Dele escrita por Pan


Capítulo 3
Não há lua numa noite escura




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Sabe a sensação de que no final, bem no final, alguma coisa vai dar errado? Essa era a sensação dele. Lua continuava correndo, quase sumindo nas esquinas. Ela não parecia sorrir e toda a graça havia se dissipado do corpo dela. Havia alguma coisa que ela não havia contado. Um mínimo detalhe do qual ele não tinha o direito de saber. Ele seguia ela não somente porque era o que havia dito que faria, mas porque sabia que ela seria a menina que mudaria sua vida dali para frente e terminaria com tudo, inclusive seus problemas. Esse seria o final da história deles, juntos ou não. A dúvida parecia saltar da mente dele, tentando alcançar os cabelos dela antes que Jonathan pudesse se aproximar. Ele queria fazer ela parar, queria gritar, mas não conseguia. Quando ela finalmente parou entrou no ginásio antes que ele tivesse fôlego para continuar.

— Eu não estou tão atrasada. Vou me trocar e já saio – a voz dela soava diferente, séria. Ela entrou no vestiário e saiu em pouco tempo. – Pode ficar ali na arquibancada. Começa a ler o livro. Eu tenho que aquecer e alongar. Daqui a uma hora mais ou menos eu te aviso e aí gente vai.

Ela correu, jogou e nem um sorriso surgiu. Ela parecia agressiva, séria demais. Sempre se destacando, fazendo coisas que até mesmo as mais velhas não conseguiam. O treinador às vezes a chamava de lado e comentava algo. Segundos depois, ela fazia as outras ficarem com inveja, de boca aberta. Um verdadeiro show de exibicionismo. Ele tentou ler o livro, o abriu numa página e leu as palavras no ritmo do som das bolas no chão, tão forte, não como uma melodia, quase como um barulho irritante. O som o lembrou do ritmo de tambores em algum ritual de sacrifício. Talvez fosse aquele o seu. Quem era aquela menina com o sorriso no rosto?

As meninas saíram de quadra, cansadas demais para notarem que estavam indo alguns minutos mais cedo do que costumavam. Só restava Lua e o treinador. Um rapaz, muito mais velho do que John, entrou. Só havia ele contra a menina. Eles jogaram com ferocidade, mais do que necessária. Lua parecia estar à altura de qualquer oponente. Quase uma deusa no vôlei, uma verdadeira deusa. Os cabelos presos num rabo de cavalo apertado não ousavam sair do lugar. O cheiro de suor juntou-se ao mormaço da quadra ao mesmo nível que os dois jogavam-se no chão e agrediam a bola. Havia uma química no ar conforme os corpos deles se envolviam na “brincadeira” pré treino dele e pós treino dela. Podia ser o ciúme tomando conta do corpo vazio de John, ainda assim ele via os sorrisos dela retomarem o rosto e alcançarem o do oponente depois de uma bola difícil.

Um sinal tocou em algum lugar e eles pararam. Pela primeira vez no treino, ela sorriu, o sorriso de manhã. Havia o mesmo encantamento de quando ela sorria para John naquele sorriso. O que ele achava que seria só dele. Estava no sorriso dela para outro. Ela sussurrou para o professor e ele observou a arquibancada. Os olhos de Jonh se encontraram com os do oponente de Lua, logo em seguida se separaram. Então ele focou no professor, varreu os bancos ao seu redor, procurando o que ela tinha visto.

 – Jonh, desce. Tenho que conversar com você – ele saiu da arquibancada e seguiu para a quadra. Hesitante, sabia que esse era o final. Podia sentir ela o apresentando para o rapaz com quem jogara. Seria ele o Giovanni? Seria mais um que estava tão encantado no sorriso dela quanto ele próprio? Ela sentou no chão e esperou que ele chegasse, o outro a imitou. Conversaram e brincaram como velhos amigos, vendo John atravessar a quadra. – Sabe aqueles três caras ali em cima, no canto? Eles são olheiros.

 – Vieram ver você jogar? – “ela quer ir embora, vai me deixar.”

 – Não são de um time qualquer garoto, eles são da seleção. Lua já treina há muito tempo, precisa de mais espaço. Você viu, ela é maior do que isso. Mas não se preocupe, eu vou tomar conta dela quando formos convocados – o professor organizava papéis distraído. Tinha ouvido o filho falar, sabia que o caçula gostava da menina, só preferia não interferir. Sorriu discreto vendo sua cria defender o que achava que já era seu. Ciúmes era realmente coisa para criança.

— Ben, já falamos sobre isso. Não era isso, nosso assunto é outro. Eu tenho uma festa com as meninas na sexta, quer vir? Provavelmente o time do Ben vai também, então você não seria o único menino lá.

— Eu não sei, preciso ver com a Amora – John deu de ombros, sentindo o aperto no estômago. Sabia que não deveria, as palavras escaparam antes que conseguisse perceber – Você vai embora?

— Falta pouco para eu ir jogar com eles, é só questão de oficializar umas coisas. Só que eu mudaria de cidade. Entende o que isso quer dizer? – ela estava de pé. – É a maior chance da minha vida, de realizar meu sonho. Mas eu preciso conversar com você antes de ir. Tem alguns assuntos pendentes e eu precisaria de algo seu. Eu quero que você entenda meu lado. A gente pode conversar na sua casa? Acho que a Amora vai ser bem mais compreensiva e vai me ajudar.

 – Eu não estou te impedindo, pode ir. Você já sabia, só estava brincando comigo. Se é o que você quer, então vai. Leva o que quiser, era só uma questão de conseguir o que você queria então. Eu devia imaginar que você tava me usando – John não a olhava, encarava os homens atrás dela. Não havia mais sorrisos. Ele podia sentir as lágrimas vindo e os olhos já começavam a queimar segurar o choro.

— Vou me arrumar, me espera lá fora – fria como uma rocha ela virou as costas e saiu.  

— Ela é boa, maravilhosa. Pode ser a melhor do mundo, um dia. Deixa ela realizar o sonho. Me ajude a te ajudar. Ela é rápida. Não seja lerdo. Ela é maior do que você, do que tudo isso. Ela não precisa de você, só tente lembrar disso quando ela conversar com você. Não seja esse bebê chorão – Ben colocou a mochila nas costas e saiu. O treinador não quis saber o final daquilo. Haveria mais de um coração partido no final da história.

 Ele saiu andando do ginásio e ficou do outro lado da rua. A cabeça girava com os pensamentos, ele queria bater em alguém, dispersar a raiva. Não precisava dela, tinha se virado esses anos todos sem ela. Ela era como as meninas na sua escola, sempre querendo alguma coisa. Saiu antes que ela o visse. Andaria para casa independente de quanto tempo demoraria.

Anoiteceu antes que ele pudesse passar do ponto de ônibus. Amora percebeu que ele estava triste. Fez perguntas e tentou de tudo, ele não respondia. A babá ficara preocupada quando ele não retornara as ligações. Ele se trancou no quarto, sem sair. Ele chorou e gritou, a babá não conseguia ouvir. Ele se debateu e jogou tudo no chão, desarrumou o quarto, do que importava? A vida dele estava bagunçada. Não conseguia entender como ela tinha esse poder. Ele se acalmou quando o sol se pôs. O livro havia entrado em baixo da cama, do lado do guarda roupa. Ele sentou na cama, de frente para a janela, grande o suficiente para ser um vitral.  Ele esperou. Queria um acerto de contas. A lua surgiria, eles se encarariam, olhos com olhos. Ele tentou esperar, ficar acordado. O sono veio forte e ele dormiu no chão, de frente para a janela, sonhando com Lua. Ele estava tão bem sem ela, porque não conseguia mais? O que aconteceu naquele dia? Tinha sido só um dia mesmo? Tantas coisas aconteceram. A culpa não era dele, era? Ela o usou, não usou? Ele estava certo, não estava? A culpa era dela, era sim.

Eles não conversariam. Esse tinha sido seu erro. Sem saber ele perdeu o que ainda tinha, sem saber que já tinha perdido tudo.

Amora foi embora, sem conseguir se despedir. Havia um prato de comida no micro-ondas e um bilhete de despedida na mesa. Ele havia ignorado a babá. Deixou que ela fosse embora sem saber que ela iria. Ele dormia enquanto Amora esperava o ônibus chegar no destino. Amora precisava avisar, mas o menino não a viu. Ela sentiria saudades, contundo ela não tinha culpa. A culpa era dele. Havia outros motivos que ele não conhecia, de fato, mas ele se esqueceu dela. A babá precisava partir e naquele primeiro dia de aula, não haveria despedida nem o costumeiro boa noite.

Jonathan dormira em cima de uma pilha de roupas, sem se lembrar de quando pegou no sono tão cedo. As marcas das lágrimas ainda estavam secando em seu rosto. Ele podia lembrar do cheiro de Lua ou até mesmo o gosto bom de café e chocolate que seus lábios tinham, no entanto não recordava o motivo de ter aquelas pequenas cicatrizes nas costas. Ele não se lembrava daquilo como ela lembrava. Às vezes vinha como pesadelo, assim como aconteceu naquela noite.

Acordou durante a madrugada, um pouco depois de começar a clarear. Ele se perguntou o que Lua estaria fazendo. A vontade de ver os cabelos dela e o sorriso eram fortes demais para que ele conseguisse se concentrar em outra coisa que não fosse as lembranças dela na sua cabeça. Precisava ver ela de alguma maneira. Ele decidiu ir à casa da Lua. Mudou de planos quando viu o céu escuro pela abertura da porta. Não seria a escolha mais sábia ficar sentado nas escadas da varanda, ainda não sentia que seria a pior escolha daquele dia. Encarou o disco cinza brilhante até quando não podia enxergar claramente por causa da cascata que lhe escorria o rosto.

Ela não fora para casa, dormira na casa dos irmãos T.

Ela precisava contar para ele sobre o passado, sobre tudo aquilo que ela lembrava e talvez ele encontrar o perdão que ela tanto queria e ir com ela, mas ele não queria ouvir. Ela não tinha culpa, tinha? Ele saiu antes que ela pudesse explicar alguma coisa. Ele a abandonou, não foi? Ele a deixou, a culpa era dele. Ele era o culpado. A culpa era dele. Ela o conhecia, apesar de ele não se lembrar mais dela. Sabia que ele provavelmente estava com raiva de tudo aquilo. Queria poder correr até a casa dele e explicar tudo. Dizer que a culpa não era dela, que o acidente foi culpa de outra pessoa.

 Deveria ser por volta de quatro e meia quando a campainha tocou. A casa pareceu permanecer quieta. John havia entrado e se largado no chão. Ele permaneceu deitado, olhando a porta, tentando definir quem seria. Poderiam ser os pais, poderia ser Amora, seria algo estranho e aceitável. Levantou com a esperança de conforto e abraços. Eram Thiago e Theo. Eles não conseguiam vê-lo pelo olho mágico. Havia a opção de ignora-los até que eles fossem. Eles lembravam a verdade sobre ele ter deixado Lua, abandonado ela sem explicação. Seria doloroso demais abrir a porta.

 – Nós sabemos que você tá acordado. A gente quer conversar com você sobre a Lua – a impaciência de Theo era gritante. A tranca fez barulho e a porta abriu.

— Entrem. O que foi? – John tentava parecer indiferente.  

— Lua viaja daqui dois dias. Ela vai morar na cidade vizinha. Ficar de aluguel em um prédio qualquer. Ela te contou sobre a chance no time do estado? Então acho que você já sabe de Amora, podemos pular essa parte. – Thiago andava e olhava tudo a sua volta enquanto a falava. Ele gesticulava estressado, Theo o observava e jogava o peso de uma perna para outra.  

— Sei o que de Amora? Espera, como você sabe o apelido dela? O que eu perdi? – John estava aos berros. O que eles não haviam contado para ele? Amora não lhe disse nada sobre nada.  

— Achei que Lua tivesse contado aquilo que ela nos disse, não parece a cara dela sair sem explicar – Theo esboçou logo a surpresa. Ele encarou o irmão. Thiago fez careta e revirou os olhos.

 – Vai ver ele esqueceu. Amora te contou que vai viajar com Lua? – os olhos de Thiago pousaram sobre o papel dobrado. A surpresa fez o ar sair dos pulmões de Jonathan rápido demais. Sua cabeça gritou com lembranças voltando. Cenas de um ele que não era ela. Thiago puxou o papel de debaixo do prato e entregou para John. Havia um pedido de desculpas eminente em seus olhos.  

John pegou o bilhete oscilante. Estava pronto para jogar o papel no lixo, mandar os irmãos para fora quando leu a primeira frase. Ele não queria saber o que estava acontecendo. O sorriso de Lua veio em uma imagem, numa criança que se parecia muito mais com Myca. Ele não abriu a carta. Jogou encima da bancada.

— O que aconteceu? Por que elas estão indo embora? – os irmãos se olharam, jogando a resposta de um para o outro.

— Lua nos contou algumas semanas atrás sobre você. Foi a primeira vez que a gente viu a sua foto com seu irmão no celular dela. Quando a gente perguntou ela pôs tudo para fora. Ela se sente tão culpada pelo que aconteceu que queria levar você embora com ela – a mão de John alcançou a carta, pronto para abrir sua caixa de Pandora. A explicação revezada dos irmãos ia abrindo caminho por entre suas memórias. Ele amassou o papel entre os dedos. Todos haviam ido embora porque ele não era o irmão. A culpa não era do caçula, era do primogênito. A culpa era dele.

— Acho que você entende agora. Havia algo antes, algo que seu irmão começou. Ela está arrumando as coisas para ir. A convocação oficial chegou. Nós podemos resolver isso antes que seja tarde demais. Ela ta bem mal, quer desistir de ir. Você pode ir com ela, a gente só precisa correr e... – Thiago não conseguia olhar nos olhos de John. A fisionomia abalada fazia com que o menino parecesse morto.

 – Não, eu não vou correr atrás dele, agora não. Melhor vocês irem. Passem esse tempo restante com ela. Eu fico – as memórias não voltavam inteiras por mais que ele tentasse.

 – Eu sei que é muita coisa para aguentar de uma vez. Lua queria ajudar. Nós estamos do seu lado. Ligue se precisar. Vem Ti – Theo abriu a porta e esperou o irmão.

Os meninos não estavam lá e o barulho em sua mente parecia aumentar. Havia tanto para pensar. Um irmão, sem que ele nunca lembrasse. Não havia rancor, ele sabia que eles estavam dando o melhor deles no trabalho, fazendo o que amavam, talvez não conseguissem olhar em seu rosto sem lembrar do filho que se sacrificara para salvar o menor. Não poderia culpa-los no final de tudo. Perder um filho superava a alegria de ter outro. Ele poderia perguntar o que aconteceu com o irmão, queria mais detalhes, queria histórias e fotos, vídeos de bebês. Duvidava que se lembrasse de alguma coisa.

Lua, era amiga dele. Lua o conhecia. Ela lembrava, por que ele não? Amora não tinha cuidado do irmão porque teria a mesma idade que ele, se ele estivesse vido. Eles teriam sido amigos? Seria o irmão o único motivo para Lua ter inventado tudo aquilo? Ele era só um substituto para o vazio que o irmão deixou. Lua não gostava dele, queria o pouco do irmão que ele tinha. Jogou a carta longe. Gritou e desabou no chão. Havia tanto que ele não sabia sobre ele mesmo.

Ele pensou em correr atrás de Lua, ela poderia contar tudo. Mas quem era o culpado pelo acidente? Se era ela, então ela era a culpada por essa vida chata que ele tinha. Ela era a culpada por tudo. Ele queria ouvir a verdade. Não conseguia tirar as pernas do lugar. Demorou para que ele começasse a subir as escadas e voltasse para o quarto. Deitou na cama e esperou que o sono chegasse. Faltaria na escola, não perderia nada importante. Ele olhou para a janela e viu o sol surgindo na lentidão usual. Olhou para a bagunça do quarto e lembrou-se de um item. “Cadê aquele maldito livro?” Revirou as pilhas de roupa e abriu as gavetas. Ele o viu embaixo da cama, o abriu e leu.

O tempo que ele terminou para terminar, o sol surgia no céu e o ônibus partia.


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