Maldição Soverosa escrita por P B Souza


Capítulo 2
Hospitalizado e Amaldiçoado


Notas iniciais do capítulo

Olá pessoas! :)
Bem-vindas ao primeiro capítulo... comparado com o prólogo ficou... grande. Mas ainda assim espero que gostem!
Ps. Queria agradecer o pessoal lá do grupo que deu a maior força pra mandar essa fic pra frente, e ao pessoal que comentou coisas realmente lindas! Muito obrigado vocês tudo haha!
Sem mais delongas: Boa leitura!



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A vida consiste em mudanças

Aquelas que aceitamos

E as que negamos

Mesmo sem consentimento

Tudo muda.

Ainda estava escuro quando Kaio despertou em sua cama… Não é minha cama. Foi a primeira coisa que notou, com certo alarde, se remexendo. Ouviu o som dos lençóis contra seu corpo enquanto sentia o próprio tecido distinto… não eram suas roupas também.

Percebeu de imediato que estava em outro lugar, mas não se mexeu mais, apenas abriu os olhos e examinou o lugar aonde estava deitado tentando não chamar atenção, sentia um certo medo. A cama era pouco macia e coberta em lençóis brancos assim como seu corpo. Ele usava uma… túnica? O teto branco, paredes azuladas (um azul-claro). Em seu dedo um daqueles pregadores que ficam contando o batimento cardíaco com um fio até a máquina fazendo “bip” baixinho, ao lado.

Não havia soro em suas veias nem nada do gênero, mas podia sentir que seu braço havia sido picado algumas vezes. A porta estava fechada e todos no hospital pareciam dormir, embora Kaio soubesse que sempre existe alguém de plantão por perto. Relaxou o corpo vendo que de pouco adiantaria afobação. Estou internado. Pensou enquanto tomava consciência de sua situação. Será algo grave? Então curiosidade.

Olhou para o lado vendo, pela janela, a cidadezinha aonde morava ser lentamente iluminada pela alvorada.

Que merda que aconteceu comigo? Pensou em chamar a enfermeira e perguntar, mas provavelmente ela diria que o doutor chegaria pelo amanhecer, e não responderia suas perguntas, mandaria que Kaio voltasse a dormir.

Então virou-se de lado com cuidado para não puxar o fio preso a seu dedo e deslizou uma das mãos para baixo do travesseiro e…

Os dedos encostaram em algo e Kaio sentiu a textura como nunca antes, puxou para fora do travesseiro um envelope quadrado, leu a assinatura de sua avó no papel.

No interior, pouca coisa havia escrito.

KAIO, MEU QUERIDO, NÃO FALE SOBRE O OCORRIDO (DIGO, A VERDADE) COM NINGUÉM. SE O FIZER SERÁ INTERNADO EM UMA ALA DESTINADA PARA ESTUDO DESSA SUA CABEÇA BRILHANTE E O QUE HÁ DE ERRADO NELA, MAS NÓS BEM SABEMOS QUE NÃO HÁ NADA DE ERRADO, NÃO É MESMO, QUERIDO?

ENTÃO VAMOS AO QUE IMPORTA, CASO ALGUÉM PERGUNTE, DIGA NÃO SE LEMBRAR DE NADA, DE TODA FORMA, ESTAREI AÍ COM O NASCER DO SOL ANTES DE TODOS, ATÉ LÁ NÃO FALE SOBRE A COBRA.

T. Soverosa.

 

Dobrou a carta novamente e voltou a inseri-la em baixo de seu travesseiro, apreensivo e preocupado. Ela viu? Ela sabe o que aconteceu?

Então, sem conseguir voltar a dormir, Kaio esperou pelo nascer do sol incapaz de quantificar sua curiosidade. Se sua avó havia visto a cobra, então todos tinham, então todos deviam estar se perguntando o que raio fazia uma cobra dentro dele!

Durante madrugadas, hospitais tendem a ser peculiarmente assombrosos, o silêncio que se espalha pelos corredores, o frio anormal de certas salas, o som de ferramentas de metal sendo movidas em carrinhos que rangem, macas, gritos e lamúrias de pacientes à beira da morte… talvez até os próprios mortos decidissem voltar ao local onde desencarnaram. Kaio, ao menos, acreditava que tal coisa era possível.

Duas vezes alguém passou pela porta de seu quarto, mas ninguém demonstrou interesse nele, e ninguém entrou no quarto.

Lá fora a madrugada se desfazia lentamente com o passar dos minutos. As estrelas riscando o céu iam esmaecendo enquanto a própria lua se perdia no manto negro da noite, sumindo pela janela.

Kaio teria dormido de novo, mas toda vez que fechava os olhos imaginava-se na ala para doentes mentais com pessoas aprisionadas em macas verticais com mordaças, babando, e um médico louco com uma cadeira elétrica e ferramentas para lobotomia nas mãos com um óculos redondo pequenino. Isso espantava qualquer sono de qualquer um, mas então ele percebia que seu pesadelo era uma página de HQ do batman, e o médico louco era Strange. Eu tenho ótimas referências para minhas paranoias.

Quando os primeiros raios do alvor começavam a surgir, Kaio pensou em sua avó novamente e no dia da festa e nos olhos dela. Alguma coisa invulgar acontecia, e sua avó aparentemente gostaria de manter aquilo obducto dos outros, ou ao menos dos médicos.

Claro, a avó de Kaio era a figura excêntrica da família. Ela mesma já havia sido internada algumas vezes, principalmente depois da morte de seu esposo quando todos pensaram que ela tinha ficado tresloucada de vez, mas antes disso o primeiro esposo já havia a internado também. De alguma forma Kaio sempre entendeu esses acessos de loucura dela, e nem chamaria assim, na verdade ele é mais próximo da avó que de qualquer outro membro de sua esnobe família, e de quebra ela tem ótimas histórias sobre o folclore local, histórias que deixam Thor e Zeus no chinelo.

*****

Então ouviu alguém à porta, rapidamente fechou os olhos simulando dormir, mas o cheiro que invadiu a sala revelava quem era. A aurora havia trazido sua avó, tal como a carta prometera.

— Não finja dormir, não conseguiria me enganar nem em dez vidas. — Teodora Soverosa encostou a porta atrás de si com aquele sorriso levemente amarelado, sua pele clara era cheia de fracas rugas que a fazia parecer não ter mais de 55 ou 60 anos, quando na verdade já tinha 77, os cabelos eram algo entre o loiro e o castanho já virando para o branco, o corpo magro mostrava que na mocidade havia sido uma bela mulher de padrões, embora hoje em dia fosse quase raquítica. — Algum médico veio falar com você?

Perguntou enquanto Kaio se ajeitava. Ela sempre soube quando ele fingia e quando era verdade, Kaio não sabia bem como, mas era impossível enganar sua avó.

— Ninguém se importou o bastante para isso, não. — Respondeu à avó. — Vó, o que…

— Com calma, querido. A gente tem muito o que conversar, acho que você já imagina algumas coisas, outras vai ficar surpreso… — Ela colocou a mão no ombro de Kaio e o olhou com ternura enquanto sorria tentando simular felicidade, mas nas fracas rugas Kaio conseguia ver tristeza. — Eu lamento verdadeiramente por isso, querido, mas aqui não é o local e essa não é a hora.

Kaio a princípio não entendeu o que a avó lamentava, mas algo em sua voz fez parecer real, fez parecer… digno de lamento. Eu estou doente e não tem cura!

— Pegaram a cobra? — Era algo que havia preocupado Kaio. Talvez a doença fosse da cobra e ela tivesse alguma… propriedade curativa ou algo assim. Kaio sabia que muitos remédios eram feitos com veneno de cobras.

— Pegamos sim. — Um breve sorriso de Kaio, enquanto as pequenas mãos de avó se uniam e com os dedos ela apontava para o menino na cama. — Ela está aqui na minha frente, internada.

— Como? — Vacilou temendo que a cobra tivesse entrado de novo nele quando havia desmaiado, levou a mão na barriga tateando o próprio estômago, mas Teodora pegou o pulso de Kaio e o fez parar.

— Kaio, querido, é isso que precisamos conversar. — A voz dela ficou séria e Kaio sentiu que algo muito errado tinha acontecido. — Você pensa ter vomitado uma cobra, e o fez, mas só para você! Ninguém viu isso acontecer, bem, eu vi, mas isso é outra coisa que vou explicar depois. O que aconteceu não pode ser visto ou explicado com olhos comuns ou por pessoas comuns. Para sua mãe, vomitou apenas sangue, para todos, apenas está doente.

— Mas eu…

— Foi assim comigo também, mas em uma fazenda… exorcismos não são legais, eu posso afirmar. Minha mãe não entendia assim como a sua não há de entender, essas pessoas têm a sorte de não sofrerem como nós, é uma maldição, Kaio, uma terrível maldição que carregamos e eu torci tanto que estivesse livre dela, mas o destino é cruel. Agora você despertou um poder imenso, eu rezei por muito tempo para que não fosse com você, mas aconteceu, e agora está em perigo e nem sabe porquê.

— Eu não estou entendendo. — Kaio disse sentindo um calafrio, a voz de Teodora não parecia brincadeira, não parecia história ou lenda… parecia que ela realmente estava triste por Kaio, mesmo não sendo uma doença. Maldição? — O que aconteceu comigo… e com a senhora?

— Essa maldição é transmitida pelo Sangue, de mãe para filho, como uma herança maldita para que nos lembremos dos erros cometidos séculos atrás pelos nossos antepassados. Demora seis mil quinhentos e setenta e quatro dias para despertar, dezoito anos. Todos na nossa família estão amaldiçoados, todos os Soverosa, mas nem todos despertam a maldição, não é assim que funciona, alguns tem sorte, outros somos nós, eu e você.

Teodora olhou para a porta quando alguém passou no corredor, o quarto do hospital era grande, uma suíte. Era, afinal, o hospital do convênio. A avó então olhou para Kaio de novo, respirando fundo voltou a falar.

— Durante a juventude de sua mãe sempre me preocupei com ela, mas depois dos dezoito esses temores passaram. Então você nasceu e minha preocupação voltou, embora menor porque sabia que a maldição podia terminar por aí, nossa família podia ser purificada. Mas então veio sua irmã e tudo recomeçou. Apenas as mulheres passam a maldição adiante, os homens apenas manifestam ela, então mesmo que despertasse em você, acabaria em você, agora mesmo que sua irmã nunca desperte essa praga, os filhos dela podem… despertar. — Teodora parecia cuspir as palavras com nojo de cada uma delas. — O que significa que você terá de viver, terá de esperar pelos filhos de sua irmã e proteger eles quando eu tiver partido, alertá-los e guiá-los, como farei com você a partir de hoje.

— Eu… não entendo. — Era, claramente, um devaneio. Talvez um acesso de loucura, não era incomum acontecer, ela estava ficando velha e isso é normal com os velhos. Kaio pensava que sua avó só estava passando por mais um de seus momentos criativos. — Como a senhora conseguiu entrar no hospital?

— O que você vomitou?

— Uma cobra, mas…

— É daí que vem nossos poderes. — Ela disse olhando para a janela, seus olhos se tornaram feixes verticais novamente e então voltaram ao normal em um simples piscar. — Posso me esgueirar por qualquer canto sem ser notada, você também poderá. Mas, querido, preciso que não fale disso para ninguém, é melhor assim. Eu disse, contei sobre tudo isso para minha mãe quando despertei e nunca sofri tanto como naqueles dias. Depois para meu primeiro esposo e fui internada por dois anos até conhecer seu falecido avô. Nossa realidade é nossa e apenas, não dívida ela com ninguém, se o fizer… sofrerá. As pessoas não entendem, não aceitam.

Então Teodora se levantou da beirada da cama, olhou ao redor por um momento e suspirando sorriu para Kaio, retomando uma pose mais animada e menos lúgubre.

— Tenho que voltar para casa, fingir que não estive aqui, assim como a carta. — Estendeu a mão e Kaio passou o papel para ela. — Sim, bom. Se não tivesse lido a carta eu teria vindo do mesmo jeito, sabe, teria jogado a carta fora e ido embora, voltaria mais tarde e teríamos essa conversa do mesmo jeito. Vê, só quero evitar o pior para ti, querido. — De certa forma parecia algo honrável, mas Kaio ainda não entendia o que ela queria evitar, mas começava a relembrar das histórias… estranhamente a maioria parecia não ser mais simples histórias. Ela foi até a porta e com a mão apoiada na maçaneta encarou seu neto de novo. — Você vai sentir mudanças no seu corpo, vai ser estranho no começo, mas se acostumará. Lembre-se, não dívida isso, é uma maldição, não é para ser de amplo conhecimento. Agora eu tenho que ir. Vamos conversar de novo em breve, então, com tempo, lhe explicarei tudo.

*****

Com isso Teodora foi embora e Kaio ficou sozinho de novo, agora não dormiu mais porque já era dia, e não demorou para que uma enfermeira viesse lhe ver, então o médico, avisos sobre a hora de visitação, café da manhã e então as visitas.

Os Soverosa residem em uma cidadezinha no interior de São Paulo chamada São Olavo e Conceição. É uma cidade pequena, mas importante economicamente falando, ainda mais depois que uma gigante internacional decidiu montar uma fábrica nas redondezas. Claro, as famílias mais tradicionais tentaram impedir porque o pessoal geral trabalhava mais com agricultura, mas, mesmo assim, um ou outro apoiou a causa e em seguida São Olavo (como era comumente chamada) ganhou uma fábrica e montanhas de dinheiro, além, claro, de montanhas de poluição, caminhões, assaltos… coisas que vinham junto do milagre da industrialização.

E foi apenas a ponta do iceberg. Depois da primeira fábrica, dezenas de outras mostraram interesse no local e não demorou para existir um “bairro industrial”.

A cidade com pouco mais de 150 mil habitantes, dezesseis famílias com grandes fazendas nos arredores e três grandes famílias monopolizando a produção de tudo que é feito. Para Kaio, a parte triste é que sua família é uma dessas três gigantes. Daí a fortuna dos Soverosa.

*****

Quando sua mãe chegou, ela usava um vestido simples e vinha com a irmã de Kaio ao lado.

Ao vê-las, Kaio refletiu rapidamente sobre o óbvio, falar ou não falar sobre sua avó ter estado ali?

A Tia Maria era psicóloga, então caso falasse ele já imagina ser forçado (pela insistência) a conversar com ela. Mas se não falasse, quando a verdade surgisse, pois Kaio acreditava veementemente que eventualmente a verdade vem à tona (não importa sobre o que seja), ele seria confrontado com ainda mais perguntas, além de, claro, a desconfiança e perda de moral por ter mentido em primeiro lugar. Coisas essas que ele odiava. Era uma situação complicada.

Com sorte sua tia voltaria aos EUA junto do tio Mark, então ele não precisaria vê-la. Talvez eu deva contar.

— Kaio, você está bem?

— Melhor que na véspera. — Respondeu sorrindo para sua mãe. Então Laila, sua irmã, pulou para cima da cama e Kaio deu espaço para ela, que se deitou ao seu lado.

— A mamãe disse que você tá doente, você tá?

— Eu também queria saber isso. — Kaio disse para ela passando os dedos pelos cabelos lisos claros da irmã. — Mas eu pareço doente?

— Parece fraco. — Bethânia rebateu antes que Laila falasse de novo, pois a pequena falava sem parar se deixassem. — Mas seus exames estão normais. Todos eles.

— Eu me sinto ótimo, mãe. — Kaio respondeu colocando Laila de lado e se sentando na cama, era verdade, ou parte dela. — Melhor impossível. Posso ir para casa?

Então o médico surgiu. Dr. Euclides, o médico da família.

— Sra. Bethânia, com licença. — Ele se postou entre Kaio e sua mãe, o Dr. Era sempre bem formal e profissional. — Os exames não apontam nenhuma anormalidade, está tudo dentro dos conformes, a súbita perda de peso pode ser resultado do metabolismo acelerado devido puberdade e falta de alimentação saudável combinada com muita atividade física, mas não vejo outra explicação. Claro, podemos rodar outras baterias de exames, mas não acho que vamos encontrar nada. Além do que, Kaio está bem, não?

— Me sinto tão bem quanto antes disso tudo, doutor.

— Mas o que aconteceu com você, Kaio? — Bethânia perguntou, um semblante preocupado no rosto cansado de quem provavelmente não tinha dormido muito. Então olhou para o Dr. Euclides. — E por que sangue?

— Eu… passei mal. Acho. — Kaio respondeu, abatido. Não querendo mentir, mas não vendo outra escolha, pois de alguma forma queria acreditar em sua avó. Pior, de alguma forma já acreditava. — Deve ter sido, alguma coisa que bebi.

— Sim, essa é uma possibilidade. O estômago contém sim algumas feridas, mas não é nada sério, pode ter sido apenas algo que engoliu sem mastigar direito, um ossinho de galinha ou porco, talvez até mesmo espinho de peixe que não foi digerido no ato e causou danos, talvez alguma bebida muito forte, então o estômago reagiu regurgitando, o que é comum, e como estava ferido, voltou com sangue. Mas não é nada que ofereça risco, vai sarar sozinho, só recomendo… não correr ou fazer muito esforço abdominal para não fazer um arranhão virar um corte e piorar algo que não oferece nenhum risco agora.

Dr. Euclides prescreveu alguns remédios para ajudar com as feridas no estômago e em seguida liberou Kaio para voltar para casa, e, logo, ao internato.

*****

De volta à propriedade Soverosa onde tudo era negócios, Christopher Viwtman, pai de Kaio, estava no telefone com seus acionistas (o que incluía seu tio), Bethânia voltou a programar o baile beneficente na frente da prefeitura no centro da cidade, Laila foi posta para estudar lá na Ala Oeste no salão de Ballet e Kaio foi deixado de lado tão rápido que sequer pareceu que um dia alguém se preocupou com ele. Tudo voltou ao normal, então!

Subiu para seu quarto e foi até a janela que dava vista aos fundos aonde havia vomitado uma cobra. Kaio ficou martelando aquele pensamento de forma constante. Então, não aguentando as perguntas, se virou e pegou seu Surface Book Pro, o windows iniciou imediatamente, os dedos desenharam o padrão na imagem da tela e ele abriu a Cortana.

— Pesquise Soverosa para mim. — Pediu.

O Edge abriu nada além de alguns links relacionados a origem portuguesa de sua família por parte de mãe.

— Soverosa. Cobra. — Disse então à Cortana. Teodora citou que era maldição dos Soverosa. — Soverosa. Serpente.

Os resultados se tornavam ainda mais escassos. Um único link o levou para uma página em francês que leu sem dificuldades graças as aulas forçadas que tomou quando menor.

— Jacques Vouga Du Soverosa, Conde português de nascimento brasileiro, exilado e refugiado em Bordeaux, França, acusado de bruxaria e sentenciado a morte na fogueira pelas autoridades europeias em nome da santíssima igreja em 1796. Morte em 28 de abril de 1797 em Lisboa, Portugal. Seus bens monetários foram integrados aos cofres da coroa portuguesa exceto pelos bens materiais do Chateau onde se escondia, estes foram leiloados tardiamente… galeria de imagens.

As fotos eram de sabres, armaduras, alguns quadros, camas, armários, tudo muito antigo e as imagens acompanhavam legendas.

— Cama de carvalho do bosque noroeste de Bordeaux talhada à mão por Carlui Delort, artesão de renome empregado majoritariamente pelos Soverosa. Quadro pintado por Giovane Parsella em 1768. Brasão talhado por Jacques Vouga Du Soverosa em 1795…

Kaio parou neste brasão. O desenho era diferente dos desenhos dos brasões de sua família que ele conhecia da viagem à Portugal. Este era idêntico, mas no lugar das cinco flor-de-lis tinha cinco serpentes em um fundo negro, ou assim deveria ser, e no lugar da cruz de Jesus havia uma espada ao contrário. A foto era em preto e branco e bem velha.

Colocou para imprimir e voltou a olhar para o jardim lá em baixo. Tinha planos de mostrar a foto à sua avó.

Pensou rapidamente em Jacques, morreu queimado na fogueira em 1797, época em que isso já era considerado absurdo. Época em que fogueiras não eram mais acessas para queimar pessoas. Kaio se perguntava o que Jacques podia possivelmente ter feito para despertar ódio tão grande a ponto de voltarem às fogueiras e não usarem a típica execução pela espada.

Os pensamentos vinham enquanto apreciava o verde da propriedade.

O terreno dos Soverosa se estendia até o fim da cidade, moravam no linear entre civilização e os bosques que se tornavam florestas, mas estavam sumindo porque os Ambrósio desmatavam mais e mais para estender seu monopólio de pecuária aproveitando do terreno sem muitas variações de relevo.

Logo as únicas partes ainda verdes eram as casas das famílias ricas ou as que Bethânia impedia os Ambrósio de desmatar com os recorrentes processos e queixas ambientais.

Então bateram à porta.

— Kaio? — Ele olhou para a porta assustado.

— Entra. — Disse à sua mãe enquanto fechava o site. A folha na impressora saia virada para baixo. — Tudo bem com o baile? Não vai cancelar né?

Riu, claro que ela não cancelaria. Nem se Kaio estivesse em coma ela cancelaria o baile.

— Está tudo bem, embora a Senhora Elza não queira concordar com meus arranjos, mesmo ela tendo organizado o baile passado. Algumas pessoas não sabem a hora de dar o braço a torcer… sem falar que ninguém gostou daquelas bromélias ano passado. Ideia estúpida, bromélias…

— Mãe?

— A, sim, claro. — Bethânia sempre saia do assunto e arrumava um jeito de falar de si mesma, Kaio já havia se acostumado com isso em sua mãe. — Queria perguntar se está tudo bem mesmo. Você parecia… longe, lá no hospital.

Kaio respirou fundo girando na cadeira e olhando para ela, sua mãe havia se sentado na beirada da cama com as pernas juntinhas e as mãos sobre o joelho.

— Não devia falar isso, mas… mãe, o que aconteceu comigo, de verdade? Eu não lembro!

— Você vomitou… muito. E sangue, eu fiquei preocupada.

— Só isso? — Kaio perguntou apoiando os cotovelos nas pernas e segurando o rosto com as mãos.

— Por quê? — Bethânia percebeu que as perguntas eram um jogo e não genuínas perguntas. Kaio, porém, notou que sua mãe já havia entendido o que ele estava fazendo.

— Eu… eu podia jurar que vomitei uma cobra ou algo assim, eu podia sentir ela andando dentro de mim, mãe. Você acredita em mim?

Kaio pode ver um olhar de desconfiança nela. Uma dúvida entre o que fazer, como responder. Culpa minha, agora sou internado. Kaio havia colocado ela naquela situação. Eu traí minha avó, mas essa é minha mãe. Pensou. Ela não me fará mal.

— Você… passou por muita coisa, e mesmo sem ser nada, talvez… precise descansar um pouco. — Ela soou um tanto que apreensiva embora tentasse maquiar a voz com força e sobriedade, era visível que Bethânia não acreditara.

— Eu só quero esquecer isso tudo. — Kaio disse então, abaixando a voz e voltando a olhar à janela. — Acho que vou dormir um pouco.

— Bem pouco. Amanhã é segunda e você tem aula e se dormir agora não vai dormir de noite… aliás, vai voltar a dormir aqui?

— Não sei… se eu estiver bem fico no internato mesmo, não é problema. — Kaio se levantou e foi ao guarda-roupa pegar uma troca de roupas. — Pede para trazerem meu almoço? Vou tomar banho e aí vou cochilar um pouco, está bem?

— Se você acha que é o melhor agora. — Bethânia foi até seu filho e colocou uma mão sobre seu ombro.

— Eu acho sim.

Kaio virou e abraçou ela. Os dois suspiraram um pouco. Então ela se foi pela porta de saída do quarto e Kaio se foi para seu banheiro.

Entrou no banheiro ainda sentindo nojo da própria boca, já havia escovado os dentes, mas imaginar que uma cobra havia saído de dentro dele lhe dava arrepios. Kaio, porém, nunca foi o que vive em negação, então tentava só superar e continuar em frente. Vai passar.

Tirou suas roupas rapidamente e na frente do espelho olhou seu reflexo, a mão na barriga apertou o abdômen sobre seus finos pelos enquanto tentava ver se tinha mais alguma coisa dentro dele. Não seja estúpido, cobras não vivem dentro de pessoas.

Se enfiou em baixo da água. Está caia quente sobre ele, e Kaio sempre gostou, mas dessa vez era como uma estranha em seu corpo, desconfortável e… de alguma forma lhe desconcentrava. Não conseguia pensar direito. Isso nunca tinha acontecido antes.

Conforme tomava banho começou a sentir a água irritando seus olhos até que a irritação se tornasse insuportável e estivesse apenas em baixo d’água coçando os olhos incansavelmente enquanto a água caia com cada gota estourando no chão como uma bombinha. O vapor estava com aquele cheiro magnífico de sempre, mas estranhamente intensificado, os olhos coçavam demais e quando Kaio os abria via tanto vapor que era até difícil enxergar as coisas.

Fechou o chuveiro e se enrolou na toalha quase sem enxergar o que fazia, o chuveiro deveria estar queimando. Foi cambaleando e pingando para o espelho que limpou com a toalha de rosto ao lado para poder se ver nele, mas tinha muito vapor e não adiantava, ele não enxergava. Continuou limpando, pegou um pedaço de papel higiênico e esfregou no espelho que rangia conforme o papel deslizava pelo vidro, mas nada adiantava.

Com desespero abriu o armário abaixo da pia, a toalha caiu de seu corpo quando se abaixou. Enxergando cada vez menos pegou o soro fisiológico derrubando algumas coisas no processo e pingou… não, esguichou dentro de ambos os olhos, coçou. Se levantou e com a barriga encostada no mármore gelado, aproximou o rosto o máximo que pode do espelho, sua respiração estava pesada e rápida. Pode ver apenas seu olho, e muito mal. Via uma segunda pupila… ou seria… não, Kaio piscou tentando ver melhor. Sua íris havia se expandido cobrindo todo o olho com o castanho mel e sua pupila não era mais redonda, era um feixe vertical.

Kaio puxou o ar com força, recuando. Encostou no vidro do box e girando nos calcanhares abriu a porta do banheiro para o quarto, nu cambaleou para fora do quarto e foi quando ao piscar mais uma vez sua visão sumiu de vez. No lugar um cenário negro e explosões luminosas brancas. Perdeu completamente o senso de direção e sem notar que ia contra sua mesa de trabalho, chutou a cadeira. A dor subiu-lhe os nervos e a cadeira caiu com um baque contra o chão de madeira…

Foi como uma explosão em seus ouvidos e uma explosão na sua visão. Recuou novamente, levou as mãos às orelhas tapando-as em desespero, meio agachado andou até encontrar a cama onde se jogou sentindo a cabeça latejar e os olhos coçarem e os ouvidos doerem e o pé doendo mais ainda.

A mão alcançou o celular no criado-mudo derrubando o pote de pringles e o livro no chão. Tudo fazia uma barulheira que rebimbava no espaço e Kaio podia de certa forma ver o espaço, não com os olhos, mas via, podia ver de outra forma… sentir.

— Ligar para Vó.

“Ligando para vó” A assistente pessoal respondeu.

— Kaio? — Ouviu a voz da empregada ao seu lado.

— Amanda… — Kaio berrou largando o celular e cobrindo o corpo nu com as mãos.

“Alô? ” Mesmo o celular caído na cama do lado de sua cabeça, pode ouvir quando sua avó atendeu.

Ela não abriu a porta. Pensou em Amanda, a empregada. Ela não está aqui dentro. O que está acontecendo?

— Está tudo bem? — Amanda, a empregada, perguntou.

Kaio girou na cama pegando o celular em uma mão, ajoelhado no colchão fofo olhou ao redor vendo negro e branco em borrões dançantes, não via moveis ou nada, apenas borrões dançando no vazio.

— Não entra! — Rebateu sem saber o que mais dizer.

— Sua mãe disse que…

— To pelado, Amanda. Acabei de sair do banho — Berrou em resposta. — Deixa aí, obrigado.

“Kaio, querido? ” Teodora chamou novamente no telefone.

— Está bem, vou deixar aqui na mesinha do hall. — Amanda disse, ela estava do lado de Kaio, sua voz vinha tão próxima que era impossível imaginá-la com uma porta os separando. Kaio podia jurar que a empregada estava, se não dentro do quarto, olhando para seu interior com a porta escancarada, ele então moveu o braço para um lado e para o outro, como se tentasse encostar em alguém, em Amanda.

— Obrigado. — Então focou no celular levando-o à orelha. — Vó, meus olhos… — Abaixou o tom de voz. — Está tudo preto com brilhos em todo canto e eu não to enxergando nada, está coçando e minha cabeça parece que vai explodir, está tudo fazendo um escândalo…

“Você precisa se concentrar, vai passar, mas você tem que se concentrar. Respire fundo, feche os olhos. Comigo, respire… solte. Seus olhos, sua visão. Você controla, não a maldição”. Seguia o que sua avó dizia “foco, Kaio, força. Pare de ouvir, pare de pensar no que está acontecendo. Você tem que pensar no que quer que aconteça. O que você quer? Eu vou desligar, você precisa focar no que quer e não no que está tendo agora, silêncio total, foco. Entendeu? Foque nos seus olhos como eram e não como estão, na audição como era. Foque”.

Então a ligação foi encerrada antes que Kaio pudesse responder.

Ele continuou com os olhos fechados por mais uns minutos até que sentisse o próprio coração batendo, podia ouvir os pássaros lá fora, as pessoas andando no andar de baixo, a tesoura do jardineiro sendo usada lá no jardim, podia sentir o chão vibrar como se a casa fosse viva e o céu acima dele com o vento como uma entidade.

Então abriu os olhos e pode sentir o calor do computador emanando na mesa, as luzes, os brilhos… percebeu que não eram luzes, era o calor, era o movimento, era a vida ao seu redor. Olhou para a cama vendo uma mancha negra, mas aonde sua perna estava via uma mancha branca brilhante. Então passou o dedo pelo tecido do lençol e viu um rastro ficar para trás como se fosse uma lembrança visível no próprio tempo, a história de onde estava e para onde foi.

Chega!

Então tudo sumiu e Kaio estava sentado na cama, todo molhado, uma bagunça no quarto e banheiro, e podia ver tudo, normalmente agora. Estava tudo bem de novo. Podia sentir as coisas de forma normal, não ouvia ninguém lá em baixo nem o jardineiro lá fora nem via calor, nem sentia a casa viva.

“É uma maldição, Kaio, uma terrível maldição”. A voz de sua avó ressoou na memória como um aviso. Se deitou na cama lentamente ignorando o fato de estar nu. Essa era sua menor preocupação no momento.

O que ele poderia fazer? O que Jacques fez? O que sua avó fez? Séculos… por que nós? Por que os Soverosa?

Uma terrível maldição.


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Notas finais do capítulo

Por hoje é só.
Espero que tenham gostado desse começo de história, e só algumas informações:
Kaio Soverosa... o sobrenome dele é o nome da maldição? Pois é... fica ai a dúvida do "por quê"!
Sobre a visão dele... para quem não sabe; cobras veem calor e não cores, dai as várias possibilidades!
Sobre a família dele ser rica: Por que raios os índios se vingariam dos pobres que só foram vítimas dos colonizadores também? Então é isso ai, ele é rico, mas não é mesquinho ~cazuza curtiu isso~.
Sobre a avó e a história dela... Acho que ficou claro que a véia tem muito a contar né? Pois é, talvez tenhamos umas histórinhas bem interessantes da Teodora em breve!!
...
É isso, acho que já falei demais. Então tchau gente, se puderem dizer o que acharam, se viram algum erro ou coisa assim, dicas, opiniões... Sempre aberto à opiniões! :D
Até o próximo! :)



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