Nictofobia escrita por Kuronekoekoeko


Capítulo 1
Capítulo único.




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A embaçada figura que lhe era refletida sobre a faceta parcialmente trincada daquela miniatura de espelho em suas mãos demonstrava a mais deprimente das falácias, a carente e patética farsa quase teatral do próprio eu: o rosto entupido de maquiagem, a pureza imaculada dos lábios, simulada numa tinta exótica, e as lentes de contato dolorosamente desconfortáveis, só podiam pertencer a uma pessoa mais egocêntrica, fútil e vaidosa do que ela. Aquele tipo de gente que ela jurou desde cedo não se tornar, quando optou na infância pela mágica da caneta e dos livros, em detrimento do suposto charme feminino associado mais frequentemente aos brincos, aos saltos, e as saias.

Mesmo assim, entretanto, ainda era humana. E que adolescente de dezesseis anos de idade, por mais prudente fosse, nunca se deixou influenciar pelo menos uma vez pela motivação bem-intencionada de uma ou duas de suas amigas, mais atraentes e populares do que ela própria? Pena que, uma vez na festa, Alice veio a recordar-se, extremamente desapontada, de que ela e as suas companheiras possuíam conceitos radicalmente diferentes do que "diversão" significava.

Não tardou muito para que o bombardeio indiscriminado de música alta, somado ao aroma de cigarro e preservativo barato impregnado a tudo e a todos, enojasse-a até o foro mais íntimo de suas entranhas.

Suas colegas insistiram que ficasse, é claro, mas logo estavam ambas distraídas demais pelos avanços desinibidos de seus respectivos namorados para aperceberem-se de que a mais jovem já não mais suportava estar entre elas.

Era meia-noite em ponto quando ela apanhou aquele ônibus.

Se sua mãe descobrisse ela já era, foi o que pensou.

O tremeluzir inconsistente da iluminação elétrica falha dava ao interior do veículo uma aparência depredada, intimidante. Por precaução, ela se sentou no banco adjacente ao de um casal que, por sua vez, ficava bem diante do assento ocupado por um engravatado adormecido qualquer.

Havia alguns outros passageiros, mas Alice não lhes dera muita atenção; com a cabeça recostada sobre a janela, desmaiou depois de cinco minutos de viagem, como se o sacudir do ônibus em movimento e o sacudir de um berço de ninar fossem um e o mesmo para a mente exausta de uma criança.

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O despertar se deu num pulo violento de espanto, feito possível apenas pela ciência de sua própria insensatez. Em circunstâncias normais, teria primeiro lançado um olhar ao seu relógio de pulso, todavia, paralisada da cabeça aos pés, o mais puro e álgido horror priorizou qualquer lógica: além dela própria e do motorista, o ônibus estava inteira e assustadoramente deserto. Através das janelas, nada que pudesse ser discernido se não negrume absoluto.

Só então Alice consultou seu relógio: seis minutos exatos após a meia-noite (informação bizarramente ratificada pelo visor colorido do seu aparelho celular). Como era possível?

O silêncio macabro que imperava era perturbador e inquebrantável até mesmo frente ao marchar mecânico do transporte público. Ressoavam sequer seus passos desesperados pelo piso metálico sob suas sapatilhas de camurça, ao ela disparar-se na direção do condutor solitário.

"Moço? Aonde estamos, por favor?", perguntou Alice.

Fora suas mãos a manusear o volante, o homem era uma verdadeira estátua. Seu peito não se movia nem mesmo de uma maneira que indicasse a qualquer um de que estava respirando.

"Moço? Por favor, moço, onde é que eu estou?", ela tornou a questioná-lo, sem sucesso, e a ponto de desabar em prantos.

Alice precisou agarrar-se com tanta força ao ferro de apoio quando o carro subitamente brecou, que ela por um instante acreditou que seria atirada pelo para-brisa. Uma dor fulminante no seu peito logo se espalhou pelo resto corpo, cortesia da intensidade com que o objeto cilíndrico se imprensou contra seu corpo franzino.

Quando ela soergueu o rosto, viu-se diante da fisionomia sombria de um homem abominavelmente alto. O motorista, ainda de costas, havia se erguido do seu banco. Era de tais dimensões que precisava dobrar consideravelmente a coluna para evitar o teto. A cor de sua pele era, literalmente, tão escura quanto às trevas do lado de fora do veículo, e Alice podia jurar que, quando as lâmpadas sobre suas cabeças se apagavam, ainda que de maneira muito efêmera, ela ainda conseguia enxergá-lo, com nitidez chocante, como se sombras fossem do que ele próprio fosse feito.

A jovem conseguiu enjaular um berro bem no fundo de sua garganta, mas o mesmo não podia ser dito de seu choro:

"Moço? Moço, pelo amor de Deus, aonde é que eu estou?", gaguejou com a debilidade de um enfermo.

Foi quando as portas da frente se abriram, vagarosamente, emitindo ruídos de engrenagens enferrujadas, imediatamente permutados por uma série consecutiva de passos, pesados e barulhentos como os de um animal de porte, à medida que o piloto do ônibus abandonava a menina, penetrando a bruma preta. O contorno de sua figura massiva mesclou-se às trevas de uma forma anormal e perturbadora, como o segundo ingurgitasse o primeiro.

"Moço?! Para onde é que você vai?! Moço! Não me deixa aqui, por favor! Por favor! Volta!", e suas lágrimas vieram, sem misericórdia, sarapintando a face pueril com os traços mais primordiais da vulnerabilidade e da cobardia.

Amaldiçoou-se por não ter tido a coragem de segui-lo. Amaldiçoou-se por ter abdicado do conforto e da segurança do seu lar em troca da idiotice repugnante que a havia colocado nesse perigo para começo de conversa. Amaldiçoou suas amigas e a futilidade delas, tanto quanto Implorou por sua amizade e socorro em seu momento de necessidade. E então, rastejou-se de volta ao banco onde havia deixado temporariamente a sua mochila, apanhando o celular e tentando entrar em contato com cada número ali catalogado.

Por ora, Alice não se viu submetida ao pânico proporcionado àquele que, numa situação de risco, descobre que seu telefone está, tipicamente, ou sem sinal, ou com a bateria prestes a se esgotar. Muito pelo contrário, o que ela experienciaria seria amargura de magnitude e suplício ainda mais severos: a esperança, por menor que fosse, sendo violentamente arrancada da ponta de seus dedos por chamada atrás de chamada atrás de chamada, todas não atendidas.

Ela ligou, ligou e ligou, e continuou ligando, até que quase uma hora se passasse. A cada nova chamada, a cada novo toque, uma adaga transpassando quaisquer expectativas inocentes que a jovem pudesse ainda ter de que não precisaria enfrentar aquilo tudo sozinha.

Sozinha.

Só.

Deus, aquilo era real? Não podia acreditar que um ser-humano fosse capaz de tremer com tanta veemência, mas lá estava ela: as mãos, suadas, valsando freneticamente em convulsões incontroláveis. Pernas igualmente vacilantes. O coração estourando dentro do peito.

Quando as lâmpadas deram o primeiro sinal de que cederiam definitivamente em breve, ela temeu o pior. Tal processo, todavia, principiou-se muito devagar, como uma elaborada e metódica tortura: o que era um segundo naquele breu, logo virou dois, e o que eram dois se tornaram cinco, até que os intervalos de escuridão passassem a vigorar, trazendo consigo um perigo cada vez mais real de uma ribombante apoplexia.

Somente seus soluços excepcionavam aquele silêncio sinistro.

"Pai... mãe... Deus, socorro... socorro, por favor..."

Mas ninguém replicou. Nenhuma prece sua foi atendida.

Só havia ela, pulverizada sob a esmagadora extensão total de seu inconsolável desamparo, de sua irreparável solidão: o medo não da morte, mas do que se escondia bem diante dela, camuflada na penumbra, observando-a com olhos que jamais se cerravam... a face nua e crua da nictofobia encarnada, mórbida e doentia.

Logo, quando ela, e tudo mais ao seu redor, se viram integralmente circunvalados pelas trevas, Alice contemplou o abismo...

... Apenas para descobrir que o abismo, de fato, também a contemplava.

"Fuja", vibraram as sombras, sem lábios. Ela alucinava.

"Fuja", imploraram as cascavéis e os morcegos, entrelaçados aos ferros. Ela alucinava.

"Fuja", sussurraram as cadeiras, transformadas em criaturas inenarráveis. Ela alucinava.

"Fuja", murmuraram os vermes, os ratos e as baratas em que se metamorfosearam os papéis de biscoito, as latas de refrigerante, e os diversos outros tipos de lixo espalhados sob os assentos. Ela alucinava.

Ela alucinava. Não era real.

Ela alucinava, tornava a se repetir.

Não era real. Não era real. Não era real.

Ela alucinava. Ela alucinava. Ela alucinava.

"E-eu vou fugir", Alice afirmou, resoluta, após três longos minutos de agonia, análogos ao afogamento, em que ela hiperventilou. Seu próprio corpo, descontrolado, asfixiando-a em seus próprios lamentos. Era tudo um sonho, ou ela morreria ali?

De pé, diante das escadas de desembarque escancaradas do ônibus, a garota projetou um mirar derradeiro na direção de que viera: as trevas ainda estavam lá, como se perpetuamente congeladas no tempo. A presença de seres anormais, de serpentes ou de vampiros, de qualquer inseto, contudo, não podia mais ser detectada.

Só estava escuro.

Motivada por essa centelha tímida de coragem que aqueceu-a por dentro, Alice atirou-se de uma só vez para fora. De olhos fechados nem por um instante.

Havia removido suas lentes, substituindo-as pela armação menos desgastante e mais confiável dos seus óculos comuns.

Exposta às sombras e a mercê delas, muito, muito lentamente, sua visão acostumou-se a obscuridade, revelando gradualmente o panorama enegrecido, entretanto familiar, do seu ponto de ônibus, há cerca de um quarteirão da esquina da rua de sua casa.

O semblante ostentado pelo motorista atrás dela era o da mais autêntica loucura; feições distorcidas, retalhadas por um ódio visceral que beirava o demoníaco, inconformação fomentada por uma cólera monstruosa.

Quando as portas se fecharam atrás dela, o veículo finalmente partiu, impossivelmente inaudível, feito um fantasma que se desvanece no primeiro sopro gelado da madrugada. Um espectro que Alice exorcizou com suas próprias mãos.

Uns poucos instantes depois, e ela desfaleceu. Desmaiada sobre uma poça nauseabunda, feita dos restos semi-digeridos do seu almoço, que ela prontamente tratou de expelir numa selvagem crise de espasmos e de contrações que perdurou por quase vinte minutos, a menina sonhou...

... Sonhou com uma criança de pijama e cabelos longos, em posse de sua fiel lanterna, encolhida sob suas cobertas, alerta e vigilante aos terríveis monstros que cobiçavam-na de dentro do armário.

... Sonhou com a vez em que o irmão mais velho da criança a trancou no sótão, vítima de uma brincadeira de mal gosto. Sonhou com a vez em que seu pai alcoolizado a agrediu, quando a mesma criança recusou-se a apagar as luzes do próprio quarto. Sonhou com a vez em que a cortina da sala uma vez oscilou no escuro numa noite, lembrando a criança de um gárgula no ápice do seu voo. Sonhou com a vez em que seus amigos e amigas mais próximos fizeram chacota dessa sua irracional aversão pelo escuro, até que, por fim, Alice sonhasse apenas com o nada.

Foi daí que Alice também parou de sonhar, e de viver.


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