A Terra e o Mar - o encontro de dois mundos escrita por Lu Rosa


Capítulo 10
Nove




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Thomas nem tentou lutar. Só o tempo que ele levaria para recarregar a sua arma, seria tempo suficiente para os índios armados com o arco e flecha atirarem.

Devagar, o inglês passou a alça da arma pelo seu corpo, colocando ela em suas costas e ergueu as mãos em sinal de rendição. Só esperava que eles também entendessem que ele estava se rendendo.

Os índios o seguraram e o levaram mais para dentro da floresta. O grupo de mulheres e crianças caminhavam junto com eles.

Depois de algum tempo caminhando, o grupo chegou a uma espécie de aldeia. Sua presença logo foi notada pelos demais e Thomas se viu alvo de olhares e toques. Seu cabelo, suas roupas, tudo os nativos tocavam.

“Será que eles estão pensando em quanto comestível eu sou?”, pensou ele assustado.

Um segundo grupo foi de encontro ao deles. Thomas viu que um índio caminhava a frente dos demais. Parecia o líder. Penas coloridas adornavam o seu cabelo preto, mas com alguns fios brancos, mostrando que ele não era mais tão jovem.

O inglês foi forçado a se ajoelhar perante o líder. Em desvantagem, ele aceitou o seu destino. Com certeza agora seria morto e comido por esses índios.

A índia que ele salvara, foi ao encontro do líder falando rapidamente. O porco do mato foi jogado aos pés do líder que olhou espantando para o bicho.

Os índios que o capturaram também falaram algo que o inglês não pode compreender. Ele só viu que o líder havia pegado a criança e a apertava entre os braços.

O líder bradou alguma coisa e o povo que acompanhava o caso bradou de volta. O líder apontou na direção de Thomas e mostrava a criança e a índia. Os índios que o seguravam, levantaram-no.

Para a surpresa de Thomas, um homem branco vestido, ou melhor, não vestido como os índios correu na direção da assembleia. Ele tinha longos cabelos escuros e barba cerrada.

O homem parou próximo ao líder e ele entregou a criança ao homem. A índia correu para ele abraçando-o. O branco olhou na direção de Thomas.

— Você é inglês? – perguntou.

— Sim. Graças aos céus, você me compreende. Só quero saber uma coisa: Eles vão me comer?

O homem riu e repetiu a pergunta de Thomas na língua indígena. Toda a assembleia riu com ele, inclusive o líder que mandou que soltassem Thomas.

— Não, meu caro. Eles não vão lhe comer. Você não é um prisioneiro. Você salvou a filha de Itarambé e seu neto. Ele tem uma divida com você, assim como eu, pois eles são a minha família.

Thomas o olhou sem acreditar.

            A uma ordem do chefe, a assembleia se dissipou e todos foram cuidar de seus afazeres.

O homem branco estendeu a mão à Thomas.

— Peter Glasgow à sua disposição.

—Thomas Horton. – Thomas apertou a mão estendida. - Você é inglês?

— Deus do céu! Nem em sonhos. Sou escocês. Peter é meu nome de batismo. E Glasgow para nunca esquecer minha origem. E você?

            - De Londres.

— Está muito longe de casa, inglês.

— E você mais ainda.

Um homem velho, vestindo penas e ossos aproximou-se do grupo e começou a rodear Thomas.

Peter fez um sinal para que ele ficasse quieto enquanto o velho murmurava algumas palavras em sua língua.

Depois do minucioso exame, o velho apontou Thomas enquanto falava ao líder.

Peter e o líder indígena olharam para Thomas com espanto.

— O que foi? O que ele disse?

— Que seu espírito está dividido. E isso não é bom.

— Dividido? Como assim?

— Que você procura a morte e a vida.

— Eu procuro somente a morte. Cansei da vida.

— Eu também já me senti assim. - Peter fez um sinal para que Thomas o seguisse.  O líder se afastou com o homem velho. A índia se dirigiu a uma das cabanas levando a criança.

Os  dois homens dirigiram-se a um tronco caído que servia perfeitamente como um banco.

— Quando eu cheguei aqui, eu estava às portas da morte. Eu vim no navio de Edward Fenton e... em que ano estamos?

— Mil quinhentos e noventa e um. - respondeu Thomas.

— Nossa! Não pensei que já havia passado tanto tempo. Quando passamos por essas terras, alguns homens a bordo ficaram doentes. Para salvar o resto da tripulação, o capitão decidiu nos deixar aqui. Não tínhamos salvação.

Peter mexeu os pés cavando a areia fofa.

— Descemos do navio em um bote. Cada um carregando uma pistola. Para se decidíssemos acabar com nossas vidas mais rápido do que esperar a febre nos matar.

— Por três semanas nós ficamos lá na praia comendo frutas e o que nós conseguimos caçar.  Mas a fraqueza ficava cada vez maior em nossos corpos. Um dos homens morreu enquanto dormia. Outro ficou alucinado e tentou fugir a nado. No dia seguinte achamos seu corpo na praia.

Thomas assentiu com a cabeça acompanhando a história.

— Williams e eu decidimos nos embrenhar na mata. Com sorte encontrariamos algum povoado ou náufrago como nós.

— E então?

— Mas nada disso aconteceu. Não tínhamos mais forças para comer quanto mais andar. Mas, quando a noite caia, eu sentia.que éramos observados.

— Numa manhã, Williams decidiu acabar com tudo. Pediu para que eu o ouvisse em confissão. Eu era um padre, sabia? – Thomas arregalou os olhos surpreso. - Havia me tornado marinheiro para fugir da caçada aos católicos. Embora houvesse renunciado a minha posição como clérigo, eu não podia negar aquele conforto a ele. Williams pegou a pistola e deu um tiro em si mesmo. Pedi perdão a Deus pelo ato dele e o enterrei. Então pedi.para que ele me levasse também. Fiz minhas orações e cavei uma cova para eu também. Deitei nela e esperei a morte vir me buscar.

— Mas ela não veio não e? - perguntou Thomas.

— Não. Ao invés dela, ao abrir os olhos deparei-me com o homem mais feio que já havia visto. Ele balançava um chocalho feito de ossos na minha frente e fazia sons estranhos com a boca. Depois ele.começou a soprar uma fumaça adocicada sobre mim. Mergulhei de novo na inconsciencia

— E depois? - Thomas perguntou deslumbrado com a historia.

— Acordei alguns dias depois. Quando aprendi a lingua deles, Ruanan, o pajé, me disse que era um ritual de cura do corpo e do espírito. Depois de alguns meses, fui aceito pela tribo. Guerreei e festejei a vitoria com eles. Cinco anos depois, o genro do chefe morreu numa batalha. Como eles nao tinham filhos e eu era o único solteiro em idade de casar, Iracema me foi dada.

— Peter! É uma historia e tanto.

— Pode ser a sua tambem. Fique conosco.

— Não. Há outros comigo que virão atrás de mim. Eu ja me demorei muito. – Thomas levantou-se do banco improvisado.

Peter levantou-se também e fez um sinal para que Thomas o seguisse. Os dois se dirigiram a cabana maior que ficava no centro da aldeia.

Ele trocou algumas palavras com o líder e o líder respondeu prontamente. Peter, então, levou Thomas pela mão até o líder e este ergueu a mão com a palma para cima.

— Ele quer que você coloque sua mão sobre a dele. É um ritual de amizade e agradecimento.

Thomas fez o que lhe mandaram. Ao mesmo tempo, Peter juntou-se ao ritual, assim como o velho pajé. Ele viu que eles fechavam os olhos e fez o mesmo. O inglês sentiu-se inundado por uma força que o deixou desperto e alerta como se estivesse dormindo por muito tempo e só agora acordasse. Quando os abriu imaginou ver uma mulher vestida de branco. Achou que era o espírito de Alice que lhe vinha visitar, mas a mulher tinha cabelos escuros.

Piscou assustado e se viu novamente na choupana rodeado por vários índios seminus e um branco na mesma situação.

“Ao diabo essas supertições de selvagens!”, pensou.

***

— Você não sente falta da civilização?

Agora, Thomas e Peter andavam pela mata. Se distanciando da aldeia. Uma estranha camaradagem instalara-se entre os dois com apenas horas de conhecimento. Talvez Peter sentisse falta de conversar com alguém no seu idioma natal ou talvez fora o ritual na oca que os tivesse aproximado.

— Falta? – Peter balançou a cabeça. – Não da cidade ou das pessoas. O que Londres me traria se eu tivesse continuado lá? O laço do carrasco? Minha cabeça pendurada na Torre? Não, Thomas. Eu não me arrependo de ter vindo para cá. Mas sinto falta de algumas coisas. – ele parou para descansar e sua voz se tornou saudosista. – Sinto falta da neve no Natal, de comemorar o Natal. Do perfume das macieiras em flor. Mas aqui, eu não sinto fome, Thomas. Não sinto medo. Aqui eu sou feliz.

Thomas ficou em silencio pensativo sobre a vida do escocês, quando algumas vozes chegaram até eles.

— Horton! Horton!

Thomas olhou alertado para Peter.

— São eles! Meus companheiros de viagem. – ele se inclinou e pegou o porco do mato pendurando-o sobre o ombro – Vá. E cuide para que os seus não cheguem muito longe da aldeia. Ficaremos por mais uma noite ou duas.

— Sim, eu cuidarei. – Peter assentiu. – Vá e que Deus o acompanhe. – ele fez um sinal da cruz abençoando-o.

— Obrigado. E que ele permaneça com você.

Cada um seguiu um caminho e logo Thomas estava entre os homens de Cavendish. Mais alguns minutos e eles teriam descoberto o branco que vivia entre os índios.

— Ei, Horton! Onde diabos você estava?

— É pensamos que estava morto.

Thomas jogou o porco do mato aos pés dos homens e declarou.

— Por pouco eu estaria mesmo morto. Mas eu confio na minha mira. – Ele se gabou, batendo no cabo de sua arma.

— O que é isso?

— Parece um javali ou um porco. O bicho é feroz. Então cuidado quando andarem por ai. O que vocês acham? Um pouco de carne assada no jantar dessa noite?

Os homens bradaram comemorando.

***

Naquela noite, depois de se fartarem com carne, frutas e peixes, os marinheiros de Leicester decidiram cantar alegremente. Thomas os olhou por alguns instantes, mas não participou da cantoria. Seu coração ainda estava por demais pesado pelas perdas de sua esposa e seu filho.

Ele resolveu dar uma caminhada pela praia, aproveitando o luar que iluminava tudo como se fosse dia.

Sentado um pouco mais distante, estava Cavendish que o chamou quando o inglês passou por onde ele estava sentado.

Thomas aproximou-se do nobre.

— Pois não senhor?

— Sente-se Horton. Quero conversar um pouco com você.

Thomas sentou-se ao lado do comandante notando que, apesar de ter comido as mesmas coisas do que ele e os outros, a refeição de Cavendish foi servida com mais refinamento. Pratos e taças com bordas de ouro estavam dispostas numa mesa improvisada, mas forrada com o mais puro linho. Talheres de ouro completavam o conjunto.

— De todos os homens, incluindo os meus pares, você foi o único que ainda não ficou com nada dos saques.

— Eu não vim por riquezas, senhor.

— Sim, eu sei. Swan contou-me que você deixou a Inglaterra para procurar a morte por ter perdido sua família. Mas ela continua fugindo de você. Isso não lhe diz nada?

— Eu não sei senhor. Acho que só tenho tido sorte.

— Então, homem! – Cavendish bateu nos ombros de Thomas com entusiasmo. – Por que não aceitar o que a vida está a lhe oferecer. Temos conseguido tanto desses portugueses nessa costa e tenho certeza que vamos conseguir mais daqui a alguns dias.

— O que irá acontecer, senhor?

— Ao sul daqui, existem vilas muito prósperas segundo as informações de Edward Fenton. Ele navegou por essas águas há uns dez anos, mais ou menos. Se naquela época existiam muitos fidalgos por aqui, imagine agora.

— E nós iremos capturar essas vilas?

— Mas é claro! Pense nas riquezas que vamos pegar. Ouro, prata, armas, mulheres...

— Entendo.

— Ouça... – Cavendish aproximou-se dele. – Vou destacar uma das naus com alguns homens. Eles devem ter um efetivo mínimo de soldados, Será fácil dominar a cidade. Ainda mais se eles estiverem dormindo. Planejei tudo de modo que vocês entrem na vila pela madrugada. Um ataque surpresa. E você irá com eles.

— Eu, senhor?

— Sim. Eu acompanhei você nos últimos ataques e vi que é bom com estratégia. Além da coragem e do desprendimento. Você será um ótimo segundo no comando, Horton.

— Segundo no comando?

— Sim. Eu colocaria você como primeiro, mas isso seria passar por cima dos meus capitães.

— Senhor, eu agradeço. Mas...

— De novo Horton? – Cavendish o cortou.

Thomas engoliu os argumentos que tentaria expor. Não queria ir a um ataque surpresa nenhum. Ele combatia soldados. Não colonos adormecidos. Mas o olhar do comandante o avisou que, se o contrariasse dessa vez ele iria conhecer o mastro principal.

— Sim, senhor. Eu irei a essa vila.


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