Quando Heath chorou escrita por ornitorrinca


Capítulo 1
Liz




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Heath sabe que chorou em dois momentos da vida.
 O primeiro foi em seu nascimento. Ele não se lembra, mas supõe que deva ter ocorrido dessa forma. 
 O segundo foi em meio às luzes da cidade.

Heath e Isaac foram os primogênitos. Bem, tecnicamente só Heath, visto que nasceu sete minutos antes. Ele brinca com isso até hoje, dizendo que Isaac provavelmente ainda estava inseguro sobre sair da zona de conforto. 
 Cabelos negros, peles morenas e olhos cheios de vida.
 Quatro anos depois, veio Lisbeth. 
 Os cabelos negros estavam lá, mas sua palidez era um pouco fora do comum.

Com dez anos de idade, tinha lido mais livros do que Heath e Isaac juntos. Heath tinha um talento natural, mas não era muito estudioso. Isaac não era nenhum obtuso, mas tinha vida social, ao contrário dos outros dois, e sabemos que, às vezes, é difícil equilibrar algumas coisas na vida. 
 Hoje em dia, quando eles remontam o passado em suas mentes, a imagem dos três irmãos sentados à sombra da árvore mais frondosa da propriedade Sparks está sempre lá.
 Lisbeth está inclinada sobre o livro aberto em seu colo: é um de Jane Austen, que viria a ser sua eterna favorita. Isaac, encostado no tronco, está lendo também, mas não tem tempo para ficções: o jornal do dia esconde seu rosto dos irmãos. E Heath, estatelado de bruços no gramado, está criando, uma longa folha estendida à sua frente sobre um apoio de madeira e o lápis se movendo freneticamente. 
 — O que você está fazendo dessa vez? — pergunta Lisbeth, que sempre fica curiosa em relação ao comportamento de Heath. É mais ou menos como assistir ao National Geographic.
 — Uma aeronave. — responde ele, distraído.
 — E que outra coisa ele faz, além de aeronaves? — indaga Isaac, a voz arrastada, sem tirar os olhos do jornal. — Ah, lembrei. Aeroplanos.
 — Cale-se, almofadinha. Eu teria outra coisa pra fazer se você não tivesse deliberadamente jogado tinta no meu projeto ontem.
 — Ah, foi um acidente — não, não foi. — Você nunca vai tirar esses projetos do papel mesmo. Até te fiz um favor.
 — Aguarde e verá. — o assunto é encerrado.
 Lisbeth suspira e volta a atenção para o livro até a voz de Heath entoar:
 — Ei, Liz, você sabia que o sr. Darcy morre no final?
 Lisbeth arregala os olhos até não poder mais e sua boca assume um cômico formato de “O”, e Heath acha que ela está prestes a voar em seu pescoço, então ri com gosto.
 — É brincadeira. Só queria ver sua reação.

Lisbeth está sozinha em casa. 
 Bom, não sozinha, de fato. Os criados estão por lá, se ocupando estritamente com o que lhes foi designado. A madrasta está lá, fazendo sabe-se lá o quê, e Lisbeth também não se interessa em saber.
 Não era um dos bons dias e ela se viu obrigada a ficar de cama, ordens da autoridade máxima — papai. Ele está resolvendo algumas coisas na cidade e os irmãos estão na escola. Lisbeth, deitada na cama, imagina que Isaac deve estar assistindo a alguma partida de basquete na quadra e Heath deve estar batendo em alguém com o livro de física mais grosso que conseguiu arranjar. Seu quarto a deprime; a luz do sol entra sem dificuldades, mas o lado de fora definitivamente é onde ela sempre deseja estar. Ela encara os arredores do quarto por alguns momentos, demorando-se um pouco em um trio de bonecas em uma das prateleiras. Ela as acha um pouquinho mal encaradas, mas não tem coragem de se desfazer delas; era uma herança de Davina, sua mãe. 
 Lisbeth passa alguns momentos lendo e já não se sente tão indisposta. Acha que uma caminhada pelo jardim irá lhe fazer melhor. 
 Mas não é o que acontece. O aperto no peito a arrebata antes mesmo de ela chegar à árvore frondosa e, tateando os bolsos em busca do inalador, percebe que havia esquecido de trazer um consigo.
 Voltou correndo para casa, suando frio, escancarou a porta do quarto e abriu a gaveta onde guardava seus inaladores. 
 Não estavam lá.
 A visão fica turva e a tosse é alarmante quando ela caminha precariamente até a cozinha, onde sabe que encontrará alguém que possa ajudá-la.
 Os criados a olham espantados, e, enquanto coloca as mãos em volta do pescoço no que espera ser um claro gesto de “não consigo respirar”, ela consegue formular um débil “não sei… onde… inalador!”, e eles capturam a ideia. Os empregados se lançam à procura dos objetos furtivos (ou furtados?). Lisbeth, porém, está em seu limite, e desmaia. Uma moça que havia ficado na cozinha a apanha antes que despenque no chão.

Alguns minutos depois, Liz acorda no sofá da sala. Ela se senta, ainda grogue, e pisca algumas vezes. A visão voltara ao normal e a respiração também, por enquanto. Sapatos vermelhos entram em seu campo de visão, e ela levanta o olhar até encontrar a dona deles.
 A madrasta está à sua frente. 
 — Ah, que bom que acordou, querida — a mulher diz, e Lisbeth sempre comparou mentalmente seu tom de voz ao sibilo de um animal peçonhento. — Os criados me informaram do ocorrido. Receio que a culpa seja minha. Imagine você que, um dia desses, estava procurando coisas velhas pela casa a fim de doar para a caridade, e, no caminho, me desfazendo de algumas possíveis sucatas. Nisso, encontrei os inaladores em meio a outras bugigangas, mas julguei-os velhos e sem uso, e acabei jogando no lixo. Na realidade, nem liguei a forma à função, e só me dei conta do que eram quando um dos empregados chegou agora há pouco com um recém-comprado. Só tenho a pedir desculpas, e prometo que vou prestar mais atenção da próxima vez. Fico feliz que esteja bem.
 A expressão condescendente. Os dedos de unhas compridas, cor-de-rosa, entrelaçados no colo. Os dentes exageradamente brancos arreganhados em um sorriso teatral.
 Lisbeth nunca havia sentido ódio de ninguém na vida até aquele momento.
 
 
 Era dia de festival. A independência de Adamancia. Lisbeth e Isaac tinham ido com o pai assistir às performances de malabares, dançarinos e palhaços, comer maçãs caramelizadas e ver os fogos de artíficio da meia noite. Certamente queriam aproveitar alguns instantes a sós com o pai, uma vez que estes eram sempre interceptados pela megera e no momento ela se encontrava longe dali, em mais uma de suas viagens sem mais nem menos. Não importava onde fosse, era sempre bancada por Duncan. Às vezes ele o acompanhava, mas dessa vez não. O dia da independência era importante para eles.
 No dia da independência, Duncan havia conhecido Davina.
 Mas essa é uma história para outro dia.
 A questão central é que Heath não havia ido com eles, alegando estar indisposto; havia ficado na cama o dia inteiro, o que não era típico seu, então devia ser verdade.
 Lisbeth, por outro lado, não estava convencida.
 Já havia seguido Heath uma vez, em um de seus passeios noturnos. Ela lembrava do terreno baldio no topo da Colina Turquesa. Ninguém nunca ia lá. Só ele. Seja lá o que estivesse planejando, era uma questão de tempo até ela descobrir.
 Ela não chegou a subir naquele dia, mas, no dia do festival, Lisbeth diz a Isaac e ao pai que encontrou um grupinho de amigas da escola e que vai participar das brincadeiras com elas. Duncan diz para ela se encontrar com eles antes da meia noite, ou ele vai mandar uma equipe de resgate atrás dela, e ela diz que tudo bem, tudo bem. Lisbeth tem um álibi, uma vez que realmente encontra uma amiga da escola e sai do campo de visão com ela, mas elas conversam apenas por alguns minutos até ela se despedir. 
 Ela caminha e caminha e caminha no sentido oposto ao das comemorações.
 O ar é frio. Ela ajusta a echarpe laranja em volta do pescoço.
 E então sobe.

— O que você está fazendo? 
 Mesmo que a pouca idade justificasse, Lisbeth não é ingênua. Tampouco burra. Ela sabe a resposta, mas quer ouvir dele.
 Heath se sobressalta, virando-se para ela, o rosto pálido. Uma visão fantasmagórica à frente de um pequeno teco-teco de madeira que se agigantava por meio das sombras, bem feito demais para ter sido construído por um amador. Eles passam um minuto assim, encarando-se, as respirações tornando-se vapores condensados em meio ao ar gélido do sete de fevereiro.
 — Vou voar — ele finalmente declara e há vacilo na voz dele, mas não muito. Ele está fazendo alguns ajustes, verificando rodas e hélices e fuselagens, e Lisbeth nunca o sentira tão distante.
 — Para onde? — ela pergunta, se aproximando. — Você fez isso? Você roubou alguma coisa?
 — Não sei. Sim. Talvez. — Heath deu um sorriso fraco. Aquele sorriso não era seu.
 Lisbeth queria perguntar muito mais coisas, mas aos poucos, em sua cabeça, percebeu que já sabia basicamente todas as respostas. Ele vivia falando para ela, naquele seu tom cheio de si, o quanto queria e ia sair dali. Ela apenas nunca levava a sério e ria e lhe dava soquinhos. Bom, agora ela só tinha de abstrair a piada. 
 — Eu… posso ir também?
 O rapaz ergue uma sobrancelha.
 — E por que diabos você ia querer ir? Não acho que tenha bibliotecas aonde eu vou. Caramba, acho até que a belezinha aqui não aguenta levar todos os seus livros.
 Lisbeth quer rir, mas nada sai. 
 — Papai vai ficar triste. — ela tenta depois de alguns segundos.
 — Deixei um bilhete. — Heath fala, o tom grave. — Ele vai entender.
 Ela engole em seco e olha para os pés.
 — Se você for, ela vai fazer mal a mim. — o sussurro é quase inaudível.
 Heath passa a mãos pelos cabelos e parece perdido por um momento. Então se encaminha para perto dela.
 — Olha, Liz, Isaac vai cuidar de você. — agora a sua frente, ele se ajoelha em uma perna e coloca as mãos nos ombros magros da irmã. — Eu sei que ele é um babaca e tudo, mas ele se preocupa com você tanto quanto eu. E também odeia ela tanto quanto a gente. Se eu não estou por perto, ele assume o tranco. 
 E quando Isaac não está por perto?
 Ela quer dizer, mas as palavras morrem na garganta. Ela quer Heath por perto, quer falar sobre livros e átomos e corpos celestes com ele, mas uma reflexão assustadora a leva a concluir que enquanto ele estiver por perto, nunca estará feliz.
 Isaac e Lisbeth gostam da cidade, apesar de tudo. Mas Heath sempre será um forasteiro. Nunca ficará satisfeito enquanto não encontrar sua terra prometida. E ninguém pode fazer nada para mudar aquilo. Nem mesmo Lisbeth.
 — Você acha que Elliot vai encontrar o santo graal? — ela pergunta em um murmúrio.
 — Tenho uma teoria de que o santo graal é, na verdade, um nome decodificado para uma outra coisa. Do jeito que a literatura atual anda, essa outra coisa é provavelmente uma lição de moral.
 Lisbeth ri. Heath também, um som alto e contagiante, até que as lágrimas que não são de riso começam a transbordar. Ela se espanta, mas não hesita em acolhê-lo em seus braços pequenos. Ao mesmo tempo, ao longe, a soltura dos fogos de artíficio é iniciada, e assim ela sabe que eles não têm muito tempo.
 — Você está tremendo — ela observou. — Por que não trouxe um cachecol? 
 — Quem é você, minha mãe? — Ele se recompõe e o rosto molhado agora ostenta o sorriso que Lisbeth conhece muito bem. De orelha a orelha, sincero e insano.
 Ela se desvencilha do abraço e retira a própria echarpe laranja, estendendo-a para o irmão.
 — Para você não esquecer da sua antiga vida por completo. — Lisbeth consegue dizer.
 Heath ri de novo e apanha a echarpe, passando-a pelo pescoço. Ficava grande na irmã, mas parecia o comprimento perfeito para ele. — 10 anos e poetisa. Você vai fazer o maior estrago.
 Os dois passam os momentos seguintes rindo e fazendo o possível para as lágrimas não virem à tona de novo. Até Heath dizer: “Bem, é isso.”
 Ele bagunça seu cabelo curto e lhe dá um último abraço antes de entrar no teco-teco. Ela ouve os motores rudimentares pulsarem e, num último pensamento frenético, torce para não pegarem.
 Heath, porém, decola. 
 Junto aos fogos, o caminho do avião de madeira rasga as cortinas escuras do dia após a independência. Os olhos marejados dela seguem absortos a trajetória formada pelo irmão e um velho clichê martela em sua cabeça. 
 O primeiro dia do resto de sua vida.


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