Trina escrita por Gustavo Francisco
— E então, minha cara? O quê você vai fazer?
— Aahh! Desculpe, estava distraída.
— Você não sabe o que fazer?
Damra respirou fundo. A mente estava trabalhava a toda velocidade.
— Não é isso. É que... - Ela enxugou uma lágrima no canto do olho - É difícil ver o futuro. Saber o que vai acontecer - Ela levantou a cabeça, como se quisesse que as lágrimas descessem de volta pelos canais lagrimais. - Como você consegue?
— Não é fácil, eu admito, mas eu convivo com isso desde pequena. Esse é o meu fardo. - Ela segurou as mãos de Damra.
— Você viu o que aconteceu?
— Não. A visão foi apenas sua.
"Ótimo" - pensou.
— Você está pronta?
Damra respirou fundo. As palavras não queriam sair.
— Não. Não estou.
— Talvez um chá te ajude. O que acha? Eu sou ótima para fazer chá de Camomila.
— Seria ótimo. - Damra deu um sorriso triste.
As duas levantaram e saíram da salinha. Dona Margarida encaminhou Damra até uma cadeira ao pé do senhor Ambrósio.
— Espere um pouquinho que eu já volto.
— Tudo bem.
Dona Margarida entrou cantarolando.
Damra secou mais uma vez as lágrimas e olhou para a bolsa que estava pendurada no seu ombro. Observou o corredor. Nada. Abriu a bolsa e remexeu lá dentro, puxando os frascos para fora e analisando um por um, lendo os rótulos. Ela parou em um específico. Ele era bem translúcido de cor azul clara.
Seus olhos brilharam.
— Prontinho minha cara.
Damra guardou os frascos bem a tempo. Dona Margarida cruzou a soleira e apareceu carregando uma bandeja colorida com um lindo conjunto de chá em cima.
— Obrigado.
A senhora serviu a bebida. Damra pegou sua xícara, levou a boca, soprou e tomou um gole, apoiando na mesa em sequência. Cada um de seus atos parecia interminável, como se o mundo fosse todo calculado e passasse diante dos seus olhos em câmera lenta.
— Difícil, não?
— Oi?
— Começar aquilo que achamos que não podemos evitar - Damra pareceu confusa - Não se esqueça do que eu falei, minha querida. As visões são subjetivas. São baseadas em suas ações - Damra concordou com a cabeça - É mais difícil de aceitar isso depois que se tem o primeiro contato com o futuro.
— Vou ten... - Ela forçou a garganta - vou tentar me esforçar mais.
Margarida sorriu.
— Não se preocupe. No final, tudo dá certo. É só crer.
Damra pegou a xícara, tomando outro gole.
— Será que tem mais açúcar? Eu costumo tomar o meu chá bem doce.
— Aproveita e pega a minha bebida, Margarida - Disse senhor Ambrósio - Pega minha margarita, Margarida. - ele desatou a rir.
— Suas folhas vão cair, de tanto que você bebe.
— Aaaahhhh! Elas estão bem firmes, olha aqui. - Ele sacudiu a copa - viu só.
Damra sorriu, enquanto dona Margarida fez sinal com a mão, como se não ligasse, partindo porta a dentro mais uma vez.
Sem perder tempo, Damra pegou o frasco da bolsa, despejando um pouco dentro da xícara da outra mulher.
— O que você esta fazendo, minha querida? - Perguntou Ambrósio.
Ela o olhou em um impulso de nervosismo, quase como se tivesse esquecido de que ele estava ali.
— Me desculpe.
Antes que a árvore pudesse concluir o que estava prestes a dizer, Damra levantou a mão em sua direção, petrificando todas as fibras de sua madeira, dando-lhe oportunidade de despejar um tanto do líquido azul em sua boca arbórea.
— Espero que o chá não tenha esfriado.
— Não! Digo, de modo algum - Damra gritou de volta, fazendo com que o rosto da árvore sumisse com um gesto de mão - Ainda está quentinho - Ela se sentou.
— Que ótimo! - Dona Margarida reapareceu trazendo uma bandeja - Cadê ele?
— Disse que ia voltar a vigiar lá fora. Antes que eles chegassem.
— Ham. É uma árvore louca - murmurou.
Damra colocou o açúcar na xícara e mexeu freneticamente, esperando que dona Margarida terminasse seu chá.
— Aaahh - Dona Margarida apoiou a xícara no pires - estava uma delícia, não estava?
— Sim. Fantástico - Damra a copiou, apoiando a xícara vazia - mas infelizmente eu devo ir agora.
— Claro, minha querida. Vamos lá - ela se levantou - eu te levo até a porta.
— Que a Deusa mãe a proteja - Ela disse desenhando um círculo invisível na testa da garota - E que Fauna e Flora te ajudem nessa jornada - Segurando seus ombros, a senhora sorriu afetuosamente e despediu-se à porta da loja.
Damra começou a descer a rua apressada, tentando se afastar o mais rápido possível do local, até perceber que a descida a levaria de volta a antiga casa da amiga. Virou na primeira rua à esquerda, desviando a rota e seguindo por ruas estreitas até chegar à avenida, entrando no primeiro ônibus que passou.
...
Eles estavam seguindo o rastro de Mana.
— Alí - indicou um dos soldados - Parece que a trilha termina naquela região, onde a mana parece dispersar mais lentamente.
— Huuumm. Creio que ela tenha ficado ali um bom tempo – ele respondeu.
— Ali, onde? - O soldado tirou os óculos - Eu não vejo nada.
O líder atravessou a rua, e parou no meio do círculo amarelo pintado no chão. Ele retirou do cinto um spray e espirrou no ar. Gotículas brancas caíram lentamente em direção ao chão. Repetiu o processo e dessa vez ele observou atentamente quando as gotículas estavam próximas do asfalto. Elas desciam, desciam, mas antes de encostarem no chão elas sumiam. Ele ficou de cócoras, esticou o braço acima da cabeça e liberou o spray novamente.
— Achei uma coisa. Tem algo escondido aqui - Ele se levantou e andou até a calçada.
Quando pisou fora do círculo, ele quase caiu no chão.
— Senhor! - um dos soldados foi ampará-lo.
O líder fez um gesto com a mão para que não se aproximassem. Ele sentia que suas forças haviam sido drenadas para fora de seu corpo, a ponto de não conseguir manter a rigidez das pernas.
— Peguem a máquina. Precisamos ver o que é.
Dois dos soldados prontamente pegaram uma das mochilas e retiraram de dentro dela um pequeno aparelho. Carregaram até a proximidade da rotatória e o apoiaram no chão. Apertaram um botão na parte superior do aparelho e hastes de ferro se desdobraram, bruscamente, em direção ao chão, formando o apoio.
Manualmente eles desdobraram outras duas hastes, bem mais comprimas que as primeiras e que apontavam para o céu, formando um "U". Ligaram uns fios em uma bateria grande ao lado, acionaram o teclado da máquina e começaram a digitar. A parte quadrada do aparelho levantou um pouco do chão, apoiada nos pés de aço, e girou 360 graus, então a máquina começou a emitir um ruído elétrico e uma corrente de ar começou a atravessar bruscamente o espaço "U", sentido a rotatória.
— Vamos homens - Disse o líder - Vocês dois ficam aqui para manter a máquina operante.
Todos os outros soldados seguiram o líder em direção a rótula e, um por um, atravessaram a faixa amarela.
Lá dentro eles agora podiam ver a loja de paisagismo e todo o jardim. Rapidamente eles andaram até a porta e a arrombaram. Quando adentraram o espaço viram uma senhora caaída no chão com um conjunto de chá despedaçado.
— Revistem tudo.
Os soldados se espalharam.
O líder se aproximou da mulher no chão e checou sua pulsação. Ainda estava viva.
— Senhor, não tem ninguém, mas encontramos uma coisa.
Ele levou o líder até a sala com a bola de cristal.
— Velha feiticeira! - Ele disse com desdém.
— Nada, senhor.
— Rápido! - Gritou um dos homens que operava a máquina lá fora - Não vai aguentar por muito tempo.
O líder olhou em volta. Parecia não haver mais nada para fazer ali.
— Ateiem fogo. Se tivermos sorte ela está escondida aqui e vai morrer queimada.
— Enquanto a essa mulher? - perguntou o outro novato.
— Deixem que queime também.
Em segundos, eles ja haviam jogado material inflamável por todo o lugar e riscado um fósforo antes de sair e fechar a porta atrás de si.
Pouco tempo depois, a fumaça e as chamas já dominavam tudo, mas quando a máquina foi desligada, nenhum sinal do que ocorria ali era perceptível.
Uma vã estava descendo a rua e freio, bruscamente, ao ver aqueles homens no meio do caminho, invadindo a pista contrária.
O motorista desceu do veículo bravo, disposto a brigar, mas com um único sinal de mão do líder, um dos soldados se aproximou do homem utilizando uma arma de choque. Ele caiu desfalecido.
— Vamos. Podemos utilizar esse veículo. Continuem monitorando o rastro de mana.
Não demorou muito para que seguissem em frente, deixando apenas o homem caído para trás.
...
Damra conseguiu descer do ônibus e entrar no parque do Ibirapuera.
Andando meio desnorteada e sem saber para onde ir, ela passa por uns brinquedos infantis e vê um casal de crianças brincando na gangorra.
"Não eram duas meninas? Devo estar ficando louca"
Ela continuou seguindo até chegar a grande via de pedestres e bicicletas.
"Para onde eu devo ir?"
Ela avistou a distância uma mesinha de concreto perto de umas árvores e andou até lá, sentando-se para esperar o inevitável.
Perdida em seus pensamentos e na tristeza de suas perdas, ela não viu as horas passarem. E só quando sua mente voltou para a realidade percebeu que um cachorro de rua tentava chamar sua atenção.
— Vem cá, vem - Ela esticou o braço na direção dele, estralando os dedos repetidas vezes - Não tenha medo.
Aos poucos e cautelosamente, o cachorro começou a se aproximar de cabeça baixa, olhando para ela de canto de olho e com o rabo entre as pernas.
— Isso. Não tenha medo. Bom garoto.
Ele chegou perto o suficiente para que ela encostasse nele. Com o carinho na cabeça, ele se rendeu e se aproximou mais, deixando que aquele gesto tão raro em sua vida continuasse.
— Tadinho. Aposto que você foi maltratado, não foi? Tó. - Ela deu alguns de seus biscoitos para ele - pode comer. Eu não vou precisar mesmo - Ela fez carinho no pescoço dele.
Enquanto o cachorro comia, Damra observava o fluxo de pessoas. Mais um pouco e ela teria esquecido o triste fim que a aguardava, se não fosse pelo grupo de homens que andava em sua direção.
Ela os reconheceu da visão.
No desespero, ela pulou do banco de concreto, tentou agarrar as suas coisas e sair correndo, o que acabou por anunciar a sua posição.
Já estava escuro, e era difícil de enxergar nos lugares mal iluminados do parque. Ela se embrenhou entre as árvores, esperando não ser encontrada, mas eles estavam perto demais.
Ela correu depressa, tentando afastar o medo.
"Tudo de novo, não" - pensou.
Desviou de uma árvore, tropeçou, mas não caiu. Via lanternas se aproximando. Correndo o máximo que podia, sentia que estava ganhando distância. Ainda correndo olhou para frente, pouco antes de bater em algo e cair no chão. Uma luz se acendeu. Era um dos caçadores.
Ela levantou e tentou correr, mas logo estava cercada por eles. Era seu fim. Tentou correr mais uma vez, mas a agarraram pelos braços.
— Não tem mais para onde fugir - Ouviu-se risadas.
— Peguem a corda!
Enquanto dois deles a seguravam, outro jogou a corda por cima de um galho grande e roliço.
— Não. Por favor. - Ela começou a chorar.
Mais risadas.
— Não? Porque não? Vocês são uma abominação da natureza - Disse o líder - Não deveriam existir. Foram um erro. Só Deus tem o direito de dobrar a natureza a sua vontade - Os outros riam e xingavam.
— Demônio! Vaca! Bruxa! - gritavam todos - Vai queimar no inferno!
Ela olhou ao redor, procurando ajuda, mas estavam sozinhos no escuro, iluminado apenas pelas lanternas e a lua.
Ela secou as lágrimas.
— E por isso que vocês vão me matar? Em nome do seu Deus?
— Sim. Essa é a vontade dele. Eliminar do mundo seres como você.
De repente uma profunda calmaria invadiu o coração de Damra. Não pensava mais em fugir. Não se incomodava mais com os homens a sua volta, nem com o que diziam.
— A muito tempo atrás – ela começou a dizer – duas crianças brincavam nesse mesmo parque em que estamos – o sorriso sumiu da boca deles, sem entender do que ela estava falando – o menino jogou areia no olho da menina, porque ela pegou seu brinquedo emprestado. Ele achava que mais ninguém além dele, deveria brincar com aquele carrinho.
— O que está dizendo?
— Quando ele foi falar com o pai, reclamando que ela tinha pego o que era dele, achou que o pai lhe daria razão, mas não deu.
— Onde você quer chegar?
— Você se acha melhor, não é? Acha que o mundo é só seu brinquedo – Ela limpou a boca com as costas da mão - Eu tenho pena de vocês! O Deus que vocês acreditam não vai recebê-los de braços abertos nos portões do céu. É o inferno o lugar de assassinos como vocês!
O líder se irritou e deu um tabefe na cara dela.
Ela riu.
— Eu estava com medo desse momento. Eu vi vocês chegando. Já sabia o que aconteceria. Mas agora que esse momento chegou – sua risada ecoou no ar - vocês são uns borra botas! Dez homens contra uma mulher. E ainda se acham dignos de alguma coisa.
Depois de ser fulminada pelo olhar de todos. Aquele mesmo homem da Vila apareceu segurando o laço mais feio de todos, colocando em seu pescoço.
— Pronta para encontrar a imunda da sua mãe? - ele disse.
O sorriso desapareceu do rosto dela.
— Sim – respondeu com o olhar ferino – mais uma coisa - ela disse, chamando sua atenção antes de cuspir na sua cara.
O homem limpou o rosto com ódio exalando de seus poros e então se afastou, jogando a ponta da corda em um galho próximo.
Todos a encaravam. Todos riam dela, de sua morte. E tudo que ela fez foi sorrir de volta. Fechou os olhos e disse.
— Perdão, Deus. Eles não sabem o que fazem.
Então a corda apertou seu pescoço erguendo seu corpo no ar.
Um, dois, três, quatro... quanto tempo demora até o fim? Ela tentou não se debater, mas era impossível conter o impulso de buscar ar. Trinta e oito, trina e nove, quarenta. Os músculos estavam relaxando. Cinquenta e dois. Um brilho. Um grito. Vazio. Não há dor no vazio. Não há guerra no vazio. Só a paz.
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