilharam.

— Prontinho minha cara.

Damra guardou os frascos bem a tempo. Dona Margarida cruzou a soleira e apareceu carregando uma bandeja colorida com um lindo conjunto de chá em cima.

— Obrigado.

A senhora serviu a bebida. Damra pegou sua xícara, levou a boca, soprou e tomou um gole, apoiando na mesa em sequência. Cada um de seus atos parecia interminável, como se o mundo fosse todo calculado e passasse diante dos seus olhos em câmera lenta.

— Difícil, não?

— Oi?

— Começar aquilo que achamos que não podemos evitar - Damra pareceu confusa - Não se esqueça do que eu falei, minha querida. As visões são subjetivas. São baseadas em suas ações - Damra concordou com a cabeça - É mais difícil de aceitar isso depois que se tem o primeiro contato com o futuro.

— Vou ten... - Ela forçou a garganta - vou tentar me esforçar mais.

Margarida sorriu.

— Não se preocupe. No final, tudo dá certo. É só crer.

Damra pegou a xícara, tomando outro gole.

— Será que tem mais açúcar? Eu costumo tomar o meu chá bem doce.

— Aproveita e pega a minha bebida, Margarida - Disse senhor Ambrósio - Pega minha margarita, Margarida. - ele desatou a rir.

— Suas folhas vão cair, de tanto que você bebe.

— Aaaahhhh! Elas estão bem firmes, olha aqui. - Ele sacudiu a copa - viu só.

Damra sorriu, enquanto dona Margarida fez sinal com a mão, como se não ligasse, partindo porta a dentro mais uma vez.

Sem perder tempo, Damra pegou o frasco da bolsa, despejando um pouco dentro da xícara da outra mulher.

— O que você esta fazendo, minha querida? - Perguntou Ambrósio.

Ela o olhou em um impulso de nervosismo, quase como se tivesse esquecido de que ele estava ali.

— Me desculpe.

Antes que a árvore pudesse concluir o que estava prestes a dizer, Damra levantou a mão em sua direção, petrificando todas as fibras de sua madeira, dando-lhe oportunidade de despejar um tanto do líquido azul em sua boca arbórea.

— Espero que o chá não tenha esfriado.

— Não! Digo, de modo algum - Damra gritou de volta, fazendo com que o rosto da árvore sumisse com um gesto de mão - Ainda está quentinho - Ela se sentou.

— Que ótimo! - Dona Margarida reapareceu trazendo uma bandeja - Cadê ele?

— Disse que ia voltar a vigiar lá fora. Antes que eles chegassem.

— Ham. É uma árvore louca - murmurou.

Damra colocou o açúcar na xícara e mexeu freneticamente, esperando que dona Margarida terminasse seu chá.

— Aaahh - Dona Margarida apoiou a xícara no pires - estava uma delícia, não estava?

— Sim. Fantástico - Damra a copiou, apoiando a xícara vazia - mas infelizmente eu devo ir agora.

— Claro, minha querida. Vamos lá - ela se levantou - eu te levo até a porta.

— Que a Deusa mãe a proteja - Ela disse desenhando um círculo invisível na testa da garota - E que Fauna e Flora te ajudem nessa jornada - Segurando seus ombros, a senhora sorriu afetuosamente e despediu-se à porta da loja.

 

Damra começou a descer a rua apressada, tentando se afastar o mais rápido possível do local, até perceber que a descida a levaria de volta a antiga casa da amiga. Virou na primeira rua à esquerda, desviando a rota e seguindo por ruas estreitas até chegar à avenida, entrando no primeiro ônibus que passou.

...

Eles estavam seguindo o rastro de Mana.

— Alí - indicou um dos soldados - Parece que a trilha termina naquela região, onde a mana parece dispersar mais lentamente.

— Huuumm. Creio que ela tenha ficado ali um bom tempo – ele respondeu.

— Ali, onde? - O soldado tirou os óculos - Eu não vejo nada.

O líder atravessou a rua, e parou no meio do círculo amarelo pintado no chão. Ele retirou do cinto um spray e espirrou no ar. Gotículas brancas caíram lentamente em direção ao chão. Repetiu o processo e dessa vez ele observou atentamente quando as gotículas estavam próximas do asfalto. Elas desciam, desciam, mas antes de encostarem no chão elas sumiam. Ele ficou de cócoras, esticou o braço acima da cabeça e liberou o spray novamente.

— Achei uma coisa. Tem algo escondido aqui - Ele se levantou e andou até a calçada.

Quando pisou fora do círculo, ele quase caiu no chão.

— Senhor! - um dos soldados foi ampará-lo.

O líder fez um gesto com a mão para que não se aproximassem. Ele sentia que suas forças haviam sido drenadas para fora de seu corpo, a ponto de não conseguir manter a rigidez das pernas.

— Peguem a máquina. Precisamos ver o que é.

Dois dos soldados prontamente pegaram uma das mochilas e retiraram de dentro dela um pequeno aparelho. Carregaram até a proximidade da rotatória e o apoiaram no chão. Apertaram um botão na parte superior do aparelho e hastes de ferro se desdobraram, bruscamente, em direção ao chão, formando o apoio.

Manualmente eles desdobraram outras duas hastes, bem mais comprimas que as primeiras e que apontavam para o céu, formando um "U". Ligaram uns fios em uma bateria grande ao lado, acionaram o teclado da máquina e começaram a digitar. A parte quadrada do aparelho levantou um pouco do chão, apoiada nos pés de aço, e girou 360 graus, então a máquina começou a emitir um ruído elétrico e uma corrente de ar começou a atravessar bruscamente o espaço "U", sentido a rotatória.

— Vamos homens - Disse o líder - Vocês dois ficam aqui para manter a máquina operante.

Todos os outros soldados seguiram o líder em direção a rótula e, um por um, atravessaram a faixa amarela.

Lá dentro eles agora podiam ver a loja de paisagismo e todo o jardim. Rapidamente eles andaram até a porta e a arrombaram. Quando adentraram o espaço viram uma senhora caaída no chão com um conjunto de chá despedaçado.

— Revistem tudo.

Os soldados se espalharam.

O líder se aproximou da mulher no chão e checou sua pulsação. Ainda estava viva.

— Senhor, não tem ninguém, mas encontramos uma coisa.

Ele levou o líder até a sala com a bola de cristal.

— Velha feiticeira! - Ele disse com desdém.

— Nada, senhor.

— Rápido! - Gritou um dos homens que operava a máquina lá fora - Não vai aguentar por muito tempo.

O líder olhou em volta. Parecia não haver mais nada para fazer ali.

— Ateiem fogo. Se tivermos sorte ela está escondida aqui e vai morrer queimada.

— Enquanto a essa mulher? - perguntou o outro novato.

— Deixem que queime também.

Em segundos, eles ja haviam jogado material inflamável por todo o lugar e riscado um fósforo antes de sair e fechar a porta atrás de si.

Pouco tempo depois, a fumaça e as chamas já dominavam tudo, mas quando a máquina foi desligada, nenhum sinal do que ocorria ali era perceptível.

Uma vã estava descendo a rua e freio, bruscamente, ao ver aqueles homens no meio do caminho, invadindo a pista contrária.

O motorista desceu do veículo bravo, disposto a brigar, mas com um único sinal de mão do líder, um dos soldados se aproximou do homem utilizando uma arma de choque. Ele caiu desfalecido. 

— Vamos. Podemos utilizar esse veículo. Continuem monitorando o rastro de mana.

Não demorou muito para que seguissem em frente, deixando apenas o homem caído para trás.

...

Damra conseguiu descer do ônibus e entrar no parque do Ibirapuera.

Andando meio desnorteada e sem saber para onde ir, ela passa por uns brinquedos infantis e vê um casal de crianças brincando na gangorra.

"Não eram duas meninas? Devo estar ficando louca"

Ela continuou seguindo até chegar a grande via de pedestres e bicicletas.

"Para onde eu devo ir?"

Ela avistou a distância uma mesinha de concreto perto de umas árvores e andou até lá, sentando-se para esperar o inevitável.

Perdida em seus pensamentos e na tristeza de suas perdas, ela não viu as horas passarem. E só quando sua mente voltou para a realidade percebeu que um cachorro de rua tentava chamar sua atenção.

— Vem cá, vem - Ela esticou o braço na direção dele, estralando os dedos repetidas vezes - Não tenha medo.

Aos poucos e cautelosamente, o cachorro começou a se aproximar de cabeça baixa, olhando para ela de canto de olho e com o rabo entre as pernas.

— Isso. Não tenha medo. Bom garoto.

Ele chegou perto o suficiente para que ela encostasse nele. Com o carinho na cabeça, ele se rendeu e se aproximou mais, deixando que aquele gesto tão raro em sua vida continuasse.

— Tadinho. Aposto que você foi maltratado, não foi? Tó. - Ela deu alguns de seus biscoitos para ele - pode comer. Eu não vou precisar mesmo - Ela fez carinho no pescoço dele.

Enquanto o cachorro comia, Damra observava o fluxo de pessoas. Mais um pouco e ela teria esquecido o triste fim que a aguardava, se não fosse pelo grupo de homens que andava em sua direção.

Ela os reconheceu da visão.

No desespero, ela pulou do banco de concreto, tentou agarrar as suas coisas e sair correndo, o que acabou por anunciar a sua posição.

Já estava escuro, e era difícil de enxergar nos lugares mal iluminados do parque. Ela se embrenhou entre as árvores, esperando não ser encontrada, mas eles estavam perto demais.

Ela correu depressa, tentando afastar o medo.

"Tudo de novo, não" - pensou.

Desviou de uma árvore, tropeçou, mas não caiu. Via lanternas se aproximando. Correndo o máximo que podia, sentia que estava ganhando distância. Ainda correndo olhou para frente, pouco antes de bater em algo e cair no chão. Uma luz se acendeu. Era um dos caçadores.

Ela levantou e tentou correr, mas logo estava cercada por eles. Era seu fim. Tentou correr mais uma vez, mas a agarraram pelos braços.

— Não tem mais para onde fugir - Ouviu-se risadas.

— Peguem a corda!

Enquanto dois deles a seguravam, outro jogou a corda por cima de um galho grande e roliço.

— Não. Por favor. - Ela começou a chorar.

Mais risadas.

— Não? Porque não? Vocês são uma abominação da natureza - Disse o líder - Não deveriam existir. Foram um erro. Só Deus tem o direito de dobrar a natureza a sua vontade - Os outros riam e xingavam.

— Demônio! Vaca! Bruxa! - gritavam todos - Vai queimar no inferno!

Ela olhou ao redor, procurando ajuda, mas estavam sozinhos no escuro, iluminado apenas pelas lanternas e a lua.

Ela secou as lágrimas.

— E por isso que vocês vão me matar? Em nome do seu Deus?

— Sim. Essa é a vontade dele. Eliminar do mundo seres como você.

De repente uma profunda calmaria invadiu o coração de Damra. Não pensava mais em fugir. Não se incomodava mais com os homens a sua volta, nem com o que diziam.

— A muito tempo atrás – ela começou a dizer – duas crianças brincavam nesse mesmo parque em que estamos – o sorriso sumiu da boca deles, sem entender do que ela estava falando – o menino jogou areia no olho da menina, porque ela pegou seu brinquedo emprestado. Ele achava que mais ninguém além dele, deveria brincar com aquele carrinho.

— O que está dizendo?

— Quando ele foi falar com o pai, reclamando que ela tinha pego o que era dele, achou que o pai lhe daria razão, mas não deu.

— Onde você quer chegar?

— Você se acha melhor, não é? Acha que o mundo é só seu brinquedo – Ela limpou a boca com as costas da mão - Eu tenho pena de vocês! O Deus que vocês acreditam não vai recebê-los de braços abertos nos portões do céu. É o inferno o lugar de assassinos como vocês!

O líder se irritou e deu um tabefe na cara dela.

Ela riu.

— Eu estava com medo desse momento. Eu vi vocês chegando. Já sabia o que aconteceria. Mas agora que esse momento chegou – sua risada ecoou no ar - vocês são uns borra botas! Dez homens contra uma mulher. E ainda se acham dignos de alguma coisa.

Depois de ser fulminada pelo olhar de todos. Aquele mesmo homem da Vila apareceu segurando o laço mais feio de todos, colocando em seu pescoço.

— Pronta para encontrar a imunda da sua mãe? - ele disse.

O sorriso desapareceu do rosto dela.

— Sim – respondeu com o olhar ferino – mais uma coisa - ela disse, chamando sua atenção antes de cuspir na sua cara.

O homem limpou o rosto com ódio exalando de seus poros e então se afastou, jogando a ponta da corda em um galho próximo.

Todos a encaravam. Todos riam dela, de sua morte. E tudo que ela fez foi sorrir de volta. Fechou os olhos e disse.

— Perdão, Deus. Eles não sabem o que fazem.

Então a corda apertou seu pescoço erguendo seu corpo no ar.

Um, dois, três, quatro... quanto tempo demora até o fim? Ela tentou não se debater, mas era impossível conter o impulso de buscar ar. Trinta e oito, trina e nove, quarenta. Os músculos estavam relaxando. Cinquenta e dois. Um brilho. Um grito. Vazio. Não há dor no vazio. Não há guerra no vazio. Só a paz.

 


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