Vidas escrita por Seto Scorpyos


Capítulo 2
Capítulo 2




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Achar o endereço não foi tão difícil: Zona portuária. Com um olhar entre culpado e incrédulo, Liam contemplou o lugar onde Gabriel estava morando e engoliu seco. Não que fosse... bem... simplesmente não era o que esperava.

Seguiu as indicações até chegar numa área onde algumas casas se espremiam entre galpões fechados. Viu indústrias e vários caminhões e desejou que o marido tivesse aceitado a revisão do acordo do divórcio. Desejou antes de tudo, que nunca tivessem se separado.

Finalmente encontrou a rua e entrou, surpreendendo-se por estar cheia de crianças. Parecia algo como uma festa, com fitas e música. Parou o carro e desceu, travando as portas e ligando o alarme. Um pouco apreensivo, entrou no meio da confusão, procurando pelo número da casa de Gabriel. Não precisou procurar muito e parou, maravilhado e muito, muito surpreso: o marido estava brincando com bolinhas de sabão, cercado de crianças.

O moreno parou e sorriu de leve, sem desviar os olhos da cena. Algumas pessoas o encararam com estranheza, mas ele não prestou atenção. As crianças notaram seu interesse e puxaram a roupa do loiro, que olhou para trás.

— Ah! Que bom que chegou! Ajeita o globo para a gente? – pediu, sem parecer surpreso com a visita do moreno.

Liam franziu a testa, mas Gabriel não lhe deu tempo. Saiu do meio das crianças e o puxou para perto de uma mesa com um computador. O moreno o olhou, perdido.

— O que é para eu fazer? – perguntou, olhando do aparelho para o marido.

— Estragou e precisamos de luz colorida. Você é bom em consertar coisas. – o loiro explicou, rolando os olhos, como se o outro fosse uma criança por não entender logo o que queria.

O moreno olhou em volta e viu os rostinhos ansiosos e Gabriel o encarando como se fosse um salvador ou algo parecido.

— Você é melhor do que eu nisso. – comentou, sem jeito.

— Quer dizer que não vai ajudar, Liam?

O mais velho ouviu murmúrios em relação a seu nome e percebeu que as pessoas encaravam os dois, perplexos. Colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha e sorriu meio de lado, uma característica quando estava relaxado.

— Vou ver o que posso fazer. – respondeu, sorrindo de volta para o marido.

Um homem se aproximou com uma lanterna e Gabriel deu o lugar ao lado do moreno.

— Já está escuro para consertos, eu seguro para você. – o recém chegado disse, sério.

O homem o observou com olhos estreitos e o moreno soube que não podia errar. E não estava falando do globo.

Liam aceitou a ajuda e dobrou as mangas. Com as ferramentas, desmontou o disco de luz e refez as conexões elétricas. Sorriu, lembrando-se do início, mas então, o sorriso morreu ao lembrar-se que Rico estava sempre com ele. Forçou-se a se concentrar e logo, remontou e ligou o globo.

A luz colorida foi saudada pelas crianças e por Gabriel, que gargalhou alto com a felicidade dos pequenos. Liam se afastou e ajudou alguns homens a ligarem mais lâmpadas, iluminando a rua. Quando o moreno achou que podia descansar, foi puxado pelo loiro de novo, que praticamente jogou o potinho e o canudo de fabricar bolinhas em suas mãos. Pela meia hora seguinte, fez bolas de sabão que as crianças e alguns adultos se divertiam em estourar, rindo dos efeitos coloridos das luzes.

O moreno realmente não notou o tempo passar, e Gabriel teve que puxar seu braço para chamar sua atenção.

— Vamos comer. – chamou, tirando o pote da mão dele.

— Mas, as crianças... – Liam tentou protestar, mas foi literalmente puxado pelo loiro.

— Vão comer também. Na verdade, as mães estavam preocupadas porque enquanto você estivesse fazendo bolinhas, elas ficariam para dançar, então... – Gabriel encolheu os ombros.

— Ahn! Desculpe. – o moreno ficou meio constrangido.

— Não se preocupe, foi divertido. – o outro o consolou, com um sorriso divertido.

Liam não se lembrava quando foi a última refeição que fez na rua. A comida estava sobre uma mesa, junto a pratos de papelão. Gabriel serviu os dois e juntos, procuraram um cantinho para comer. Sentaram-se no chão mesmo, colocando os copos de refresco no chão de frente a eles. Diante do quadro, o moreno riu.

— Lembranças? – Gabriel perguntou, pegando o lanche com a mão sem qualquer traço de vergonha.

— É. – o moreno concordou, imitando o marido.

Gabriel mastigou a comida e o encarou com atenção. Liam devolveu o olhar, elevando uma sobrancelha.

— Lembranças boas? Estou nelas? – o loiro perguntou, pegando o copo.

Liam o observou em silêncio por alguns minutos.

— Na verdade não são bem lembranças... – o moreno respondeu, lambendo os dedos em reflexo, e Gabriel sorriu – Eu gosto de momentos assim...

— Aqui é sempre assim. – o loiro explicou, olhando em volta – Vizinhos que se conhecem, que levam bolo e pratinhos uns para os outros... Nunca se está realmente sozinho, a menos que queira.

— Parece bom. – Liam respondeu, observando as pessoas.

No começo, alguns o olharam com precaução, depois de observarem o loiro com cuidado. Não podia ser diferente. Não depois de tudo.

— É bom! Pelo menos eu gosto. – Gabriel respondeu, mordendo mais um sanduíche.

Os dois comeram em silêncio por alguns minutos, confortáveis lado a lado.

— Onde é seu apartamento? – o moreno perguntou, terminando o refrigerante.

Gabriel olhou para ele, surpreso.

— Eu não moro num apartamento! – rebateu, com os olhos arregalados.

— Mas Ricardo... – o moreno parou, confuso.

O loiro franziu a testa e pensou um pouco, sustentando o olhar do marido.

— Tem certeza de que ele disse isso? Faz tempo que me mudei do apartamento. – o loiro comentou, terminando o lanche.

Liam o encarou e então, encolheu os ombros.

— Acho que me enganei. Na última vez que perguntei, ele disse que estava num apartamento pequeno, e acho que confundi as coisas. Realmente, tem tempo que ele me disse isso.

Gabriel limpou a mão no jeans e recolheu os utensílios usados.

— Bom, vai conhecer minha casa. – o loiro se levantou e então, parou e se virou – E sua noiva? Não ia jantar com ela?

O mais velho se levantou num pulo, fazendo Gabriel recuar, entre assustado e surpreso.

— Não estou noivo, nem mesmo tenho um relacionamento. – garantiu, olhando dentro dos olhos do marido.

— Mas ela disse... – Gabriel tentou argumentar, mas Liam o interrompeu.

— Eu não sei por que ela disse isso, mas não é verdade.

— Não dormiu com ela? – a pergunta saiu baixa, mas o olhar não se desviou.

Liam se sentiu corar.

— Não dormi, mas fiz sexo com ela. Você sabe o quanto isso é diferente. – respondeu, inflexível.

Gabriel inclinou a cabeça, olhando-o com imensos olhos castanhos e Liam se sentiu um verme miserável e rastejante. O loiro se virou e levou os pratos e os copos para a lixeira sem dizer nada. O moreno passou a mão pelo cabelo, sem saber como se defender. Racionalmente sabia que não precisava disso, mas diante do olhar límpido do marido... se sentiu um cachorro traidor adúltero e sem vergonha. Com um suspiro desanimado, se recostou à parede e observou Gabriel parar para conversar com algumas pessoas. Apesar da música e de alguns jovens dançando, a maioria estava simplesmente conversando, em grupos ou duplas e quando o loiro voltou, o mais velho respirou aliviado. Ainda ficaram por ali e o marido o apresentou a algumas pessoas, que o observaram como um espécime raro de laboratório e depois de mais algum tempo, Gabriel disse que podiam ir.

O alívio que Liam sentiu transpareceu em seu rosto, provocando um olhar do loiro.

— Deve estar cansado... como foi a reunião? – o mais jovem perguntou e então parou e se virou para o moreno – Como você veio?

— Deixei meu carro ali. – Liam apontou para o início da rua e Gabriel suspirou.

Liam não perdeu a chance.

— Você dirige. – disse, tirando a chave do bolso e a atirando para o loiro, que pegou em reflexo.

— Não sei se é uma boa idéia... – o programador respondeu, recomeçando a andar.

— Você dirige bem então, qual o problema? – o moreno perguntou, alcançando-o.

— Meus reflexos funcionam bem, mas agora não sempre. Talvez seja melhor você dirigir e eu ensinar o caminho.

O tom triste na voz do loiro fez o coração de Liam se apertar. Quis perguntar se foi por causa da medicação, mas não teve coragem.

— Pelo que disse, sua casa não é tão longe... – tentou argumentar, aparentando normalidade.

— Na rua de trás, mas... – Gabriel parou ao lado do carro e o olhou, mordendo o lábio – Não sei se consigo.

— Tenta.

Ambos se olharam e Liam percebeu a vontade de Gabriel em dirigir novamente. Se sentiu um pouco mais culpado e pesado, mas sorriu, confiante. O loiro destravou as portas e ambos entraram e se sentaram, passando o cinto.

Liam não apressou o marido, que ficou por algum tempo simplesmente segurando o volante. Com calma, Gabriel ligou o carro e manobrou para sair. O moreno ficou em silêncio enquanto o outro dirigiu com segurança, fazendo um pequeno recuo para voltar pela mesma rua onde estavam e pegar a saída para a outra, com um cuidado excessivo, na opinião do mais velho, que mesmo assim não disse nada.

Liam elevou uma sobrancelha quando Gabriel parou na frente de um galpão praticamente caindo aos pedaços. O lugar parecia em pé somente pela força de vontade e isso não era uma coisa boa. Não mesmo.

— Vem! – o loiro saltou do carro, animado.

O mais velho o seguiu em um silêncio reprovador, que o outro não pareceu notar. Por dentro, estava um pouco melhor e a personalidade do marido imprimiu um toque de classe ao lugar. Devagar, andou até o meio e olhou em volta. Uma pequena cozinha no canto, estantes, um biombo do outro lado, um cavalete e telas, tanto pintadas quanto em branco, espalhadas. Tintas, pincéis, computador, impressora e papéis dividiam uma imensa mesa.

— Você pinta? – o moreno perguntou, surpreso.

Sem esperar resposta, se adiantou e observou as telas, passando-as lentamente. Paisagens de névoa e chuva, de traços fortes e largos, outros feitos a algo que pareceu lápis fino, com sombras na neblina.

— Isso é... – murmurou, impressionado.

O olhar do moreno foi atraído para a mesa. A maioria dos papéis estava coberto com desenhos muito delicados de sakuras e moinhos, além de faróis. Erguendo os olhos, sentiu uma pontada ao ver uma grande tela na parede, feita de bambu e pintada em branco e preto a nanquim. Um desenho deles. Dos quatro.

Um desenho da foto do casamento.

Apoiou-se à mesa, sorrindo dolorosamente sem perceber. O desenho estava perfeito e traduzia completamente a felicidade daquele dia. Aproximou-se, tocando a pintura com cuidado.

— É linda! – murmurou, sem sentir as lágrimas.

— Liam....

— Éramos tão... fomos tão felizes... – o moreno murmurou, finalmente passando a mão pelo rosto – Foi tão... tão...

— Liam... – Gabriel voltou a chamá-lo, tocando-o de leve no ombro.

O moreno olhou-o e a dor que estava estampada no olhar escuro fez Gabriel sorrir tristemente. Segurando sua mão, puxou-o delicadamente.

— Vem. – chamou, guiando-o para longe do quadro.

O mais velho o seguiu, e Gabriel o sentou na cama. Liam respirou fundo e passou a manga do casaco no rosto, mas não resolveu muito. O loiro se sentou ao lado dele, puxando-o para seus braços e o moreno simplesmente se aconchegou, exausto. Ficaram em silêncio por um longo tempo e Liam não se aventurou a olhar o quadro novamente e só bem depois que o mais velho se mexeu, subitamente preocupado com o marido.

— Estou pesado? – perguntou, se erguendo um pouco relutante.

— Não estava tanto. – o loiro respondeu, mas se levantou de todo modo – Na verdade, a maior parte de você estava esparramado na minha cama.

O moreno olhou em volta e sentou-se.

— Sua cama é grande – comentou, já conseguindo sorrir.

— Eu preciso de muito espaço. – o loiro respondeu, olhando a cama com olhar crítico – Não gosto de nada me apertando. A não ser você.

Liam arregalou os olhos e ergueu a cabeça. Gabriel não estava olhando para ele ou tentando seduzi-lo, ao contrário, com uma expressão pensativa, encarava a cama com atenção. De repente, simplesmente atravessou o espaço e abriu um armário.

— O que vai fazer? – o moreno perguntou, confuso.

— Você deve estar cansado, então estou procurando alguma coisa para você vestir depois do banho. O banheiro é ali – mostrou uma porta ao lado do armário – Não tenho banheira... mas a ducha é enorme... – sorriu e se virou, inclinando a cabeça e fazendo um gesto exagerado com as mãos.

O moreno sorriu.

— Não precisa se preocupar... – argumentou, observando o outro.

— Você não vai dormir aqui? – a voz de Gabriel traiu sua surpresa – Por que? Não disse que ela não é sua noiva de verdade? Estava mentindo?

O mais velho piscou, perdido.

— Espera um pouco! – pediu, levantando-se e erguendo as mãos – Eu não menti. Ela não é minha noiva! Só disse para não se preocupar porque não quero me impor, mas se estiver tudo bem para você, é claro que eu quero dormir aqui.

— Então posso continuar procurando? – o loiro perguntou, sustentando o olhar do moreno.

— Pode.

Gabriel se virou e quase entrou no armário, fazendo o moreno estreitar os olhos diante da visão. O jeans do loiro estava apertado nos lugares certos, o que fez Liam suspirar pesadamente. Resignado e tentando não prestar atenção, o mais velho voltou a sentar-se, aventurando o olhar novamente sobre o galpão.

— Desde quando começou a pintar? – perguntou, depois de algum tempo.

— Quando saí da clínica. A vovó da loja de verduras disse que podia ser bom tentar colocar para fora a tristeza dos meus olhos, então... – a voz dele saiu abafada.

— Não tem um terapeuta? – Liam perguntou, olhando o marido se erguer, segurando uma camiseta.

— Eu não queria alguém para remexer nas feridas. Se não mexer, sara mais rápido e além do mais, ninguém podia ajudar em nada. – ele respondeu, olhando a camiseta com descrença.

— Talvez falar resolvesse... – o moreno ofereceu, pesaroso.

Gabriel o encarou e então sorriu.

— Mas eu falei, através dos meus desenhos... eu falei e falei... até que as palavras se esgotaram. Ricardo também ajudou bastante, me ouvindo quando eu precisei. Na verdade, falei bastante.

Liam devolveu o sorriso. – Fico feliz em saber.

— Você também falou? – o loiro perguntou, inclinando levemente a cabeça.

— Não tanto quanto gostaria, mas aprendi a lidar com isso.

Gabriel o encarou e Liam se sentiu dissecado, mas antes que pudesse fazer alguma coisa, o loiro se adiantou e entregou a camiseta,

— Nenhuma das minhas roupas te serve, mas tem essa camiseta e uma bermuda antiga, que está no baú logo atrás do biombo. – explicou, hospitaleiro – Ainda está com fome?

— Não, estou bem. – Liam respondeu, se erguendo.

— Se quiser roupa íntima... – Gabriel começou e o mais velho parou e olhou para trás, encontrando um olhar divertido sobre si – Tem na gaveta do baú e toalha no banheiro.

Liam não respondeu e sacudiu a cabeça, rindo baixinho. O loiro sorriu também e se virou, disposto a reunir um pouco das coisas espalhadas.

***

O empresário se sentiu melhor depois de um banho. Gabriel estava certo quanto à ducha: muita água quente e relaxante. As roupas realmente serviram e o moreno riu ao pegar uma roupa íntima do marido. Mexeu nos xampus e cremes, sentindo o perfume suave de flores. Por mais que provocasse o outro, Gabriel não podia deixar de gostar do cheiro da lavanda e simplesmente lançava um olhar afiado e não respondia. Toalhas grandes como sempre, escuras.

Um paradoxo interessante. Para alguém que era o próprio sol, Gabriel gostava de cores escuras e parecia muito mais vivo à noite.

— Tem alguém vivo aí? – a voz do loiro trouxe um sorriso mais aberto ao rosto do moreno.

Liam abriu a porta ainda sorrindo, secando o cabelo com a toalha e Gabriel elevou uma sobrancelha.

— Divertindo-se? – perguntou, com os braços cruzados.

Se não soubesse da total falta de malícia do marido para certas coisas, Liam teria rido e entrado na brincadeira.

— Curtindo sua ducha. Tem razão, não perde em nada para a minha banheira. – o moreno respondeu, relaxado.

— Minha vez. – o loiro disse e sem esperar que o outro saísse, tirou a camiseta e pegou a toalha da mão do mais velho, entrando no banheiro.

O moreno ia protestar, mas desistiu. Rolou os olhos e desviou do biombo, notando de imediato que o outro já tinha arrumado a cama e juntado os desenhos sobre a mesa. Distraído, voltou a repassar os desenhos, cada vez mais prazerosamente surpreso. No canto da mesa, debaixo de algumas folhas em branco, Liam achou uma pasta e sentou-se, folheando-a. Mais desenhos, feitos com as mais variadas técnicas, alguns em preto e branco e outros, coloridos. Quando já estava no meio, depois de um desenho de um mar tempestuoso, o moreno arregalou os olhos e engoliu seco.

O envelope amarelo de Rico. Mordendo levemente o lábio, virou-o e notou que ainda estava fechado. Com um suspiro, colocou de volta e fechou a pasta, olhando em volta à procura de algo para beber. Levantou-se e atravessou o espaço, só parando em frente a uma pequena geladeira. Quando abriu, não conteve o sorriso.

— Frutas, pudim e doces... – constatou, baixinho – Porque não estou surpreso?

Nos espaços da porta, coca cola e leite.

— Pelo jeito, ainda não gosta muito de suco... – murmurou.

Abriu uma lata e fechou a geladeira, olhando em volta. A cozinha estava perfeitamente arrumada, como sempre. Gabriel era praticamente um maníaco quando se falava em cozinha. Liam voltou para a mesa e ignorou a pasta, observando as outras coisas. Havia quadros na parede e pequenos desenhos, além de uma quantidade enorme de leques, de vários tamanhos e cores.

O moreno piscou e se aproximou, franzindo a testa.

— Também gosta de leques?

A voz de Gabriel o fez piscar e se voltar, lamentando tê-lo feito segundos depois. O loiro estava usando apenas uma bermuda pequena e apesar do zíper estar fechado, o botão estava displicentemente desabotoado. O outro parou de secar o cabelo e perguntou, surpreso.

— Assustei você?

Respirando fundo para segurar as emoções e reações, Liam se forçou a desviar os olhos.

— Não. E gosto de leques... você os pintou a mão, não foi? – respondeu e perguntou, voltando a atenção para a parede.

— É. – a resposta veio de trás dele, mas o moreno não se virou novamente – É bom trabalhar com as mãos e criar algo que só existia antes na sua cabeça.

Quando finalmente veio para perto de Liam, Gabriel já tinha vestido uma camiseta, ainda que permanecesse descalço. A área toda estava coberta com uma espécie de esteira fina e depois de olhar o marido, concluiu que devia ser bom pisar naquele chão estranho. Olhou para os próprios pés e franziu a testa ao ver os chinelos de interior que estava calçando. Com um gesto rápido, se desfez dele e sorriu.

— É bom mesmo... – murmurou, satisfeito.

Erguendo a cabeça, Liam ficou constrangido com o olhar de Gabriel.

— Estava falando do chão... bem... – respirou fundo – Você já trabalhava criando coisas que só existiam na sua cabeça na empresa e era uma forma de arte também.

Gabriel encarou os leques com um olhar estranho.

— Essa arte é mais satisfatória. Se der algo errado, eu simplesmente posso pintar outra coisa por cima. Não preciso refazer tudo ou gastar horas sentado à frente de um computador. Até faço isso, ainda, mas não tanto agora. Prefiro pintar.

 Liam observou Gabriel se sentar na cama e cruzar as pernas. Olhando em volta, sentou-se num banco alto e encarou o outro.

— No que trabalha, agora? – perguntou, curioso.

— Tem uma feira de artesanato mais perto do cais. Nos fins de semana, levo algumas coisas e sempre tem uma boa venda. No início não, eu trabalhei com a vovó alguns meses e depois num estacionamento. Mas eu não gosto de ficar preso então... – Gabriel encolheu os ombros, resignado – Um dia fiquei sem dinheiro e então tive a idéia de tentar vender... – sorriu, calmo – Deu certo e desde então faço assim. E eu também ajudo Ricardo, quando ele precisa.

A menção do policial fez Liam franzir a testa.

— Como assim? Ele é policial e é um trabalho perigoso!

O moreno se alarmou e Gabriel riu, descontraído.

— Ele é um detetive e precisa de algumas pesquisas de vez em quando. – o sorriso se abriu ainda mais, divertido – E também de invadir alguns sistemas...

O olhar de Liam se estreitou.

— Isso é ilegal e perigoso. – condenou, sério.

— Ele sempre traz autorização da justiça, Liam. O departamento dele sabe que eu ajudo então não tem problema. Além disso, o pagamento é bom e posso viver bem. – o loiro deu de ombros.

— Chama isso de viver bem? – o mais velho perguntou, sombrio.

Gabriel o encarou e seus olhos cintilaram, fazendo o outro perceber que foi longe demais.

— É assim que eu vivo e está bom para mim, Liam. Não me lembro de ter pedido qualquer coisa a você, nem mesmo sua aprovação.

A resposta afiada fez o moreno empalidecer, embaraçado.

— Desculpe, Gabriel. Não devia ter criticado sua vida. – pediu, sem jeito.

— Não devia mesmo. – o loiro rebateu, seco.

— Eu me preocupo com você e queria mesmo que estivesse bem. – o moreno explicou, se levantando e sentando-se na cama perto do marido – Não tive a intenção de magoar você.

— Minhas prioridades mudaram, Liam. Eu mudei. Depois de tudo o que aconteceu, não podia ser diferente. – Gabriel argumentou, encarando o marido.

— Desculpe.

Ambos lamentaram que o assunto tivesse ido para uma área perigosa entre eles. O recente relacionamento não ia agüentar cobranças. De nenhum dos lados.

— Posso dormir aqui? – Liam perguntou, depois de algum tempo.

Gabriel o encarou por alguns minutos, sério e então se virou e engatinhou sobre a cama, fazendo Liam rolar os olhos diante da boa visão do corpo bonito.

— A ponta é minha. – o loiro afirmou, puxando o edredom.

Liam elevou uma sobrancelha e olhou em volta. A cama estava praticamente no meio do “quarto” e não havia ponta nenhuma. Ficou parado e olhou o marido, que calmamente passou por cima dele para terminar de puxar o edredom. O peso e o calor do corpo do marido acenderam seu desejo de novo e ele mordeu o lábio.

Cedo demais para Gabriel.

O loiro não pareceu notar o estado do marido e deitou-se, olhando para ele de modo acusador depois de alguns minutos. Liam piscou, confuso.

— Não vem? – Gabriel perguntou, exasperado.

O moreno se deitou e imediatamente o loiro deitou-se sobre seu peito, sem a menor cerimônia. Liam estremeceu de leve com o contato e se chutou mentalmente por não conseguir se controlar. Gabriel certamente ouviria as batidas loucas do seu coração e se assustaria.

— Luzes. – a voz do loiro soou, clara.

As luzes do galpão piscaram e diminuíram gradativamente, até restar apenas uma penumbra perto da porta e sobre a mesa de trabalho. Liam sorriu diante da engenhosidade do marido.

— Isso é interessante. – comentou, baixo.

— Isso é preguiça. – Gabriel respondeu, ajeitando-se sobre o marido.

Liam o abraçou de leve, acariciando-lhe os cabelos. Depois de alguns minutos, franziu a testa.

— Porque não disse o comando quando chegou? – perguntou, de repente.

— Porque quando a luz é ligada pela tomada, meu sistema de segurança registra que eu cheguei e não estou sozinho. A partir daí tudo é monitorado e Ricardo recebe uma mensagem no celular.

A explicação saiu tão baixa que Liam quase não ouviu, mas mesmo assim queria mais informações.

— Porque Ricardo? – perguntou, curioso.

— Porque ele fez questão de saber sempre onde estou e se estou bem. E na verdade, me sinto melhor assim.

— É comum isso... de trazer alguém aqui? – assim que a pergunta saiu o moreno percebeu que era ridículo.

Gabriel levantou a cabeça e o encarou, mas na penumbra, Liam não conseguiu enxergar sua expressão.

— Está perguntando se trago namorados para cá? – a voz do loiro soou curiosa e o mais velho sentiu-se corar.

O loiro se sentou e Liam fechou os olhos, arrependido de ter invadido o espaço do outro. Ele ia surtar.

— Mesmo não sendo aquele que foi expulso do apartamento pela amante... – Gabriel começou, mas foi interrompido.

Liam se levantou com tanto ímpeto que quase derrubou o loiro, segurando-o contra si no último minuto. O susto fez Gabriel se segurar nos braços do marido, com os olhos arregalados.

— Eu já admiti que saí com algumas mulheres, desde que nos separamos – o moreno não deu chance para o outro rebater e o apertou de leve – Tenho plena consciência que não posso exigir nada de você, seria até normal se trouxesse alguém para cá e peço desculpas pela invasão...

— Nunca trouxe um namorado aqui. – o loiro o interrompeu, respondendo baixo – Não tive ninguém desde nossa separação, mas não estou cobrando nada. Você nunca teve problemas com isso, mas eu sim. É complicado pensar em dividir meu corpo com alguém... deixar uma pessoa entrar, dar a ela o poder de me machucar se quiser... isso sempre me assusta e penso que não vale a pena arriscar. 

— Me sinto um pouco pior agora, obrigado – Liam tentou brincar, sentindo-se realmente pesado e miserável.

Gabriel riu baixinho.

— Não se sinta, afinal, não me apaixonei por ninguém para querer isso. Agora deita que eu quero dormir.

Sem sutileza, o loiro se afastou e empurrou o marido, ainda surpreso com a revelação. Liam se deitou, mas não soltou Gabriel. Assim que ele se ajeitou, o moreno murmurou.

— Também não me apaixonei por elas, Gabriel. Eu só queria um pouco de companhia, por algum tempo. Não tem nada a ver com amor.

— Sei disso.

Liam sorriu tristemente. Apesar da diferença com que os dois encaravam a vida e os relacionamentos, o loiro ainda era capaz de entender sua atitude. Situações assim sempre o faziam se sentir mal por não conseguir ser digno do outro, mas sabia também que se dissesse algo como isso, Gabriel iria elevar uma sobrancelha e perguntar quando recebeu o diploma de “perfeito”.

Na penumbra, o moreno acariciou o cabelo macio até sentir a respiração de Gabriel se acalmar e ele, pesar um pouco sobre seu peito, finalmente adormecido. O calor do marido embalou Liam na primeira noite em que realmente dormiu tranqüilo.

****

O moreno entrou quase correndo no escritório, no meio da manhã. Podia até se xingar por ter dormido demais, mas não o faria. Quando questionou o marido sobre o por que de não ter sido acordado, ele simplesmente arregalou os olhos, surpreso.

“Você pareceu cansado ontem e além disso, tirei ótimas fotos.”

A resposta, em vez de deixá-lo zangado, o fez rir. Rir junto com Gabriel.

Como punição, o moreno fez o marido o acompanhar até o apartamento para trocar de roupa. Infelizmente, o loiro não era mais aquela criatura metódica que se guiava sempre por uma linha reta em qualquer situação e conseguiu, não sabia como, convence-lo de que deviam assistir um desenho ótimo que passava todas as manhãs.

Agora, estava com toda a agenda lotada atrasada, e não conseguia sequer se irritar.

Com uma calma tirada da inevitabilidade da coisa, Liam chamou Felipe e Carlos, reorganizou sua agenda e delegou algumas tarefas permanentemente. O advogado ergueu uma sobrancelha.

— Gabriel? – perguntou, curioso.

— É. – o moreno sorriu, discreto – Preciso de mais tempo livre então acho que vocês serão sacrificados.

Felipe olhou de um para outro. – E quando vamos conhecê-lo?

— Eu falei de vocês para ele, mas tenho que pedir desculpas, Felipe. – o olhar do moreno cintilou – Quero Gabriel só para mim por um tempo.

O outro sorriu, compreensivo. – Tudo bem. Dá para entender.

— Como ele reagiu a tudo? – Carlos perguntou, depois de algum tempo.

— Foi um pouco difícil no início, mas depois... – o moreno encolheu os ombros e se recostou à cadeira – Acho que ele simplesmente deixou para lá.

— Situação instável. – Felipe constatou, penalizado.

— Pelo menos ele me deixou chegar perto e não demonstra mais tanta aversão a mim. – o sorriso saiu triste – É pouco, mas é o que tenho.

Durante a semana, Liam apareceu pouco no apartamento. Simplesmente passava por lá para trocar de roupa ou pegar algum documento. Gabriel reclamou um pouco desse vai e vem, mas não pareceu realmente irritado. Na segunda semana, o moreno começou a ficar preocupado.

Gabriel não estava mais tão disponível e pareceu distante e pensativo. Por mais que não quisesse, Liam refletiu que o outro precisava de um pouco de espaço e forçosamente, concedeu.

Foi pior.

Por uma semana, não conseguiu falar ou ver Gabriel, nem mesmo na feira de fim de semana. Por fim, implorou ajuda a Ricardo.

Quando chegou ao café, arregalou os olhos ao ver o marido, sentado ao lado de Ricardo e Luciano. O ruivo estava dizendo alguma coisa, mas parou ao vê-lo.

— Gabriel, até que enfim! – jogou-se na cadeira e encarou o loiro – O que aconteceu? Te procurei a semana toda! Onde estava dormindo? Porque não foi à feira? Eu estive lá te procurando e ninguém sabia onde estava!

Por fim, o moreno notou o olhar do outro e se calou. Luciano evitou rir da expressão dele, mas Ricardo simplesmente estreitou o olhar.

— Eu estava aqui mesmo, mas estive ocupado. A vovó precisou de ajuda e além disso, tenho uma encomenda de leques. – o loiro tomou a coca, passando o copo gelado no pescoço – Preciso pagar as contas.

Liam comprimiu os lábios e encarou os amigos, tentando não se irritar.

— Porque não aceitou o acordo, se precisa tanto de dinheiro? – Luciano perguntou, tomando a própria bebida – Parece que está reclamando de ter que trabalhar...

O psiquiatra demorou um tempo para notar que era olhado com hostilidade por Liam e Ricardo. Gabriel o encarou com uma expressão indecifrável e colocou o copo com cuidado sobre a mesa.

— Não estou reclamando, Luciano. Estou explicando, por que ele me perguntou. – a resposta veio calma e o sorriso, desconcertante – Bem, acho que já deu a minha hora.

Sem esperar, o loiro se levantou e tirou a carteira. Ricardo deu um pulo da cadeira e tentou segurar o amigo, que olhou para ele e sorriu.

— Tudo bem, Ricardo. – garantiu, deixando sobre a mesa algumas notas – Tchau!

Liam se levantou e seguiu o marido, sem lançar sequer um olhar para o casal que ficou à mesa. Luciano respirou fundo e empalideceu, maldizendo-se por falar sem pensar.

— Vou pedir desculpas... – o psiquiatra murmurou, realmente arrependido.

— São apenas palavras. – o amante respondeu, seco.

— Não posso fazer mais nada! – Luciano reagiu, olhando o loiro se sentar pesadamente.

O olhar negro faiscou e ele se encolheu.

— Se tem tão poucos recursos, não devia fazer esse tipo de coisa.

A resposta o fez empalidecer.

— Eu nunca fui grande coisa para você, não é? Nada, se comparar com ele. – o ruivo constatou, amargo.

Ricardo o encarou com intensidade.

— Eu me preocupo com ele, sim, mas é com você que eu vivo, durmo e divido as coisas. Para mim é simples e totalmente descomplicado. Infelizmente, você o vê como um inimigo e eu gostaria muito de saber se já te dei motivos para desconfiar de mim.

Luciano arregalou os olhos – O quê?

— Para você reagir a ele sempre assim, eu devo ter feito ou dito algo. Não dá para ter tanto ciúme do nada, pelo menos eu acredito nisso. – o detetive soou calmo, mas o olhar dele se estreitou.

O ruivo desviou os olhos, respirando fundo.

— O que eu fiz, Luciano? Fiquei comparando vocês dois? Te chamei pelo nome dele enquanto a gente estava na cama? Deixei você de lado e corri para ele no meio da noite por causa de um telefonema histérico? Comprei para ele algo mais caro do que para você? Esqueci seu aniversário ou...

Ricardo parou ao ver Luciano colocar a mão no rosto, consternado. Por mais que não gostasse de pressionar tanto o outro, aquilo tinha que parar.

— E não adianta você dizer que foi ele, porque o cara só tem olhos para o Liam. Ele não sente desejo, não escuta cantadas ou nada fora do marido e você sabe disso tão bem quanto eu. – o loiro continuou, depois de alguns minutos – Eu não sei o que a gente fez, mas acho que precisa resolver isso logo, antes que aconteça alguma coisa que não vai dar para consertar. – com um suspiro diante da falta de reação do pequeno amante, o detetive se levantou – Vou trabalhar e te vejo mais tarde.

Acrescentou algumas notas ao dinheiro de Gabriel e saiu, lançando ao homem sentado um olhar cansado. Luciano não ergueu a cabeça nem esboçou qualquer gesto para impedir o amante de ir embora.

****

Gabriel entrou na sede da empresa se sentindo estranho. Era o mesmo lugar, com a mesma decoração, mas ainda assim, completamente diferente. As pessoas apressadas e com expressões graves também eram diferentes, mais solenes.

Com um suspiro, se aproximou da imensa recepção. A mulher o encarou e sorriu, com um brilho estranho no olhar.

— Posso ajudar? – perguntou, solícita.

Até demais.

— Liam Lucerna, por favor. – ele pediu, vendo o olhar dela mudar ainda mais.

— Seu nome, por favor...

— Gabriel Levi.

Por um momento, ele achou que a mulher ia desmaiar. A outra recepcionista o olhou, espantada.

— “O” Gabriel? – perguntou, sem conseguir se conter.

— Esse é meu nome. – ele respondeu, sério.

A velha barreira ergueu-se imediatamente. Não gostava muito de aproximação forçada. Ao ver que as duas o encaravam com o olhar arregalado, ele suspirou.

— Ele não está?  Ok, ligo depois. – sem esperar resposta, se virou e encaminhou-se para a saída.

Um homem moreno de terno esbarrou nele e imediatamente pediu desculpas, constrangido.

— Tudo bem. – o loiro respondeu, ajeitando a franja.

O moreninho o encarou com um olhar estranho e sorriu, mostrando as covinhas nas bochechas. Gabriel sorriu de leve em resposta, mas ainda assim deu um passo para trás.

— Sou Carlos Brandão, prazer. – o advogado se apresentou, num impulso.

O outro corou um pouco, envergonhado, mas se curvou levemente em resposta.

— Gabriel Levi. – murmurou, educado.

Carlos encarou o homem com assombro e Gabriel se mexeu, inquieto.

— Desculpe... – o loiro murmurou, antes de automaticamente se afastar mais.

— Eu que peço desculpas. Sempre imaginei você diferente...

O loiro piscou confuso e o advogado sacudiu a cabeça.

— Meu namorado sempre diz que sou confuso, às vezes. Desculpe por te embaraçar. – explicou, encarando o outro – Eu sou o advogado do Liam e por isso disse que sempre te imaginei diferente.

— Nunca viu uma foto minha? – perguntou, curioso.

— Já, mas foi antes da tragédia – a voz soou baixa e clara. – Sempre pensei que você devia estar diferente de antes, e está mesmo.

— Não entendi.

A franqueza de Gabriel fez o outro sorrir de novo.

— Posso te convidar para subir e tomar um chá? – ao ver o olhar do outro, negou com a cabeça – Sou um advogado, não um monstro ou um tarado pervertido.

— Não, não é um monstro ou um tarado – o loiro concordou, com a voz rouca – É apenas o homem que me trancou como louco, tirou minha empresa e depois, defendeu o assassino do meu filho. Sei quem é, Carlos Brandão. – o olhar castanho cintilou – E não sei se gosto de você.

Carlos empalideceu, atingido. O moreninho desviou os olhos e deixou o sorriso morrer.

— O que fiz com você me assombra a cada dia, Gabriel. – murmurou, sentido – E não posso dizer que estava apenas cumprindo ordens de Liam... eu estava, mas não precisava ter agido como um cego o tempo todo. – encolheu os ombros, envergonhado.

— Chá de quê?

A pergunta o fez encarar o outro, assombrado. Gabriel elevou uma sobrancelha.

— De ervas, eu acho... – o moreninho murmurou, confuso – Mas eu posso...

— Pode trocar por coca cola?

Carlos sorriu, aliviado.

“Liam deve ficar louco com esse tipo de coisa.” pensou, solidário ao moreno.

— Posso. – respondeu. – Vamos?

Gabriel fez um monte de perguntas e cismou que queria pegar uma pedra branca do vaso de plantas na entrada do quinto andar. Ele e o segurança observaram o loiro simplesmente pular o vidro e calmamente escorregar pelo aparador até o que queria. O homem belíssimo chamou a atenção das pessoas, apesar da presença de Carlos assegurar o mínimo de privacidade.

Com assombro e admiração, o advogado observou o outro pegar a desejada pedra e subir de novo, ágil e leve como se fizesse isso todos os dias. Não dava para negar que o loiro era explosão pura de beleza e sedução, com o agravante de uma expressão vulnerável e inocente. Quando Gabriel pousou suavemente no chão à frente dele, com um sorriso estonteante ao mostrar a pedra, Carlos entendeu porque nada para Liam era mais importante.

— É de verdade? – ele perguntou, encarando a pedra na mão – É leve...

O loiro riu, divertido, e Carlos não pode deixar de rir com ele. O segurança estava pasmo ao lado dele e algumas pessoas, paradas no corredor observando a cena.

— Venha, ou seu marido vai arrancar minha cabeça – o moreninho o puxou levemente pelo braço, guiando-o.

— Pensei que íamos tomar coca cola... – Gabriel reclamou, franzindo a testa.

Carlos deu um tapa na própria testa e virou o caminho, fazendo o loiro rir mais abertamente.

— Carlos, mas o que está... – Liam entrou na sala do advogado sem bater, parando logo em seguida.

Gabriel estava sentado à moda indiana no tapete, cercado por peças de mahjong e encarando outras juntas com atenção exagerada.

— Mas porque você está ai... – o loiro reclamou, inconformado – Quero que saia... Eu quero essa florzinha que está embaixo de você...

O moreno franziu a testa e levou algum tempo para entender que ele estava falando com as peças. Quando tirou os olhos do marido, percebeu o olhar divertido do advogado.

— Eu também estranhei. Ele briga com as peças o tempo todo. – comentou, com um sorriso – Ele disse que elas o estão atacando em bando.

Liam sorriu e cruzou os braços, absorvendo a cena. Gabriel bufou e pegou a coca cola, fazendo biquinho para segurar o canudo. Quando o loiro ergueu a cabeça, viu o marido e este elevou uma sobrancelha.

— Motim? – o moreno perguntou, divertido.

— Liam!

Gabriel se levantou de um pulo, largando a coca no chão. No segundo seguinte, Liam estava com o marido nos braços, quase sem acreditar. O mais velho só teve tempo para se firmar no chão ou os dois cairiam pesadamente. Carlos sorriu ao ver a cena.

— Você não veio me defender! – o loiro reclamou se afastando um pouco, mas sem soltar o moreno – Elas estão fazendo greve! Vem ver!

Descendo do colo do mais velho, Gabriel ajoelhou-se no chão e mostrou as peças. Indicou uma com uma expressão desalentada.

— Se essa teimosa não sair daqui, vou perder... – reclamou, exasperado.

Liam observou o jogo e então, pegou a peça e pôs no bolso.

— Pronto, ela foi seqüestrada.

Gabriel arregalou os olhos e encarou Carlos. – Ele pode fazer isso?

O moreninho riu do jeito dos dois e encolheu os ombros.

— Acho que pode, ele é grande. – respondeu, divertido.

O loiro encarou o marido por algum tempo e então, se atirou nele de novo.

— Meu herói!

Como Liam não esperava outro ataque, ambos caíram no chão e Carlos imediatamente percebeu a mudança no clima. Os dois ficaram se olhando, alheios a tudo ao redor. Silenciosamente, o advogado saiu da sala e fechou a porta que o moreno deixou aberta.

Diante do olhar da secretária, encolheu os ombros.

— Não passe nenhuma ligação, por favor. – explicou, um pouco sem jeito.

A mulher sorriu, compreensiva.

— Eles formam um belo casal. – comentou, neutra.

Carlos encarou a porta fechada com um sorriso triste.

— Formam, sim.

****

Nenhum dos dois podia dizer quem começou o beijo, mas logo as roupas já estavam incomodando. Liam ainda pensou que não era certo que tivesse a primeira vez com o marido no chão da sala de Carlos, mas não conseguiu pensar por muito tempo. Estava faminto.

O gosto, o cheiro e a maciez da pele de Gabriel eram únicos. O moreno voltou a pensar que não era comum um homem ter o corpo tão macio quanto o marido, mas logo esse pensamento sumiu, junto com todos os outros. Abraçou e beijou o loiro, acariciando e provocando a excitação do marido até que ele também não conseguisse mais pensar.

Nenhum dos dois queria pensar.

****

Luciano elevou uma sobrancelha ao ver Carlos sentado no sofá de sua sala de espera. O moreninho encolheu os ombros.

— Fui despejado, posso ficar um pouco com você? – perguntou, envergonhado.

— O que aconteceu? – o ruivo abriu a porta da sala e entrou, indicando ao amigo que fizesse o mesmo.

— Liam e Gabriel estão na minha sala, namorando.

A explicação fez o pequeno parar e encarar o advogado. Carlos sorriu de leve.

— Tem certeza que estão namorando? – perguntou, depois de algum tempo.

— Liam pegou a peça e colocou no bolso então, Gabriel pulou nele dizendo que era seu herói. Antes já tinha pulado no colo dele, mas os dois acabaram caindo e... – o moreninho se jogou na poltrona e suspirou – Se aquele fogo todo no olhar deles não era anúncio de namoro, eu não sei mais o que pode ser.

— Peça? – Luciano perguntou, confuso.

— É... Liam defendeu o Gabriel de um motim das pedras de mahjong. – Carlos respondeu e então, trocou um olhar com o psiquiatra.

Luciano respirou fundo e encarou o amigo.

— Acho que vai ter que explicar melhor...

*****

Liam se deixou cair sobre Gabriel, tão ofegante quanto ele. Abriu a boca e puxou o ar, tentando acalmar as batidas loucas do coração e apertou o corpo quente contra si, sentindo-o estremecer.

— Te machuquei? – perguntou, preocupado.

Gabriel demorou um pouco para responder. – Um pouco...

O moreno sentiu uma pontada no peito, mas antes que pudesse reagir, o loiro riu baixinho.

— Eu tinha esquecido o quão grande você é... – murmurou.

O moreno tece a decência de corar, apertando de leve o marido.

— Então acho que não devo pedir desculpas por isso. – comentou, com um sorriso.

— Para mim, não... mas para o Carlos... – o loiro se virou no abraço, franzindo a testa ao sentir a pontada no corpo.

— Te machuquei sim. – Liam constatou, atento às reações do outro.

O loiro sorriu, molhando e mordendo o lábio. O moreno estreitou os olhos diante da cena e até tentou, mas não resistiu e abaixou a cabeça, tomando a boca de Gabriel num beijo, prontamente correspondido.

Depois do beijo, ficaram abraçados no chão, exaustos. Depois de algum tempo, o loiro riu, divertido. Liam ergueu a cabeça e o encarou, confuso.

— Como vamos fazer para sair daqui com um mínimo de dignidade? – perguntou, ainda sorrindo.

O moreno demorou um tempo para entender do que ele estava falando e então, encolheu os ombros.

— Ele tem um banheiro privativo e além de amassadas, nossas roupas estão ok. – respondeu, separando-se de Gabriel e se erguendo, apesar de não querer.

Liam riu do constrangimento do marido e o abraçou por trás, guiando-os para o banheiro. Apesar da vergonha, o loiro não reclamou.

****

Luciano abriu a porta e observou Gabriel por um tempo. O loiro estava absorto no jogo, como sempre. Com um olhar estranho, o psiquiatra entrou e fechou a porta devagar, encarando o outro com atenção.

Com um sorriso maldoso, simplesmente se aproximou e chutou algumas peças, assustando Gabriel.

— Você não tem mais nada o que fazer, não? – o ruivo perguntou, sentando-se no sofá e encarando o outro com um olhar cheio de desdém.

Gabriel elevou uma sobrancelha, mas antes que respondesse, o psiquiatra atacou.

— Eu sempre me pergunto como consegue ser tão traidor... – diante do olhar surpreso do loiro, sorriu com desprezo – Fica aí agindo normalmente, como se não fosse o culpado de tudo...

— Eu não entendo... – Gabriel começou, mas foi prontamente interrompido.

— Para alguém que levantou uma empresa, você é muito burro. Estou falando do fato de você trepar com o Liam como se seu filho não tivesse morrido por sua causa.

Gabriel empalideceu, atingido, mas Luciano não se importou.

— Foi tudo sua culpa... – acusou, apoiando os antebraços nas coxas e encarando o outro com o olhar intenso – Antes que aparecesse, tudo estava bem... mas depois que entrou na vida do Liam, destruiu tudo... foi você que fez Rico enlouquecer... foi por sua causa... você trouxe seu filho idiota...

A menção a Dalton fez Gabriel se levantar, confuso.

— Luciano... eu não fiz... – a tentativa de defesa apenas atiçou a raiva do ruivo.

— Eles eram felizes. Nós éramos felizes antes de você chegar e eu nunca o forçaria a contar para todo mundo, como você fez. – a risada saiu debochada – Você não sabia, não é? Não sabia que ele e eu tínhamos um relacionamento e ele me largou para ficar com você.

Gabriel piscou, franzindo a testa. A aversão do pequeno estava explicada, mas não totalmente. O loiro percebeu a raiva e a inveja do outro, mas não teve tempo de se proteger dos ataques.

— E depois que você me tirou ele, você também fez Ricardo se importar com você... Você e seus malditos ataques... como se fosse uma mulherzinha frágil e delicada, manipulando tudo ao redor... – a raiva transbordou das palavras e Luciano se aproximou, com o olhar faiscando – Eu te odeio por me tirar os homens que eu amo, bancando o trouxa que não sabe se defender.

Gabriel recuou, chocado, mas o psiquiatra não se deu por vencido.

— Rico era normal e gostava de mim. Eu e ele estávamos esperando que Liam estivesse pronto para um compromisso mais sério, mas aí você apareceu e estragou tudo... você o enfeitiçou, como fez com Ricardo... – as palavras saíram com veneno e o sorriso, debochado – Ele estava bem até você voltar, agindo como criança – olhou com desprezo para o jogo espalhado – Liam não estava sentindo sua falta, estava com outras mulheres... dormiu com elas...

O ruivo andou de um lado para outro, gesticulando, por algum tempo e então parou, apontando um dedo acusador para o loiro.

— Se Liam tivesse ficado comigo, Rico não teria se tornado um assassino e tudo estaria bem. – o olhar duro fez Gabriel arfar, enchendo seus olhos de água – Você e seu filho deixando todo mundo louco... mas eu sei que você não presta, como seu filho não prestava. Ele atiçou Rico e depois, largou ele como se não fosse nada... a culpa foi dele e sua. – o tom de voz aumentou e Luciano se aproximou, fazendo o loiro recuar, negando com a cabeça – Sua culpa! Você não tinha nada que ter voltado! Devia ter ficado no inferno onde estava!

— NÃO!

Desesperado, Gabriel tentou sair, mas Luciano atravessou na frente, acusando-o. O loiro começou a chorar, sem conseguir se defender e, transtornado pelas acusações, olhou em volta e reagiu. Sem parecer ver à sua frente, simplesmente correu e se jogou pela janela, quebrando o vidro com a força do próprio corpo. Luciano abriu a boca, chocado, e não se deu conta do borrão que passou por ele correndo.

Carlos segurou o pulso de Gabriel no último segundo, sentindo um puxão no músculo. Ao se sentir preso, o loiro se debateu, tentando se soltar.

Alheio a tudo, Carlos tentou não olhar para além de Gabriel e se concentrar em não deixá-lo cair.

— Gabriel, pára! Pára! – pediu, assustado – Por favor, me escuta... – ele piscou e franziu a testa, sentindo o vidro ainda preso na armação onde segurou entrar em sua pele – Por favor... não faz isso... me deixa te subir...

— A culpa é minha... – a voz soou baixa e tremida, falhando por causa do vento – Eu fiz tudo... eu matei ele...

Um novo solavanco fez Carlos gritar de dor, sentindo o músculo se estirar com o esforço.

— Gabriel, você não é culpado... me escuta... é mentira do Luciano... ele está com inveja de você... com ciúme... – o advogado respirou fundo, ouvindo o coração bater na cabeça – Não foi sua culpa, Rico não se tornou um assassino por sua culpa e sim porque não soube aceitar um não como resposta... Sério, cara... se você cair, vou cair junto e Liam vai acabar morrendo também... ele não é capaz de ficar sem você... Ele realmente saiu com algumas mulheres... mas ele não se importava com elas... ele te ama, nunca deixou de te amar com desespero...

Depois de alguns minutos, Carlos notou que o outro não estava mais se debatendo e respirou fundo, aliviado.

— Eu não vou te soltar, Gabriel. Não vou deixar você ir... não posso fazer isso... com nenhum de vocês dois... Agora ele sorri, ele brinca... ele foge das reuniões... – riu baixinho, à beira do desespero – Eu vou te puxar, não consigo mais te segurar...

Com cuidado, Carlos tentou erguê-lo mais não conseguiu de primeira. Gabriel era menor e mais leve, mas ainda assim a posição não ajudou muito, além do esforço que estava fazendo para segura-lo. Respirou fundo e tentou de novo, aliviado quando sentiu os braços dele em seu pescoço.

Assim que o teve nos braços, rastejou para trás, tirando ambos da beira da janela. O moreninho apertou Gabriel nos braços, desejando poder simplesmente chorar, como ele estava fazendo. Escondeu o rosto no cabelo dele, assustado e penalizado.

— Nada foi sua culpa... – murmurou no ouvido do recente amigo – Vocês dois merecem ser felizes... Dalton está vivo através de você, Gabriel. Liam me disse que são muito parecidos e ele tinha muito orgulho de você... Não pense em destruir o que sobrou dele... nenhum de nós ia agüentar perder os dois.

Gabriel se agarrou a ele, chorando e Carlos mordeu o lábio para não segui-lo. Um toque em seu ombro fez com que erguesse a cabeça, sentindo o coração pesar. Liam estava branco, totalmente exangue, respirando com dificuldade e encarando os dois com os olhos cheios de lágrimas, vidrados.

— Seu marido está aqui, Gabriel. – o moreninho afastou o outro de si, com um sorriso tranqüilizador – Acho que deve ter perdido uns dez anos de vida, só agora... – gracejou, ignorando o terror nos olhos do mais velho.

O rosto do loiro estava com alguns cortes e sangue, além das lágrimas. Carlos olhou para Liam, percebendo que ele estava sem coragem de se aproximar mais.

— Pegue-o e o leve para casa. – orientou, já controlado – Eu organizo as coisas por aqui.

— Estão feridos? – finalmente a voz do moreno soou, baixa e rouca pela tensão.

— Nada que um bom banho e sono não resolvam. – o advogado respondeu, ignorando a dor no ombro. Assim que Liam pegou Gabriel de seu colo, puxou de leve a manga dele – Não o deixe sozinho.

Gabriel não protestou ao ser levado pelo marido no colo, diante das pessoas. Na verdade, o mais velho podia apostar que ele não estava vendo nada daquilo, perdido em pensamentos.

— Dr. Brandão... – um segurança se aproximou, preocupado.

— Vou passar na enfermaria, não se preocupe. – o advogado garantiu, olhando em volta e segurando o braço latejante, só então olhou para a mão e notou o corte e o sangue – Estela, dê uma olhada nos papéis que estão por aqui ainda e confira o que está faltando. Não acho que muita coisa tenha se perdido, mas nunca se sabe...  Costello, providencie a troca desse vidro e a limpeza da sala. – respirou fundo e encarou as pessoas – Quero também que percebam que esse fato foi muito desagradável e não deve ser comentado com ninguém. Conto com a discrição de vocês.

Assim que as pessoas saíram para cumprir as ordens, Carlos notou que Luciano ainda estava na sala, grudado à parede ainda pálido, com os olhos arregalados. O olhar severo do advogado o arrancou da letargia.

— Nunca pensei que ele pudesse... – murmurou, chocado – Nunca achei que...

— Eu ouvi tudo, Luciano. Demorei a reagir por que não podia acreditar no que estava dizendo a ele... – a voz do moreninho soou gelada e o psiquiatra se encolheu – Então essa é a causa de toda essa raiva e aversão... – seu olhar se encheu de desprezo.

— Perdi a cabeça, Carlos... Eu não estava pensando... – Luciano se deixou cair no sofá, escondendo o rosto com as mãos – Meu Deus!

— Essa é a desculpa que vai dar para Liam e Ricardo?

A pergunta o fez pular do sofá, assustado. O olhar do moreninho não tinha um pingo de compaixão.

— Gabriel quebrou o vidro da janela e pulou para morrer, Luciano. – o ruivo se encolheu, culpado – Ele não pensou em nada a não ser fugir de suas acusações e talvez, tudo o que Liam conquistou até agora com ele tenha se perdido por causa do que você fez. Eu não vou esconder isso e não vou deixar você nem tentar. Se você não contar, eu conto.

Sem esperar resposta, Carlos deixou a sala e Luciano voltou a sentar-se. A sala estava uma bagunça, com peças de majhong, papéis e vidro quebrado espalhados pelo chão. O vento frio estava entrando sem barreiras, gelando o ambiente.

Sentindo-se mais uma vez idiota, culpou-se. Não adiantava mais repetir a si mesmo todas as frases feitas que criou para justificar suas atitudes e nem mascarar suas intenções, como cansou de fazer antes. A verdade era uma só, no fim de tudo. Ele estava com ciúme de Liam e diferente do moreno, não superou o fim do relacionamento. Sabia que o ex amante não estava tão envolvido quanto ele mesmo e por isso, colocou uma boa dose de mentira nas palavras que jogou para Gabriel. Sempre quis pensar que a relação foi importante e que talvez, se o loiro nunca tivesse aparecido, as coisas pudessem ter sido diferentes.

****

Gabriel abriu os olhos e encarou o teto sem realmente vê-lo. Piscou e respirou fundo, passando a mão pelo rosto. Arrependeu-se no segundo seguinte, estremecendo quando a dor se espalhou.

Depois de alguns minutos, sentou-se, olhando em volta. Seu olhar parou no moreno sentado à mesa, quase de costas para si. Ele estava com um cigarro aceso, mas não estava fumando e sim, encarando a fumaça do cigarro, com a cabeça apoiada na mão.

O loiro sentiu-se pesado e comprimiu os lábios. Depois de alguns minutos, levantou-se e se encaminhou para o marido.

— Isso tem que parar. – murmurou, tirando o cigarro da mão do moreno.

O mais velho ergueu a cabeça e o encarou, fazendo Gabriel engolir seco diante da angústia no olhar dele. Ignorando o medo e todos os outros sentimentos, o loiro abriu a pasta e passou rapidamente as folhas plásticas, parando no envelope amarelo. Sentiu mais do que ouviu Liam se mexer ao lado dele, mas ignorou também. Com um gesto decidido, rasgou o lacre e abriu a carta.

A folha delicada, coberta com a caligrafia elegante de Rico, pareceu queimar a mão de Gabriel, mas ele simplesmente mordeu o lábio e sentou-se, esperando o marido voltar a fazer o mesmo.

 - Papai – a voz do loiro tremeu um pouco e ele engasgou, tendo que respirar fundo para conseguir continuar – Eu pensei muito em uma forma de contar a você tudo o que fui capaz de fazer, e precisei de toda a coragem que eu tenho para pedir perdão.

O silêncio caiu entre os dois, pesado.

— As pessoas têm razão quando dizem que sou um monstro. Eu realmente me sinto assim e por isso eu tomei essa decisão. Luciano está certo, eu quero realmente morrer. – o loiro parou, perto do descontrole e só o calor da mão do marido em seu braço o fez continuar – No começo, eu não percebi que tinha me apaixonado, mas depois não tinha mais como eu dizer que não. E eu quis fazer parar, quis controlar. Não consegui.

O silêncio no galpão quase podia ser tocado, mas nenhum dos dois se mexeu.

— Eu quis que fosse embora, quis que nos deixasse em paz. De uma forma distorcida, eu pensei que se você estivesse longe, nada daquilo que assombrava minhas noites podia ser verdade. Eu quis te machucar tanto quanto eu estava e assim, tornei a nossa vida um inferno. Achei que com o tempo eu poderia voltar a dormir ou comer. Estava enganado. Eu estava enganado quanto a muitas coisas. Machucar Dalton não o tirou do meu caminho, não me fez deixar de querê-lo com loucura e não me fez ficar melhor. Machucar e isolar você não me trouxe paz nem me fez esquecer. Além disso, meu pai está sofrendo muito. – o loiro engoliu seco – Ele tenta parecer forte, mas sei que chora escondido, está emagrecendo ainda mais e quase não dorme, atormentado. Ele não é mais capaz de perceber nada ao redor, e nem as tentativas de sedução do Luciano surtiram efeito. Nada é capaz de despertar emoção nele, agora. Ele me escolheu e eu não sou digno. Eu sou o único culpado.

Liam olhou do perfil do marido para a folha em suas mãos. Quase podia ver o filho escrevendo aquelas palavras e aquilo doeu. Pelo jeito, o pesadelo nunca ia terminar.

— Depois de um tempo, eu soube que nunca seria livre. Nunca esqueceria o que fiz, nunca deixaria de sentir culpa e nunca deixaria de ter pesadelos. Eu não podia voltar atrás, mas entendi que precisava, que queria ir atrás de Dalton. Mesmo que eu não fosse para o mesmo lugar que ele, eu queria estar do outro lado. – a voz de Gabriel falhou de novo e Liam esperou que ele se controlasse – Então percebi que tinha que desfazer o que fiz. Eu tinha que deixar meu pai saber o que tinha feito e sabia que nada ia doer tanto, mas de um modo estranho, fiquei aliviado depois que decidi. Eu postei o vídeo e fui preso. Eu sabia que ia ser condenado e não podia deixar meu pai sofrer mais. Eu fingi desprezo por tudo e todos, fingi não me importar e debochei de todo mundo no tribunal. Eu quis que meu pai me odiasse, como você certamente me odeia. Eu não queria que ele sentisse minha morte e não ficasse tão triste, mas acima de tudo, eu queria que ele fosse atrás de você.

Liam piscou, chocado e Gabriel respirou fundo.

— Eu sei que foram feitos um para o outro. Eu vi isso claramente ao conviver com vocês dois e sinto muito por ter deixado que meus sentimentos se transformassem em obsessão e destruíssem tudo. Na tentativa de negar o que eu senti por Dalton, acabei perdendo o controle e machucando as pessoas mais importantes da minha vida. Eu não consegui aceitar que ele não pudesse ser meu como você era do meu pai, e deixei que minha arrogância e meu desejo ofuscassem todo o resto. Sei que é difícil, papai, mas peço que me perdoe. – as lágrimas escorreram pelo rosto marcado, fazendo Gabriel se encolher com o ardor, sem contudo conseguir parar. Liam se levantou e o abraçou por trás, dando-lhe forças – Preciso do perdão de vocês três. Se puder, quando já estiverem juntos abraçados como sempre ficavam, eu quero que mostre a ele essa carta. Diga que eu me arrependi e que sinto muito.

Gabriel se recostou ao marido, engolindo com muito custo o desespero.

— Já está perto a data da minha execução, mas não estou com medo. Eu tive uma vida boa e um pai maravilhoso. Depois fui agraciado com vocês dois, duas criaturas incríveis e apaixonantes, que nos completaram. Os Lucerna são melhores depois que os Levi se uniram a nós e tarde da noite, sozinho na minha cela, eu penso em nós quatro. Uma lembrança especial sempre me consola e aquece. Lembra do dia que meu pai surtou que só tinha homem em casa? E quando nós chegamos, encontramos você e Dalton de quimono, como gueixas... foi a melhor noite da nossa vida, papai. Sinto saudade do seu carinho e me arrependo muito de ter te machucado tanto. Por favor, me perdoe. Eu amo vocês.

Liam apertou Gabriel, que soltou a carta sobre a mesa e segurou as mãos do marido. Nenhum dos dois disse nada por um longo tempo e então, o moreno se afastou. Como que combinados, ambos limparam o rosto e o mais velho de dirigiu à geladeira, enquanto o loiro dobrou e guardou a carta novamente, com um cuidado exagerado.

Ficou olhando para a pasta até que Liam pusesse uma lata de refrigerante na sua frente.

— Obrigado. – a voz saiu baixa e sem inflexão.

O mais velho se sentou e abriu a sua lata, olhando fixamente para ela e Gabriel encostou a sua no pescoço, depois de tomar um pouco.

— Eu me lembro que fiz sexo com ele. – o moreno começou baixo, sem olhar o marido – Mas não me lembro como foi. Depois da faculdade, e depois que fiquei viúvo. Quando estávamos os dois sozinhos e batia a solidão... mas nunca pensei que ele encarasse isso como um compromisso. Nunca foi para mim e achei que tinha deixado isso claro.

Gabriel olhou para ele, sem demonstrar surpresa por ele ter escolhido outro assunto.

— Eu nem sabia que se conheciam antes. – comentou, seco.

— Para você ver como foi importante. – o outro rebateu, tomando o refrigerante.

— O que aconteceu? – apesar de ter uma leve idéia, o loiro realmente queria saber.

— Carlos não deixou Luciano escapar e depois de sair da enfermaria... – parou diante do olhar assustado do marido e simplesmente encolheu os ombros – Ele cortou a mão e deslocou o ombro, mas está bem. Felipe o levou para casa e está cuidando dele.

O loiro empalideceu ao se lembrar de tudo e voltou o olhar para a lata. Liam o observou com atenção.

— Depois que soubemos de tudo, não podia mais aceitar que ele ficasse na empresa e ele mesmo aceitou tudo. – o mais velho continuou a explicação, baixinho. – Eu não vi, mas sei que Carlos ligou para Ricardo.

Gabriel riu sem humor.

— As pessoas complicam tanto as coisas... – sacudiu a cabeça, tomando seu refrigerante.

Liam o olhou, esperando o resto do pensamento e Gabriel devolveu o olhar, encolhendo os ombros.

— Rico quis algo que não podia ter, por mais que tentasse e Luciano também. No caso dele, desprezou um cara legal como o Ricardo, fixado demais em você sequer para considerar a possibilidade. Rico podia ter os homens e mulheres que quisesse, mas também se fixou em algo impossível. Será que não dava para deixar para lá?

O mais velho ficou encarando o marido, pesando suas palavras e então, anuiu.

— Concordo com você. Eles não teriam problemas se deixassem para lá. – disse, cansado.

— Pelo menos esses problemas. – Gabriel acrescentou, sério.

— Sabe o que eu acho de verdade? – Liam perguntou, depois de algum tempo e o loiro olhou para ele, segurando a lata perto da boca – Que também devíamos deixar para lá.

Gabriel terminou o refrigerante e colocou a lata cuidadosamente sobre a mesa. Liam não perdeu um só movimento, ainda segurando a sua.

— Se você tivesse caído, Carlos também teria. Ele nunca ia te soltar, assim como eu ou Ricardo. Sei que deve ter doído tanto ouvir aquelas coisas que você não pensou em nada, mas eu queria que tivesse se lembrado de mim. O que acha que eu faria depois?

O loiro se encolheu diante da dor na voz do marido, e não disse nada. O mais velho se mexeu, inquieto.

— Não sei explicar o que senti quando me disseram que estava acontecendo algo errado. Eu já estava voltando para a sala quando os seguranças passaram correndo por mim. Quando desci, encontrei com Carlos que estava subindo e avisei que você estava jogando de novo. Ele riu e disse que ia dar uma olhada para ver se não tinha motim de novo – o moreno sorriu de leve – E eu disse: Vai lá! – depois de uma pausa, o moreno encarou o marido novamente – Fico pensando que se ele não tivesse ido direto...

— O que sentiu quando pensou que pudesse ser o culpado de eu ter morrido? – Gabriel perguntou, subitamente.

Liam o olhou, estreitando levemente os olhos.

— Quando soube que Luciano disse aquelas coisas e que eu fiquei transtornado demais e me joguei pela janela, o que sentiu? – o loiro tornou a perguntar, virando-se totalmente para o marido e esquecendo a lata sobre a mesa.

Gabriel e Liam se encararam e o moreno percebeu o motivo da pergunta. Luciano atacou o marido por sua causa e na hora, sentiu tanta culpa que podia facilmente tê-lo seguido pela janela. Não pensou que Luciano exagerou bastante no que contou nem que nunca teve importância, apenas se sentiu culpado por causar dor ao loiro.

— Eu podia ter pulado depois de você. – respondeu, exausto.

— Acho que você tem razão. – Gabriel disse depois de algum tempo – Devíamos deixar isso para lá, antes que um de nós cometa alguma tolice. Nada do que fizermos vai adiantar alguma coisa ou causar algo que não problemas.

Com um suspiro, procurou a lata e tomou o resto do refrigerante e se ergueu, pegando a lata vazia do moreno. Liam o observou se afastar e jogar as latas no lixo, quando ele se virou e o encarou.

— Rico conseguiu o que queria? – perguntou, inclinando levemente a cabeça. Ao ver a expressão confusa do marido, encolheu os ombros – Te fazer odiar ele.

— Não.

A resposta, imediata e segura, fez Gabriel sorrir de leve.

— Bom saber.

— Problema para você? – o moreno perguntou, subitamente tenso.

— Não. – o loiro respondeu, tirando o cabelo do rosto – Não consigo entender como ele achou que podia dar certo.

— Você ainda o odeia? – a pergunta saiu e o moreno se arrependeu imediatamente de tê-la feito. Não sabia o que sentiria se Gabriel lhe dissesse que não podia perdoar o filho.

O loiro respirou fundo e deu alguns passos, parando e passando a mão pelo pescoço.

— Eu odiei. Muito e por muito tempo. Eu realmente queria matá-lo quando atirei nele. – a segurança na voz do marido fez Liam se sentir pesado – Quando ele foi condenado, eu ri porque ele não iria passar pelo pesadelo que causou a meu filho, mas era a justiça que me ofereciam, depois de tudo. Depois que ele morreu, eu fiquei cansado. Cansado de sempre sentir raiva... raiva das lembranças e culpa por que eu estava lá e não vi que Dalton corria perigo... raiva por ainda te amar tanto e saber que nunca poderia simplesmente seguir em frente... Estava cansado, Liam. – o olhar que Gabriel lançou ao marido estava exausto – e ainda estou.

— Eu te amo.

A declaração saiu simples e sem floreio e Gabriel sorriu, vendo a sinceridade do marido.

— Também te amo.

Liam se levantou e deu a volta na mesa, tomando o marido nos braços. O loiro se recostou, aproveitando o calor e a segurança do mais velho. Não choraram mais, exaustos de tantos sentimentos.

****

Luciano entrou no apartamento silencioso segurando a caixa, que deixou sobre o sofá. O silêncio e a escuridão o fizeram sorrir, triste. Não estava surpreso, depois de tudo.

Cansado, sentou-se no sofá e encarou o nada, lembrando-se sem querer das últimas horas. Carlos não o deixou sequer respirar e num confronto que não se esqueceria, o fez admitir tudo na frente de Liam e Ricardo. O moreno ficou surpreso e enfurecido, contrastando com a raiva resignada de Ricardo. O detetive o encarou com um olhar cheio de mágoa e simplesmente virou as costas, saindo do prédio e com toda a certeza, de sua vida também.

Apesar dele não ter sido um substituto para o moreno, Luciano sabia que não podia afirmar que não era. Amava o loiro, apesar de ter que admitir que não como era amado. Por mais que não quisesse, Liam ainda era o dono de seus sentimentos mais fortes.

O moreno não aceitou desculpas ou explicações e deixou claro que seu delírio era um vôo solo, sem qualquer incentivo de sua parte. Apenas algumas horas depois, não se surpreendeu quando Carlos entrou em sua sala e lhe comunicou seu afastamento.

A mão enfaixada do advogado fez seu estômago afundar quando pensou no que poderia acontecer se ele não tivesse chegado a tempo. Na hora, não pensou que pudesse ser acusado de provocar o suicídio de Gabriel, mas depois se chutou por agir tão insensatamente. Mesmo que não fosse sua intenção, as pessoas o olharam estranhamente depois que a nova secretária do moreno contou que ele não deixou que ela o anunciasse mesmo sendo informado que o loiro estava sozinho.

Se Marta ainda fosse a secretária de Liam, talvez até pudesse ter saído ileso, mas a demissão sumária da fiel e manipulável antiga secretária não lhe mostrou o perigo de tentar qualquer coisa contra Gabriel. Ele ignorou todos os avisos.

Com um suspiro, deitou a cabeça e encarou o teto. Não precisava ser um gênio para saber que Ricardo não voltaria mais. Ele teve tempo de sobra para tirar todas as coisas do apartamento e apesar de ser dono da metade, o ruivo podia apostar que nunca mais o veria. Liam também estava perdido e Carlos deixou claro que não queria mais contato.

Agora, o banido era ele.

Luciano podia rir de sua ingenuidade. Mesmo antes de Gabriel nunca teve chance com Liam, apesar de serem parceiros de sexo. Por mais que doesse admitir, ele nunca passou disso para o moreno.

E depois de Gabriel, não existiu mais nada para Liam.

****

Depois de colocar flores no túmulo de Dalton, Liam notou o outro buquê nas mãos do marido. Franziu levemente a testa, olhando o outro.

— Onde Rico está?

O mais velho respirou fundo, tenso. Gabriel o encarou e estreitou os olhos.

— Ele está aqui, não é?

Liam apontou de leve o fim do cemitério e encolheu os ombros.

— Não está perto o suficiente para ser um insulto. – murmurou, na defensiva.

— Eu não disse nada. – o loiro rebateu, virando-se para a direção apontada pelo marido – Trouxe essas para ele.

O moreno o acompanhou em silêncio, tentando não pensar nas atitudes do outro. Nunca conseguia saber o que Gabriel faria no momento seguinte e apesar disso ser novo e deixa-lo sempre perdido, sabia que não queria nada diferente.

O loiro encarou a lápide simples quando Liam o segurou pelo braço e a indicou com a cabeça.

— Isso não é certo. – Gabriel murmurou, depois de alguns minutos e Liam o olhou, alarmado, mas antes que dissesse alguma coisa, o loiro o encarou – Os filhos deviam morrer depois dos pais. Isso é doloroso.

Com cuidado, depositou as folhes no vaso vazio e ajeitou cuidadosamente o arranjo. O mais velho respeitosamente deu dois passos para trás, ainda perto o suficiente para qualquer coisa.

— Eu não sei bem o que te dizer, Rico, mas acho que você entende que não posso fazer muita coisa.  – o loiro respirou fundo – Eu queria que nada disso tivesse acontecido e que vocês ainda estivessem com a gente. - Gabriel encarou tristemente a lápide, comprimindo os lábios – Não sei se estão juntos, mas espero mesmo que Dalton tenha te perdoado. É um pouco difícil para mim, já que nunca quis pensar nesse assunto, mas diante do que escreveu, eu não posso fingir que não é importante. Eu não sei se consigo dizer o que espera que eu diga, mas estou tentando. Tenha um pouco de paciência comigo, ok?

Liam se contraiu ao ouvir o marido murmurar baixinho a seu filho e desviou os olhos, mordendo o lábio com força. Gabriel realmente podia ser muito mais do que sequer imaginou e agradecia por isso. Apesar da atrocidade que cometeu, Rico merecia paz, assim como todos eles.

— Vamos? – o toque do loiro o fez se virar e sorrir de leve – Ou quer falar com ele também? Se quiser, posso me afastar...

— Não precisa, falo com ele todos os dias. – o moreno não evitou o olhar do marido.

Gabriel passou o braço pelo do mais velho, rindo baixinho.

— Dalton deve estar com as orelhas fervendo, ele sempre diz que falo muito.

O moreno não se surpreendeu ao ouvir Gabriel se referir a Dalton como se ainda estivesse com eles e quando entraram no carro para irem embora, sentiu-se infinitamente mais leve.

****

Felipe encarou o loiro com curiosidade. A beleza delicada do homem o deixou um pouco constrangido, além do mais, ele era seguido com os olhos para onde fosse e agora, no preciso momento, estava conversando com ele.

A exposição dos trabalhos de Gabriel, no salão nobre da empresa, atraiu muitas pessoas. A maioria das peças já estava vendida e as poucas que sobraram, sendo disputadas lance a lance. O ponto alto foi a apresentação de um jogo de mahjong pintado à mão por ele, feito em pequenos pedaços de bambu. Apesar dos altos preços oferecidos pela peça, Gabriel não deixou que fosse vendida, apenas exposta.

— Acho que vai ter trabalho o resto da vida, com esse interesse todo. – o jovem comentou, olhando em volta.

Gabriel seguiu seu olhar, buscando o marido automaticamente.

— Não é assim para mim. Apesar de atender alguns pedidos antes para pagar as contas, Liam me proibiu de fazer isso de novo. – Felipe olhou para ele, surpreso, e o loiro encolheu os ombros – Segundo as ordens, devo trabalhar quando e se quiser. Quando juntar material suficiente, fazemos outra exposição.

Ambos riram da proteção do mais velho e logo, Carlos se juntou a eles.

— Todas as peças estão vendidas, Gabriel. Sua exposição é um sucesso. – o advogado comemorou, tocando de leve a taça na do loiro.- O que é isso que está bebendo? – perguntou, curioso.

— Coca Cola.

A naturalidade da resposta fez Carlos sorrir, sacudindo a cabeça. Por dias, o loiro evitou sua presença e então, simplesmente invadiu sua sala e pediu coca, espalhando seu jogo no tapete. Os dois ficaram ali a tarde toda, com Gabriel brigando com as peças e ameaçando chamar Liam o tempo todo e Carlos trabalhando ou pelo menos tentando.

— Por que não estou surpreso? – se perguntou, sorrindo.

— Olá!

Os três se viraram e Gabriel abriu um sorriso luminoso, correndo para Ricardo. O detetive o abraçou apertado e foi puxado para o canto onde estavam os outros. Sem que conseguisse explicar, se deu com uma taça na não e sendo bombardeado com perguntas.

— Onde esteve? Onde está morando? Porque não me ligou?

O policial elevou uma sobrancelha, encarando o amigo.

— Calma! Se continuar assim eu não consigo responder. – disse, erguendo uma mão para deter a enxurrada de palavras do loiro – Estive fora, trabalhando. Aluguei um lugar não muito longe do seu apartamento e não te liguei por causa do primeiro motivo, estava trabalhando.

Gabriel inclinou a cabeça e o encarou, com a testa franzida.

— Como sabe onde moro agora? – perguntou e então, se deu um tapa na testa – Acorda, Gabriel! Ele é um tira! – revirando os olhos, tomou o resto de sua bebida.

— O que está bebendo? – Ricardo perguntou, olhando o outro.

— Coca cola. – Gabriel respondeu, divertido.

— Na taça?

O loiro encarou a taça vazia e então, dela para o policial.

— Porque não posso beber coca na taça? – perguntou, confuso.

— Eu não disse que não podia, só achei estranho. – Ricardo encolheu os ombros e olhou em volta – Está cheio aqui. Conseguiu vender muito?

— Vendeu tudo. – Carlos respondeu, com um sorriso satisfeito – E apesar dele não aceitar encomendas, as pessoas estão deixando seus pedidos e cartões.

Ricardo sorriu de leve e Gabriel corou, envergonhado.

— É apenas meu trabalho... – murmurou, sem jeito.

O detetive encarou o amigo e tomou sua bebida, agradecendo estar gelada. Subitamente, ficou sério e Carlos olhou para trás. Liam estava se aproximando, com a expressão fechada.

— Gabriel... aconteceu alguma coisa? – perguntou, preocupado.

O loiro olhou do marido para o amigo e rolou os olhos.

— Vocês parecem criança... – reclamou, baixo – Só estava envergonhado por causa do elogio do Carlos. – explicou, olhando em volta – Como faço para ter mais coca?

Um leve gesto do moreno trouxe um garçom, solícito. Gabriel abriu um sorriso satisfeito e esqueceu os dois. Ricardo cumprimentou de leve e Liam respondeu, ainda mais contido. A muralha, apesar de menor graças a Gabriel, não foi destruída de todo e nenhum dos dois fazia questão disso. A única coisa em comum que tinham era o loiro, e ambos se suportavam pelo bem dele.

— Voltou para ficar? – Liam perguntou, educado.

— Mais ou menos. Tenho um apartamento perto de vocês, mas vou continuar a viajar a trabalho. – o loiro respondeu, tomando sua bebida.

— Pode considerar minha oferta. – o moreno ofereceu, depois de alguns minutos.

Ambos se encararam e o loiro olhou de um para o outro. Carlos e Felipe sentiram a tensão, mas não se afastaram.

— Não ia dar certo trabalhar para você, mas agradeço a oferta. – Ricardo recuou, disposto a ceder por Gabriel.

— Uau! – Felipe murmurou, encolhendo-se.

— A gente nunca sabe se vai explodir a terceira guerra ou se vai dar para voltar para casa. – Gabriel comentou, suspirando – Vem, vou te mostrar meus novos quadros.

Arrastando Ricardo, o loiro lançou um olhar para o marido e se afastou. Liam observou os dois em silêncio.

— Irá matá-los com esse olhar... – Carlos comentou, esbarrando de leve no amigo.

O moreno olhou para ele, sério.

— Ricardo ainda não confia em mim com Gabriel, e não quero dar chance para ele ter razão. – a resposta saiu lacônica.

O policial olhou em volta e assoviou baixinho.

— A vista daqui é linda! – comentou, olhando para a cidade abaixo dele.

— É. – o loiro se aproximou um pouco, mas não muito e olhou para fora – A vista da outra sala era mais bonita, mas Liam não quis voltar a trabalhar lá...

Ricardo tomou um pouco da bebida e se virou, observando o amigo. Gabriel estava olhando para fora, pensativo.

— Está tudo bem entre vocês? – perguntou, baixinho.

Gabriel riu, colocando as mãos nos bolsos.

— Nunca vai estar, mas é tudo o que temos. – respondeu, se afastando. Com displicência, sentou-se na ponta da mesa e encarou o outro loiro – E Luciano, teve notícias dele?

Afastando-se também da janela, o detetive se sentou em uma cadeira e encarou o copo por alguns minutos.

— Sei que ele está bem, mas não o encontrei. – a voz saiu mais fria do que o necessário.

— Ricardo, me sinto mal com isso. – Gabriel comentou, encolhendo os ombros – Talvez se...

O detetive ergueu a cabeça e encarou o amigo.

— Ele ainda ama seu marido e eu fui só um substituto. Até entendo isso e sou capaz de aceitar, mas não por tanto tempo. – ele hesitou e se recostou, olhando para fora pela janela – Eu sabia que existia alguma coisa, mas não pensei que ainda perdurasse. Luciano nunca foi muito o tipo apaixonado e romântico, então não deu para perceber nada.

— Eu não sabia. – o loiro murmurou, sombrio.

Ricardo olhou o amigo e sorriu de leve.

— Tá na cara que Liam não ia contar algo assim para você, como você não contaria se fosse o contrário. Ele te ama demais e não ia querer uma situação se pudesse evitar.

— Devia ter feito, então saberia de onde veio tanta hostilidade. Sem saber onde está a ameaça, como eu poderia me defender?

Os dois se olharam por um momento e então o detetive suspirou.

— Tem razão, é claro, mas é complicado lidar com sentimentos, Gabriel.

O silêncio caiu entre eles e o loiro se encolheu um pouco.

— Ainda o ama muito, não é? – perguntou, baixinho.

— Amo. E é horrível não ter sido capaz de fazê-lo ver isso. – o sorriso veio triste desta vez – Mas eu não vim aqui para esse papo triste. Você está bem e feliz e isso é o importante.

Gabriel sorriu, sem muita vontade.

— Sua felicidade também é importante para mim.

Ricardo largou o copo sobre a mesa e abraçou Gabriel, que deitou a cabeça em seu peito. Ficaram assim por alguns minutos, até que uma voz séria e gelada os separou.

— Interrompo?

A expressão de Liam fez Gabriel corar absurdamente. O detetive soltou o amigo, mais por reflexo do que por culpa, mas para o moreno não fez diferença, olhando de um para o outro com um olhar terrível.

— Quase nos mata de susto, isso sim! – o loiro reclamou, recuperando-se – E qual é a dessa expressão sombria? Somos amigos e inocentes como bebês, então nem começa!

A reação indignada do marido fez Liam piscar, incomodado.

— Eu não disse nada. – murmurou, azedo.

— Nem precisou, com esse olhar cheio de condenação... – Gabriel voltou a sentar-se na ponta da mesa, emburrado – Como se eu fosse idiota o suficiente para te trair onde você pode ver...

— Considerou essa hipótese? – o moreno perguntou, sério.

Gabriel o encarou, com os olhos faiscando. O homem irritado era um belo espetáculo de se ver.

— Se eu chegar a considerar, estarei fora da sua vida no segundo seguinte. – afirmou, com um meio sorriso congelante.

— Não estávamos fazendo nada, Liam, apenas falando sobre Luciano. – Ricardo entrou no meio da discussão entre o casal, sentindo-se um pouco culpado – Não nos afronte com seu ciúme.

Com um aceno para o amigo, pegou o copo e deixou a sala. Gabriel levou meio segundo para fazer o mesmo, mas Liam o segurou pelo braço.

— Não terminamos nossa conversa. – apesar do jeito calmo, o olhar do moreno faiscou.

O loiro encarou a mão do marido e então ergueu a cabeça. Estavam a centímetros um do outro.

— Quero fazer amor agora. – disse, totalmente controlado.

Liam arregalou um pouco os olhos e soltou o loiro em reflexo.

— Deve estar brincando! – murmurou, exasperado.

Quando foi imprensado na porta e acariciado e beijado até quase perder a sanidade, percebeu que Gabriel não estava brincando.

***

Carlos não ficou surpreso por Liam e Gabriel terem desaparecido no meio da festa. Quando o loiro subiu com o amigo, o moreno não demorou nem dez minutos para ir atrás e quando o detetive chamado Ricardo desceu, com uma expressão séria, simplesmente sorriu, compreensivo. Felipe olhou o namorado e dele, para o imponente loiro.

— Liam tem muito ciúme da amizade de Ricardo e Gabriel. – explicou, tomando um pouco de champanhe – Não duvido nada que deve ter havido uma discussão.

— Será que foi algo sério? – o outro perguntou, preocupado.

— As discussões entre eles nunca são sérias. – o advogado respondeu, com um sorriso.

Ricardo acenou de longe e deixou sua taça sobre o aparador, saindo logo em seguida. Carlos suspirou e encolheu os ombros.

— Ele é bonito. – Felipe comentou, distraído.

O advogado encarou o namorado com uma sobrancelha erguida e o outro teve a decência de corar, envergonhado.

— Não estou pensando em nada, apenas fiz um comentário. – o menor se defendeu, olhando em volta.

Carlos respirou fundo para reprimir o ciúme e então concordou.

— Ricardo é realmente muito sedutor. Venha, vamos começar a despachar essas pessoas.

Sem esperar, guiou o namorado para a porta e discretamente acenou para os secretários, que começaram a terminar o evento.

— Não vamos esperá-los? Ou pelo menos avisar que vamos terminar? – Felipe perguntou, mais para acabar com o clima tenso entre eles.

— Não é necessário. – Carlos respondeu, um pouco incomodado ainda.

Com a evasiva que Gabriel estava cansado e teve que ir embora mais cedo, o advogado despediu as pessoas. O namorado ficou um pouco constrangido com os olhares que recebeu, mas o advogado o manteve firme a seu lado, agindo com naturalidade.

— Porque os melhores são sempre gays ou casados? – uma mulher perguntou a outra, inconformada.

Felipe virou a cabeça, surpreso pela conversa. As duas mulheres, elegantes e cheias de jóias, estavam quase a seu lado.

— Nesse caso, querida, são as duas coisas. – a mais velha respondeu, resignada.

Quando elas foram se despedir, Felipe não conseguiu evitar corar e Carlos sorriu, mostrando as covinhas no rosto. Apesar de não demonstrar, o advogado também ouviu a conversa. As mulheres trocaram um olhar e se despediram, educadas.

— Isso foi vergonhoso... – o publicitário comentou, se encolhendo levemente.

— Normal. – o outro rebateu, despedindo-se de um casal próximo – Depois de Liam e Gabriel, ficou bem mais fácil ser aceito. É claro que ainda existe muito preconceito, mas pelo menos as pessoas disfarçam. - Carlos lançou ao namorado um olhar divertido.

Felipe sorriu, mais confiante, e o mais velho correspondeu.

*****

Liam deixou o marido para fechar a porta e se jogou sobre o sofá, afundando-se. Estava exausto, mas totalmente satisfeito. Sabia que estava com um sorriso idiota no rosto, mas não podia evitar. Aqueles ataques eram raros e enlouquecedores, e por isso mesmo tão preciosos.

— Você está ficando velho.

A provocação veio com uma risada baixa e Liam ergueu a cabeça, encarando o loiro. Ambos estavam de terno escuro, mas Gabriel parecia infinitamente mais bonito e sedutor. O tom verde musgo combinou perfeitamente com a pele clara e os cabelos loiros repicados.

— A culpa é sua, seu tarado. – respondeu, com um sorriso.

— Não vou me desculpar por isso.

Com um gesto displicente, o loiro se afastou e Liam o observou, apaixonado. Gabriel deu a volta no pequeno bar e serviu mais um drinque, pegando para si uma lata de refrigerante. Quando voltou, o moreno se ajeitou, mas o marido simplesmente se sentou em seu colo, passando uma perna de cada lado de seu corpo.

De frente um para o outro, o moreno pegou o copo e tomou um pouco, distraído com o pescoço branco e esguio à sua frente.

— Vampiro.

Liam o olhou por um momento e Gabriel elevou uma sobrancelha, inclinando levemente o pescoço.

— Está marcado, não é? – perguntou, afastando a gola da camisa.

O moreno se inclinou para frente, segurando-o e olhou, notando uma pequena mancha escura na base do pescoço do marido.

— Está doendo muito? – perguntou, soando arrependido.

— Não muito... tem desconfortos maiores... – o loiro respondeu, passando a lata gelada pelo pescoço.

O mais velho não conseguiu evitar acompanhar o gesto, excitando-se. Molhou os lábios e tentou desviar a atenção da tentação em seu colo.

— Vou colocar um sofá maior e mais confortável. – comentou, baixando os olhos.

Logo se arrependeu. A camisa de Gabriel estava só com dois botões fechados, os do meio, e apesar do paletó, a pele clara ainda podia ser vista.

— Não acredito nisso. – o moreno murmurou, espantado com o desejo do próprio corpo.

Ergueu de novo os olhos, deparando-se com Gabriel o observando.

— Não acredita no quê?  - perguntou, com o cenho levemente franzido.

Liam simplesmente o puxou para cima, deixando-o sentir sua excitação. O loiro arregalou os olhos, surpreso.

— Acho que devo retirar minha afirmação anterior, não é? – perguntou, depois de alguns minutos.

— Concordo. – o mais velho rebateu, terminando de um gole sua bebida – Termina logo isso. – indicou a lata com a cabeça.

Gabriel riu, divertido. Provocante, o loiro tomou lentamente o refrigerante, consciente do olhar faminto do marido nos movimentos do seu pescoço. Depois de alguns minutos de tortura, o moreno não se segurou mais.

Segurando o marido, simplesmente virou o corpo e se deitou em cima dele, fazendo-o rir e derrubar a lata, o copo esquecido em algum lugar.

— Vai manchar meu tapete... – Gabriel reclamou, sem realmente estar irritado.

— Compro outro. – Liam rebateu, lambendo o pescoço tentador.

— Quem é o tarado agora? – o loiro perguntou, em meio ao um gemido de prazer.

— Não vou me desculpar por isso. – o mais velho sussurrou em seu ouvido, sedutor.

O loiro gemeu baixinho e se ajeitou embaixo do marido. O corpo ainda estava quente e marcado pelo amor recentemente feito, mas reagiu ao primeiro beijo, tão faminto quanto o outro.

Liam reclamou do banho, mas quando Gabriel ofereceu ajuda, recapitulou. Ambos estavam exaustos, totalmente drenados, mas ainda conseguiram se divertir. O loiro arrancou risadas do moreno, ameaçando-o com a ducha e fazendo moicano no cabelo cheio de espuma. A fome sem controle deu lugar ao corpo plenamente satisfeito e quando finalmente se deitaram, um nos braços do outro, não podiam pedir mais nada.

O loiro se deitou sobre o peito do marido, ouvindo o coração bater compassadamente e embalado, adormeceu. Liam, apesar do cansaço, ainda permaneceu acordado, acariciando os fios ainda um pouco molhados. Não era só o corpo que estava satisfeito, era tudo nele. Seu espírito, sua alma, seus desejos e necessidades. Tudo estava completo.

A parte de si fora de seu corpo estava em seus braços, dormindo confiante. Podia sentir que não havia mais barreiras, apesar de tudo, mas sabia também que era apenas o começo.

Notou os olhares confusos das pessoas, e os olhares de condenação velada sobre o loiro. Entreouviu conversas atônitas sobre o perdão do marido. As pessoas não entenderam como Gabriel podia simplesmente aceitar voltar para si depois de tudo o que fez. Ainda bem que o loiro não demonstrou insegurança e deu a todos, inclusive a ele, as certezas que precisava.

Apertou um pouco o marido nos braços, sentindo os músculos reclamarem e sorriu.

“Estou realmente ficando velho” murmurou para si, com um sorriso cansado, mas feliz.

Mas agora, tudo era diferente. Podia simplesmente envelhecer e morrer, depois de Gabriel. Já tinha tudo o que precisava e queria na vida.

Estava com Gabriel nos braços de novo, e dessa vez, para sempre.


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