O espinho e a rosa escrita por Eve Arneiro
Celso abriu os olhos e conferiu o relógio: eram sete da manhã. Não era costume seu acordar tão cedo e tentou voltar a dormir; em vão. Por mais que mudasse de posição, ele já estava completamente desperto. Jogou o lençol de lado e se levantou, muito contrariado. Não era a primeira vez que acordava fora do horário costumeiro, e isso o irritava. Lavou o rosto, cuidou da higiene matinal, e já ia abrir o armário quando voltou-se para a janela.
Sim, ela estava no jardim como sempre, regando as plantas e os canteiros de flores. Pontual como um inglês. No peito do rapaz, o coração, este traiçoeiro, bateu descompassado assim que a contemplou.
Que poder era esse que Maria detinha sobre ele? Mesmo querendo, não conseguia ficar um dia sem vê-la e falar-lhe, ainda que grande parte das vezes em que ficavam próximos tudo acabasse em discussão e mágoa.
A barriga da jovem já começava a ficar aparente, dava para notar mesmo com a distância entre o jardim e a janela do quarto. A maternidade a deixava ainda mais bela, era como se Maria fosse uma estrela irradiando luminosidade.
— Uma estrela tem sua própria luz… - murmurava Celso consigo mesmo.
De vez em quando a moça parava para um descanso, mesmo o trabalho mais simples começava a lhe pesar. Ela acariciava o próprio ventre, falando com a criança que ali estava. Ainda não notara que estava sendo observada, e talvez nem se importasse com isso.
Celso não admitia, mas sentia inveja de Leandro, o tal namorado (ou noivo) de Maria, que morrera num acidente automobilístico antes que pudesse casar com ela. Ela havia dito um dia que o pai de seu bebê havia sido seu grande amor, e toda vez que Celso se lembrava disso, sentia um misto de despeito e raiva, não de Maria, mas do tal rapaz. Se a tivesse conhecido antes de Leandro – antes de tudo—, as circunstâncias seriam muito diferentes. Ele, Celso, a teria respeitado, a teria apresentado para Anastácia, e pedido permissão ao pai dela…
O bebê naquela barriga, se a história fosse outra, poderia ter sido seu.
— Mas o que eu estou a pensar? – disse para as paredes – Eu nunca me envolveria com uma mulher perdida…
Vestiu-se com aprumo como sempre, e saiu ao encontro da tia e da irmã, que já se encontravam na sala de jantar, preparando-se para o café.
— Acordou cedo, Celso? – comentou Anastácia – Caiu da cama, meu sobrinho?
— Algo assim, titia – respondeu o rapaz – não dormi bem e achei melhor levantar.
— Ah, bom, assim teremos mais tempo para ficarmos juntos, não? – sorriu a senhora – Ultimamente você tem ficado mais tempo em casa, Celso, e você não sabe o quanto aprecio isso.
— Celso não tem saído muito desde que a senhora cortou a mesada dele, titia – arrematou Sandra para desgosto do irmão, que lembrou das circunstâncias em que tal fato acontecera – Era de se esperar.
— Sim, claro – retrucou a tia – Mas foi por uma boa razão – Celso deixou escapar um gemido inaudível quando ouviu isso – Fiz na esperança de que ele criasse juízo, e parece que surtiu efeito.
— A senhora não sabe o quanto, titia – respondeu Celso, irônico, olhando para a irmã – Começo a pensar que sair todas as noites não fazia bem para a minha consciência.
Sandra arregalou os olhos significativamente para o rapaz, sabendo a que ele se referia.
— Quitéria, onde está Maria?
— Voltou do jardim agora há pouco, dona Anastácia.
— Ela está bem? A vi mais cedo, achei-a pálida demais.
— Ela disse que está com dor nas costas, mas que não é nada.
Anastácia sorriu, balançando a cabeça.
— Não é nada… sei. Quando eu estava grávida de meu filho também sentia essas dores. Mas era tão bom, sentir meu filho em meu ventre! Imagino como Maria deve estar se sentindo agora.
— Ora, titia – disse Sandra – agora que a barriga dela já começa a ficar visível, pouco ou quase nada poderá fazer para ajudar Quitéria. Por que manter uma empregada que em nada rende?
— E por que titia mandaria uma mulher na condição de Maria embora? – perguntou Celso, tentando disfarçar a irritação – Não seria de bom tom pelo tanto que titia já fez por ela nos últimos meses.
— Concordo com o Celso, Sandra. Maria precisa de ajuda, como eu um dia precisei.
— O seu caso era diferente, titia.
— Não vejo nada de diferente em ambos os casos – retrucou o rapaz, tentando manter o autocontrole diante dos despautérios da irmã.
Anastácia sorriu para Celso, orgulhosa da opinião firme do rapaz. Há tempos que havia notado que o sobrinho estava cada vez mais próximo de sua protegida, o que era muito de seu gosto. Maria era uma moça de família, de personalidade forte e esclarecida, e a aproximação dos dois só havia feito bem a ele, que realmente vinha mudando de comportamento nos últimos tempos. As respostas de Celso às observações de Sandra só reforçavam a opinião de Anastácia da boa influência de Maria sobre o espírito do moço. Já a irmã deste quase não se cabia em estupefação. Quando os dois se entreolharam, Sandra disse à Celso apenas mexendo os lábios: “o que há com você?”, mas o jovem simplesmente fingiu que não viu e continuou a refeição.
Enquanto tia e sobrinha continuavam a conversar amenidades, os pensamentos do rapaz fervilhavam. Maria ir embora, não! Ela não podia fazer isso! Mas não demoraria muito para a criança nascer, e ela já havia dito várias vezes que após o resguardo, arrumaria as malas e sairia da casa de Anastácia, sabe Deus para onde. Celso não poderia suportar a simples ideia de nunca mais vê-la. No fundo do coração, sentia um medo terrível do dia que estava para chegar dali a alguns meses: o dia que o bebê de Maria viria ao mundo.
De súbito, resolveu que queria vê-la. Primeiro, faria hora com a tia na sala, como de costume, e dispensaria Sandra caso a irmã o requisitasse para acompanhá-la “naquele assunto”. Hoje, sua atenção estaria voltada para a única pessoa naquela casa, além de Anastácia, que se importava com ele.
Tudo o que Celso queria, a partir daquele momento, era estar perto de Maria… Não, era muito mais do que isso: ele queria apenas que ela estivesse em seu campo de visão pelo maior tempo possível.
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Continua...