Eco escrita por Verônica Ancet


Capítulo 1
Capítulo Único




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O tempo que ela tinha antes do senhor Cross verificar o trabalho dos funcionários, constatando somente então a ausência da garota, era de exatos doze minutos. O que lhe dava cerca de sete minutos para terminar o salgado roubado na loja de conveniência, e mais cinco para ter uma de suas complexas reflexões sobre a vida. Verdade que não se arrependia de ter saído de Nova York, principalmente depois do aumento da rigorosidade presente na política anti-herói. Deixou um mínimo sorriso escapar ao pensar numa única pergunta. Quem seria ela sem a Hit Girl? Já havia descoberto uma vez, e não havia gostado nem um pouco do resultado. Sem a Hit Girl, era apenas a máscara de uma adolescente normal, tipo de vida que jamais a satisfaria. Precisava da máscara como uma forma de aceitar a si mesma, o passado, as lembranças e, principalmente, as lutas. Quantas lutas não havia vencido, corporal e mentalmente, por conta da Hit Girl?

A questão é que agora a ação obtida não chegava nem perto de uma medida satisfatória. Claro que era injusto comparar Nova York com um estado como o Maine, tão perto do grande irmão branco do norte, com seu tempo gélido e a atmosfera desgastada, como a pintura velha de um oceano. Mas ainda assim, em noites frias como aquela, seu corpo sentia falta do combate. As mãos tremiam na hora de segurar os salgados envelhecidos da loja do senhor Cross, os olhos famintos percorriam do posto de gasolina ao movimento dos poucos carros nas ruas. Um único movimento, uma única inquietação, e ela poria em risco toda sua estabilidade para sentir novamente o gosto de ferir um criminoso. Estava em seu sangue e sua natureza.

Infelizmente, o tédio também começava a fazer parte da equação. Olhando para baixo, conferiu o último pedaço do salgado, comendo-o sem gosto enquanto amassava o guardanapo. Estava sentada numa cadeira branca, parte das poucas que ficavam do lado de fora. Logo, logo o senhor Cross voltaria, mandaria que recolhesse os móveis de plástico e lhe daria um belo sermão sobre não abandonar seu posto. Que falasse, reclamasse, xingasse a mãe de qualquer um. Mindy merecia aquele tempo de folga mais do que qualquer pessoa.

Fechou os olhos, levada pelas memórias a um tempo onde tudo era mais simples. Eram dois períodos na verdade. Em um, encontrava-se com seu pai, decorando armamentos e aprimorando suas habilidades. Em outro, estava com Dave, orientando-o para ser seu novo parceiro. Uma onda de irritação percorreu-lhe o corpo diante de um pensamento cruel, afinal por que todo período de paz precedia algum caos, tormenta ou angústia?

Se o pai estivesse ali, talvez formulasse alguma resposta.

Mindy olhou pela janela de vidro, conferindo o último minuto livre esgotar-se enquanto o senhor Cross cruzava as prateleiras, olhos comprimidos e irritados, as mãos mexendo-se frenéticas como se em busca de um pescoço para apertar. Aquele não era um emprego ruim, de verdade. Com apenas alguns documentos falsos e uma boa nota de falsa simpatia, Mindy conseguira, pela terceira vez desde que se mudara, um serviço razoável para bancar sua estadia no hotel mais barato da região. Em resumo, não havia motivos para abandoná-lo.

Mas também não houvera motivos para abandonar o trabalho no supermercado ou na padaria, respectivamente três e cinco meses atrás. Por isso, sem dizer uma só palavra, tudo que a adolescente fez foi recolher sua jaqueta, colocando-a sobre os ombros e dando passos firmes na direção da rua principal. Sem palavras de despedida, fingindo ignorar os berros inconformados do senhor Cross uns bons metros atrás de si. Apenas por diversão, girou nos pés, dando-se apenas um segundo para levar uma das mãos à testa, quase uma continência, como forma de despedida ao velho senhor de barriga proeminente e respiração enfurecida. Ah, não demonstre tantos ressentimentos, senhor Cross. O senhor não entenderia.

De fato, ninguém naquela cidade entenderia. Os crimes eram resolvidos com policiais, ou mesmo esquecidos pela falta de importância. Mindy colocou as mãos nos bolsos da jaqueta, expirando ondas de fumaça para distrair-se com as pequenas nebulosas diante dos olhos. A decisão de se afastar fora certa, o lugar escolhido, esse nem tanto. Se ao menos houvesse uma quebra de rotina... Tolice! Toda vez que abandonava um emprego era a mesma coisa. A mesma sensação de falta, tão profunda, caindo constantemente num vazio interior, trazida à tona por cada momento de nostalgia ou sufoco. Parou com os passos, pensando em voltar para trás, desculpar-se com o senhor Cross. Era apenas uma adolescência com hormônios á flor da pele, que podia fazer? Era impulsiva. Encolheu os ombros, uma parte de si não acreditando no quão fundo teria de enterrar o orgulho, e deu meia volta.

Sabe qual a maior graça nas artimanhas do universo?

É que ele concebe os desejos quando estes fogem de nossas expectativas.

Estava ali um homem, alto, corpulento, uma máscara deixando apenas os olhos visíveis. Arma apontada para si e voz grave, urgente ordenando que passasse tudo. Anda, menina, carteira, dinheiro, tudo. E pela forma com a qual a olhava, algo de euforia nos olhos escuros, deixava claro que aqueles eram apenas seus planos iniciais. A noite seria longa e cheia das mais variadas conquistas. Mindy tinha de concordar com essa parte, mesmo que seus ideais de diversão pudessem ter uma mínima diferença. Sabem, não muita coisa. Só um pouquinho.

— Já entendi. - Anunciou ela com voz calma, retirando as mãos bos bolsos. Mantinha os movimentos lentos, continha ao máximo a excitação na voz. Tinha de manter a guarda do outro baixa para pegá-lo de surpresa. Mas seria uma boa ideia? Francamente, com todos aqueles meses esperando uma boa luta, quanto maior a dificuldade melhor.

Mas não, jamais poderia ser tão imprudente. Sem contar que seu corpo não aguentaria. Começou a guiar, muito lentamente, as mãos ao bolso da calça. Os olhos desviaram do ladrão, um segundo, dois, e ela conseguia ouvir a respiração atravessada do outro.

— Anda logo, vadia!

— Aqui. - De imediato, voltou-se em sua direção, os olhos bem abertos na tentativa de forjar qualquer resquício de medo. Mas o homem parecia convencido, balançava a arma como quem só está impaciente. Isso, muito bem. Continue assim. A mão da garota agarrou a carteira e os músculos da perna clamaram pelo chute. Um único e certeiro no estômago daquele infeliz. Só mais um instante para puxar minimamente o objeto de couro, atraindo então a atenção dele, e de uma vez por todas um gemido grave de dor sairia abafado pela máscara.

Mas espere. Aquilo acontecera antes do que Mindy previra. Dando alguns passos para trás, colocando-se rapidamente em posição de defesa, percorreu os olhos pela cena que se desenrolava. E se não esboçou reação alguma, foi puramente por acreditar que seu cérebro finalmente cedera à nostalgia, mesclando imagens antigas com as recentes, afogando-a na mais intensa loucura. Foi preciso um período de tempo para compreender que não era o caso, e que de fato havia uma outra garota, ágil e veloz, usando um traje de super heroína enquanto acertava repetidos golpes no ladrão de antes. Uma cotovelava em suas costas, seguida por um chute, e logo em seguida direcionava-se entre ele e Mindy para acertar-lhe um bom soco no rosto encoberto. Finalmente, chutes no estômago. Tão fortes que só podiam vir de alguma raiva anterior, coletada por outros casos vindos do mesmo criminoso.

Ao final do ato, a estranha arrancou a máscara do rapaz, deixando á mostra um rosto juvenil, não mais de dezenove anos, completamente retorcido pela dor.

— Já falei. Não é porque a polícia não tem provas que vai escapar ileso de cada roubo ou abuso, Sean. Último alerta. Na próxima tentativa, te quebro de verdade. - Cuspira em sua face, jogando a máscara poucos centímetros além. Depois, prestando atenção nas vozes que se aproximavam, passos velozes em direção ao cenário atípico, a estranha constatou o quão longe tinha ido. Com certeza atraíra atenção para si. E pior, bem ao lado havia uma garota embasbacada demais para ter qualquer reação coerente.

Observaram-se, um único instante no qual tentaram compreender-se. Mindy abriu a boca, procurou palavras que descrevessem o que sentia. Era um misto forte de admiração, incredulidade e, principalmente, empolgação. Jamais em sua vida pensou em ter uma parceira, mas estava ali a oportunidade de ouro.

Caso, é claro, a estranha não saísse correndo pouco antes que qualquer palavra fosse devidamente formulada. Mas é claro! A política anti-herói espalhava-se rapidamente pelos estados, e qualquer descuido poderia colocar a estranha justiceira atrás das grades. Não foi preciso pensar muito para saber o que deveria ser feito.

Sem sequer chamá-la, sabendo que aquilo apenas a assustaria mais, Mindy passou a correr também. Perseguia a outra sabendo que cedo ou tarde esta seria vencida pelo cansaço. E sabe-se lá quantas ruas percorreram até que de fato acontecesse. Cruzavam ruas calmas, movimentadas, ouviam buzinas de carros e exclamações apavoradas. Os poucos transeuntes naquele horário não conseguiam evitar apontar-lhes os indicadores e abrir as bocas para fazer comentários aos amigos, donos de lojas, animais de estimação, o que estivesse ao lado. Você viu? Viu o que passou por aqui? Por Deus, essas meninas sabem correr.

Os poucos fragmentos que Mindy ouvia faziam-na querer ou revirar os olhos, ou rir em agradecimento. Chamar atenção não era algo de fato relevante para si, mas se pudesse fazer a diferença, mostrar quão grande era o alívio trazido pela quebra da rotina e normalidade, já estaria satisfeita. Bem, com isso e com a captura daquela estranha. Não sabia ao certo qual seria mais difícil, por isso mesmo tentava bolar novos caminhos, cercá-la em becos, impedir passagem prendendo-a em ruas sem saída. Mas a outra parecia, não, era uma profissional, e de quebra conhecedora de todas as curvas, encruzilhadas e armadilhas daquela cidade. Desviava com uma habilidade invejável, ganhando impulso através de muros, escalando telhados, ousando por cercas vivas, de arame ou arbustos. Se Mindy fosse uma pessoa normal, seu fôlego já teria-na abandonado uns bons metros atrás. Mas não era. Nunca seria. Sorriu confiante, chegando á uma praça vazia, na qual sabia que conseguiria uma vantagem sobre a outra heroína. Bastava prendê-la entre os brinquedos de crianças e...

Ou simplesmente assisti-la parar de correr de repente, girando para encarar sua perseguidora, a expressão que misturava descrença com irritabilidade. Mindy havia feito algo de errado?

— Escuta, que fixação... - Uma pausa mais do que justificável para recuperar o fôlego. As mãos foram para as costas, as quais encurvaram-se para trás e todo o oxigênio do mundo pareceu tentar ser sugado para os pulmões da garota. Agora com calma, Mindy podia conferir alguns traços mais detalhados do físico alheio. Cabelos castanhos muito curtos, repicados e deixados à mostra pela máscara verde que apenas lhe cobria os olhos. Sim, o verde familiar, marca típica do Kick Ass. Talvez por isso Mindy também tivesse sentido que devia alcançá-la. Mas em todo caso, além disso também havia um corpo um pouco mais voluptuoso do que parecera à princípio. Com toda a correria, por um instante, parecera não mais do que um fiozinho de gente. Mas o que realmente chamava atenção era seu traje, o qual descreveremos com mais calma em seguida, pois a morena acaba de recuperar o fôlego. - Que fixação é essa por mim? Eu te ajudei e você... E você ficou maluca?

— Você é um dos legados do Kick Ass. - Verdade que não se sentia confortável dando à Dave todos os créditos, principalmente quando sempre deixara claro ter sido seu pai o primeiro e verdadeiro herói. Porém tinha de dar uma colher de chá, o fato da estranha ter aderido á ideia já era digno de aplausos. Os olhos da outra, de um escuro denso e analítico, finalmente pareceram estranhar a condição física de Mindy. Poucos sinais de cansaço, respiração apenas levemente ofegante. Quais as chances?

— Cosmic Fury. - Com desconfiança, aguardou mais alguns instantes enquanto puxava o ar entredentes. Por fim, com um aceno de cabeça, apontou para Mindy, como se perguntando qual seria a identidade da outra. Havia algo de extremamente selvagem e arisco naquela figura, reforçado pela escolha do nome. Foi o que despertou na loura o instinto de cautela. Tinha a máscara sempre guardada no bolso, podia provar caso afirmasse ser quem era. A questão era o preço que exigiria pela informação. Deu um sorriso de canto, encolhendo os ombros enquanto ameaçava dar alguns passos para a frente. Só ameaçava, conferindo as reações de Cosmic.

— Eu estaria em desvantagem, não é?

Cosmic abaixou a cabeça, ponderando enquanto traçava círculos pequenos. Articulando muito com as mãos, mesmo que seus instintos alertassem sobre os riscos, começou a estalar os dedos freneticamente por encontrar uma solução. Se a loirinha não topasse, bem, o que poderia ser feito, feito teria sido.

— Me fale sua identidade e eu revelo a minha. A minha verdadeira.

Longos segundos se passaram. Poderíamos pensar aqui que a grande questão foi o medo de confiar em Cosmic, mas precisamos entrar na mente de Mindy para compreender o que de fato acontecia. Não era o medo, mas a vontade. Queria confiar nela, e a ansiedade lançava alertas ao cérebro, mandando-a ser cuidadosa apesar dos instintos. Analisar as possibilidades, as chances, tudo que colocaria a perder.

Mas só de pensar em tudo que poderia ganhar, a mão avançava para onde antes buscara a careira, dessa vez direcionando-se à máscara. Respirou duas vezes, fechando os olhos e tentando ser tão racional quanto seu pai aprovaria. No pior dos casos, Cosmic teria sua aparência real e identidade como heroína, entregando ambas à polícia. Porém nesse cenário, Mindy tinha confiança o bastante em suas habilidades para conseguir derrotar Cosmic, deixando ambas em patamar de igualdade sobre as informações obtidas. Inspirando fundo, porque mesmo toda confiança do mundo não seria o bastante para deixá-la confortável com a exposição, exibiu a máscara negra.

— Hit Girl.

Mindy esperava tudo. Sério, tudo mesmo. Uma fuga, olhar descrente, talvez até um tratamento exageradamente fascinado. Mas não aquele gargalhar divertido, no qual Cosmic teve de apoiar-se nas grades de um brinquedo para manter o equilíbrio.

— Sério que vai jogar com essa? Boa, garota, boa mesmo.

— Quer comprovar? - Não deixou-se ser abalada, colocando a máscara apesar da falta do traje completo. Aos poucos a risada de Cosmic foi cessando, dando lugar a um olhar incrédulo, sendo quase possível ler seus pensamentos. Gradativamente aceitando a verdade, começando por um irônico não pode ser, passando pelo não, não teria como, e parando no clássico seria possível.

— Ta bom então. - Ergueu as mãos, o sorriso sarcástico ainda deixando óbvia sua relutância. Começou a caminhar com calma na direção de Mindy, os planos mais do que evidentes. - Desafio simples. Me imobilize e eu acredito que você é a Hit Girl.

Posicionaram-se. O sorriso confiante de Mindy, pedido óbvio para que Cosmic mandasse seu melhor, predizia uma lua cansativa. Nenhuma das duas estava disposta a ceder, e de certa forma, tal teimosia da morena causava em Mindy um inflar de seu ego. Se Cosmic relutava tanto, era unicamente por considerar Hit Girl uma verdadeira lenda, impossível de ser copiada, única cujas habilidades poderiam superar as próprias. Bem, se era uma demonstração de força que Cosmic Fury exigia, era exatamente o que teria.

Sem dar-lhe um único instante de hesitação ou maior reflexão acerca do que acontecia, Mindy avançou, ameaçando acertá-la com um soco no queixo. Ao ter o punho segurado firme, tal como previra, impulsionou o corpo para que um chute certeiro fosse desferindo nas costelas de Cosmic. A morena desvencilhou-se habilmente, dando dois passos para trás, quase caindo encostada nas grades do brinquedo. Teve apenas tempo de abrir os olhos antes de conferir outro punho se aproximando. A cabeça virou para o lado e, por um centímetro, dedos não se chocaram contra aço. Seria algo fatal para a decisão da luta.

Mas os problemas não acabavam. Cosmic atacava de agarrar-lhe o braço, girando atrás das costas, fazendo com que Mindy tivesse de sugar dor e oxigênio pelos dentes cerrados. Jogou o peso do corpo para a frente, aproveitando-se do ínfimo instante de distração da morena para mirar o joelho e acertá-lo com o calcanhar. Um golpe fraco, não muito útil, mas suficiente para que o aperto em seu braço ficasse frouxo o bastante para poder escapar. Virou de frente para Cosmic, passando um dos braços por seu pescoço e jogando-o para trás, sendo agora a coluna da outra a curvar-se, os dentes da outra a rangerem.

Foi a vez do pescoço de Mindy ser fortemente seguro pela mão alheia, apertado a ponto de fazê-la sufocar, comprimindo as pálpebras. Da forma como pôde, o joelho chocara-se contra as costas de Cosmic, dando um instante para que se separassem. Já arfavam, mas ainda era cedo para tirar conclusões. E foi a vez da morena avançar, desafiada, olhos em chamas pela curiosidade gritante. Poderia ser? Seus movimentos eram rápidos e sua perseguidora desviada facilmente, segurando seus pulsos, acertando-lhe atrás das pernas. No momento de queda, tudo que pôde fazer foi trazer a loira consigo, transformando ambos os corpos numa única massa na qual ambas as forças desafiavam-se. Não desistiria, de jeito nenhum. Hit Girl fora sua inspiração anos atrás, e a não ser que fosse derrotada, jamais aceitaria quaisquer teorias ou explicações da loirinha. Tomada pela fúria, pelo instinto de luta irrefreável, levou novamente a mão ao rosto da perseguidora, dessa vez impedindo-a de respirar.

O que não contava era com uma beça porção de dentes fincando-se na pele, fazendo sangue fluir pelos cortes. Cosmic gritou, tirando as pernas dos quadris da loira, deixando-a livre, mas também trazendo a si mesma alguma liberdade. Não podia ficar assim, simplesmente não podia! Mais um avanço, punhos de uma boxeadora experiente, e mesmo assim não era o bastante. Um único golpe conseguiu passar pela defesa da outra, fazendo com que Mindy caísse quase sem fôlego. Era agora!

A mão foi parada no ar por um chute de Mindy, fazendo com que um estalo mostrasse os danos causados no pulso agressor. Cosmic urrou, agarrando a parte machucada, curvando-se para afrente em completa descrença. Conhecia aqueles movimentos, e somente outra lutadora treinada poderia impedi-la mesmo desnorteada. Cambaleando para trás, a morena mantinha os olhos muito abertos, o choque visível escapando numa única pergunta automática.

— Quem é você?

Tinha de ouvir mais uma vez. Limpando o sangue da boca, a loira colocou-se de pé, retirando a máscara e exibindo um dos sorrisos que só poderiam pertencer à lenda.

— Mindy Macready. Codinome, Hit Girl. - Estendeu a mão com o pano roxo, num pedido de cumprimento. Pela primeira vez viu as defensas da morena a cair, um sorriso leve de alguém que contesta o absurdo. A própria máscara verde foi retirada, mostrando um rosto de aparência que fazia jus à personalidade. Meiga com fortes notas de selvageria.

— Monique Dawnton. E você já sabe o resto. - Deu-lhe um aperto de mão trêmulo, e assim permaneceram, apenas respirando a realidade absurda durante longos instantes. Havia tanto para ser dito, perguntado, exclamado, festejado, que fosse! E ao mesmo tempo, aquela forte sensação reinava, de que a qualquer momento, ao menor sopro, tudo que acontecera naquela noite teria fim. Lutando contra aquela sensação, sabendo ser em boa parte apenas um efeito de encontrar-se diante da figura admirada, Monique começou mais uma vez. - Como foi que você--

E vejam bem como a vida nos é irônica. Nesse mesmo instante, uma viatura aproximava-se. Ainda que a política anti-herói não fosse tão rígida por aqueles lados, ela ainda estava presente, pronta para prender qualquer pessoa fantasiada. Diante da sirene, as duas se sobressaltaram, voltando-se na direção dos policiais cada vez mais próximos. A morena praguejou, soltando a mão de Mindy apenas para poder tomar-lhe o pulso.

— Vem comigo.

Mais uma vez, desataram a correr.


— Pode ficar à vontade. - Monique exclamou tão logo acendeu a luz, trazendo os contornos da casa para sua - esplêndida - visita. Não era um lugar muito luxuoso, mas apresentava seu charme. Tinham entrado pela janela do quarto da morena, e o ambiente apresentada todo tipo de toques pessoais, como paredes pintadas, adesivos nos espelhos e vários recortes espalhados pelo chão. Notícias de jornal, trechos de livros, fotos imprimidas de cantores famosos e atores legendários. Mindy pegava algumas, mas conforme percebia o quão difícil era reconhecer aquele tanto de rostos e cenários, desistia e punha-se a observar outra coisa. Por fim, identificou algumas letras de músicas escritas na parede, deixando-se divagar enquanto caía sentada na cama espaçosa e desarrumada. - Pode reparar na bagunça, mas não fale nada. Eu nunca ia esperar receber a...

Parou, a boca bem aberta, respirando fundo enquanto punha as mãos nos bolsos. Não sabia o que dizer. Bem, tecnicamente ela sabia, mas ainda era muito bizarro encontrar palavras. Por fim balançou a cabeça, apontando para a porta com desenhos marinhos feitos à mão, e balbuciou um pedido de desculpas.

— Vou me trocar e já volto.

Mindy aproveitou-se daquele tempo sozinha para melhor vasculhar o quarto. Querendo conferir melhor o nível de sua provável futura companheira, deslizou um pouco pela cama, passando a mão por debaixo do travesseiro. O canivete fez com que sorrise mais confiante. Precavida, nada mal. E um canivete razoável para o preço, pelo que pôde constar ao tomá-lo em mãos, pouco antes de esconder novamente. Algo havia despertado sua atenção, pondo-lhe em alerta.

Uma música estilo Velho Oeste?

Da porta do banheiro, uma garota semi vestida avançava rapidamente, um verdadeiro trovão de cabelos emaranhados e blusa de frio apenas parcialmente cobrindo o corpo. Por um momento, Mindy assustou-se com aquela figura de shorts curtos, pantufas de algum animal inidentificável tamanha gastura feita pelo tempo, avançando em sua direção como uma leoa na savana. Mas o mais preocupante nem chegou a ser o momento bizarro, e sim o fato de seu corpo não ter ficado em posição de defesa imediatamente.

Bem, ela se deu um desconto. Apesar da expressão quase agressiva, havia algo de muito cômico e meigo naquela figura. Desatou a rir quando Monique pegou o celular, atendeu-a esparramando-se pela cama, uma das mãos tirando os fios repicados dos olhos.

— Tia? Ah, não, quem ta comigo é... - Somente então percebeu que conhecia aquela garota pelas ruas. Inventou rapidamente uma mentira, sequer conseguindo sentir-se culpada pelo ato. Era a Hit Girl, oras! - Mindy Macready, uma aluna nova da faculdade. Chegou essa semana e veio me ajudar com as tarefas de casa.

Depois de ouvir alguma coisa, franziu as sobrancelhas, exclamando um som prolongado de dúvida sobre como responder. Colocou-se de pé, passando a caminhar pelo quarto enquanto ajeitava a blusa e os cabelos. Novamente Mindy estava em alerta, também erguendo o corpo, mas permanecendo sentada na cama que se mostrava quente e confortável demais para ser abandonada. Permaneceu ali, esperando enquanto tentava identificar o que a tal tia de Monique lhe havia perguntado.

— Não, não é isso. Não, sério, não é isso. Só... São aqueles exercícios de cálculo um. Estão me matando. - Algumas concordâncias nasais e um suspiro de alívio seguido de risadas. Esquisito. - Certo, eu te aviso quando for dormir. E não sei se ela vai ficar. Ligo mais tarde pra avisar sobre isso também. Ta bom? Certo, divirta-se com Erik.

— Ta tudo bem? - Perguntou tão logo viu Monique desligar o telefone. A morena apenas fez um gesto de mãos, indicando despreocupação, e seguiu na direção do computador. Levou-o a cama para que ambas pudessem ver alguma coisa.

— Minha tia só é meio super protetora. Sai quase todas as noites com meu ex-professor de História, e depois quer saber com quem eu ando. - Revirou os olhos, e aquela atitude forçosamente desleixada, simbolizando claramente que não revelaria muito além, fez com que Mindy aceitasse a desculpa por ora. Mais tarde teria certeza do que Monique escondia, só um pouco mais tarde. Primeiro ela mesma tinha de estabelecer como ficaria a relação de ambas. Para seu alívio e grande surpresa, ali estava o próprio rosto, mascarado como Hit Girl no plano de fundo do computador. - Bom, como da pra notar, mesmo o Kick Ass sendo o precursor do movimento, você foi minha maior inspiração pra criar a Cosmic Fury.

— De onde veio o nome? - Deitou-se de bruços, passando a observar a quantidade de imagens suas e de outros heróis guardadas no computador da morena. Calmamente, vinha a explicação, sem esconder o timbre sonhador.

— Eu e uns amigos do ensino médio sonhávamos em fazer um filme todo nosso, sabe? A gente iria dirigir, atuar e filmar. Bolamos todo o roteiro e o título era Cosmic Love. - Riu meio embaraçada de si mesma, abrindo agora a pasta com modelos de roupas, muitas nas quais era possível identificar bases para seu traje atual. - Mas com o passar do tempo fomos mudando, amadurecendo. E eu percebi que se queria quebrar a rotina e trazer alguma coisa de boa ao mundo, nem que fosse num pedacinho da minha cidade, não podia levar o amor como base. Nem sempre as pessoas querem saber de amor. - Apenas murmurou a última frase, mais uma vez deixando um sentimento transparecer. Mágoa. Como nota mental, Mindy percebeu o quão transparente era Monique, e principalmente que havia uma razão por trás de seus atos.

A última coisa que fez no computador foi voltar algumas pastas. Mas havia uma a ser revelada dentre aquelas classificadas como mais importantes, certa pasta com nome sem lógica, apenas uma junção de letras aleatórias, e que no ícone apresentava pessoas reais. Mindy ainda tetou prestar atenção, identificando um rosto feminino antes que a tela desaparecesse. O notebook havia sido fechado com um único movimento rápido, seguido de um suspiro exausto enquanto Dawnton recostava-se na parede.

— Depois disso, foi só raciocínio lógico. Queríamos deixar nossa marca com o Cosmic Love, mas meus planos eram mais furiosos. Cosmic Fury. - Saboreou lentamente o próprio nome, tombando a cabeça para trás enquanto expirava mais uma vez, tirando toda a tensão dos ombros. Mindy aproximou-se, ficou bem ao seu lado, partilhando do mesmo ar e da mesma atmosfera. Quase conseguia vislumbrar as crianças correndo pelo pátio da escola, suas risadas alegres, leves como uma pluma. E seus planos, infinitos arcos traçados no céu, como o mais belo dos arco-íris.

— Foi uma ótima escolha.

— Hit Girl ainda é mais legal. - Encolheu os ombros, movendo a cabeça em acenos positivos. Com o final dos curtos risos, suaves como as memórias, pela primeira vez Mindy flagrou-se com vontade de cutucar alguns trechos de seu próprio passado.

E a cada instante com Monique, ficava mais difícil encontrar razões para não fazê-lo. Sentia que não seria doloroso e desesperador como das outras vezes, trazendo reflexões pessimistas a respeito de quão breves eram seus dias de felicidade. Talvez pudesse dar uma chance final. Era uma lutadora, afinal.

— Foi meu pai quem me deu.

— Big Daddy? - Perguntou incerta, lembrando-se da programa transmitido anos atrás. Aquele que se tornara quase um tabu para a chamada nova geração de heróis. Mindy acenou uma vez confirmando, os lábios comprimidos apesar da expressão forte. Empurrou as costas para que endireitasse a coluna contra a parede e continuou.

— Depois daquilo Kick Ass foi meu parceiro. Me afastei por um período, mas não teve jeito. Não adianta se esforçar pra ser quem você não é, entende? - Com semblante sóbrio, encarou a morena, vendo ali uma forte identificação.

— E para isso digo amém. - Fechou uma das mãos em punho, o qual chocou-se pelo feito por Mindy. Não sabia se já podia fazer perguntas sobre a vida da loira, mas se por um lado havia influência da curiosidade natural gerada pela admiração, por outro julgava sua dúvida perfeitamente compreensível e lógica. Lambeu os lábios, hesitante, buscando a coragem final. - Mas como você veio parar no Maine?

— Muita coisa aconteceu em Nova York. Virou um verdadeiro campo de batalha, e foi a segunda vez que tive certeza de que iria morrer. - Captando a pergunta muda de Monique, fez alguns gestos breves com as mãos, falando de forma rápida e simplista demais para o conteúdo. - A primeira foi quando fui matar um cara e ele tinha uma bazuca no escritório, enfim.

— Coisas de todo dia. - Não conseguiu evitar o comentário várias oitavas acima do timbre normal, os traços congelados numa expressão forçada demais de "você não odeia essas coisas rotineiras?". Mindy riu de leve, imaginando que em algum momento poderia explicar melhor a história, apenas não queria interromper a anterior. Não quando havia um objetivo tão importante por trás.

— Nessa eu acabei numa batalha corporal com uma russa.

— Uma russa. - Muito bem, devia ser por isso que ídolos raramente conheciam seus fãs.

— Você ficaria surpresa como os esteriótipos casavam com ela. - Os ombros moveram-se desconfortáveis ao lembrar daquela luta em questão. Ainda pensou em citar que somente vencera por conta da injeção de adrenalina, mas provavelmente aquele era o tipo de detalhe que se esconde ao máximo, no mínimo até que a pessoa esteja acostumada com os relatos bizarros. - Mas o foco não foi a luta, e sim o que veio depois. Eu senti que precisava de um tempo pra mim, longe das ruas de Nova York, de toda a agitação que acordava a Hit Girl. Foi só então que eu percebi uma coisa muito importante.

— E o que foi? - Sussurrara, inclinando-se mais na direção de Mindy, cuja voz havia se abaixado na última frase. Algo de teor filosófico parecia prestes a ser revelado.

— Toda essa calmaria é muito, mas muito entediante.

— Não acredito que fiz minha melhor cara de reflexiva pra isso. - Jogou as mãos para o alto, ajeitando-se na cama, vendo que Mindy fazia o mesmo. Logo estavam sentadas, uma de frente para a outra, Monique rapidamente esquecendo seu drama anterior para deixar-se levar. - Mas entendo o que quer dizer. Eu tenho que literalmente caçar os caras por aqui se quiser encontrar um pouco de ação. Até da pra encontrar alguns, mas no geral você se sente meio idiota, caminhando a noite inteira com aquela roupa de super herói pra nada.

— Em Nova York você podia escolher seu ponto e ficar lá a noite inteira, que dependendo do lugar, a ação viria até você. - Começou a divagar em seus relatos, os quais eram sempre alimentados pelas perguntas e comentários de Monique. Foi aos poucos, mostrando partes de sua vida antiga, ouvindo sobre a vida da outra, deixando-se levar, envolver e partilhar. Sorrateiramente chegando à revelação final. - Mas a melhor parte sempre foi ter um parceiro. Primeiro meu pai, depois o Kick Ass. - Tinha sempre de hesitar um pouco para não tratar Dave pelo primeiro nome. - É algo que te deixa mais confortável, sabe? Alguém pra vigiar suas costas.

— Nessa questão você teve muito mais sorte que eu. - Espreguiçava-se, sem perceber entrando no jogo de Mindy. - Nunca encontrei outros super heróis por aqui. No máximo uns caras medrosos demais para confiar. Isso quando não são uns machistas idiotas que pensam que por você ser garota, não serve pra lutar.

— Algum deles por acaso já lutou com você? - Arqueou uma das sobrancelhas, passando a língua por um corte interno na região da bochecha. Aquela garota sabia bater, e sabia como poucas pessoas, homens ou mulheres.

— Não, mas eles também não sabem que minha mãe era uma boxeadora, então dou um desconto. - Depois socou a palma de uma mão, sorrindo de forma presunçosa. - Mas só um pouco.

— Só não deixa eles mal acostumados. - Relaxaram novamente, Mindy ainda digerindo a única informação coletada a respeito da mãe da garota. Ah, tantas conversas planejadas para o futuro, sem contar a expectativa crescente a respeito deste. Não estaria se adiantando demais? Tinha de descobrir logo. - Em todo caso da pra entender porque até então nunca teve um parceiro decente.

— Até então? - Repetiu num bocejo prolongado, ao qual se seguiu um riso meio descrente. - Falando assim até parece que você... Que você...

Não conseguiu terminar a sentença pelo mesmo motivo que antes não conseguia dizer seu nome. Permaneceu daquele jeito, os braços atrás da cabeça estáticos, olhos que perdiam o sono para darem lugar à surpresa. Mindy não demonstrava reações, e aquilo era o mais assustador.
— O que me diz?

— Você é louca? - Começou a rir de forma forçada, colocando-se em pé, dando passos desorientados pelo quarto. Tropeçava em alguns objetos, praguejando baixo e massageando os pés, sem porém jamais abandonar o choque. - Você é a Hit Girl! Uma lenda viva, a razão de muitas meninas terem ganhado confiança pra serem heroínas, e não só nas ruas com fantasias, mas em casa, nas escolas também. Não da pra simplesmente chegar em alguém tão... Tão normal e fazer um pedido desses.

— Você não é normal, Monique. - Arrastou-se até que as pernas estivessem para fora da cama, citando de forma altamente explicativa. - Você é uma das pessoas mais habilidosas e fortes que já conheci. E ainda tem coragem.

— Tem que ser brincadeira. - A outra apenas aumentava a velocidade de seus passos, dando início a vários tiques nervosos. Estala os dedos das mãos, ria nervosamente, estalava com a língua. Para Mindy, era apenas questão de tempo. O jogo estava ganho.

— Pra alguém normal, realmente seria um pedido absurdo. Mas estou fazendo a você. - Pusera ênfase o bastante na última palavra para que ganhasse atenção da morena. Passou a falar separando sílaba por sílaba. - Quer ser minha parceira?

Já era de noite e fazia frio, sem contar o tom de pele naturalmente pálido de Monique. Mesmo assim, de alguma forma ficou evidente que seu sangue gelara e parte da cor fugiu-lhe do rosto. Com dificuldade, um vazio formado na garganta foi engolido, ao que os olhos se fecharam suavemente. Parecia que tentava afastar alguma imagem da mente, e diante do sucesso, começou a rir. Bem aos poucos, ganhando confiança para olhar novamente aquela sentada em sua cama. Ninguém menos que Hit Girl. E sua nova parceira.

— É claro. Como se precisasse de confirmação, é claro que sim. - Avançou novamente em sua direção, num movimento rápido empurrando-a contra a cama, fazendo com que caísse. Mas se aqui alguma mente pervertida pelas malícias da vida imaginou alguma conotação inapropriada, deve saber que Monique se jogou ao lado, caindo também de costas e passando a rir. Foi de certa forma assim que os acontecimentos daquela noite se encerraram, tendo em seguida alguns curtos diálogos mais divagadores, fora um lanche feito vinte minutos mais tarde. Quase às quatro horas da madrugada, Mindy foi embora, apenas não pedindo para ficar por imaginar que seria abuso demais da hospitalidade de uma pessoa conhecida naquela mesma noite.

Somente depois percebeu o quão ridícula fora sua preocupação. Monique era sua mais nova parceira, e com o tempo todos aqueles tabus e precauções seriam jogados fora.

Ela só não tinha ideia do quanto.


Os primeiros sinais começaram a surgir depois de duas semanas trabalhando juntas. Devido à maior empolgação trazida pela companhia uma da outra, encontravam uma maior quantidade de criminosos, realizando a sede se justiça a cada item de valor resgatado e cada vítima ajudada. Porém ocasionalmente Mindy percebia certa aura de autoproteção ao redor de Monique. Algo que fazia com que a morena se afastasse ao reparar numa aproximação mais íntima, que hesitasse diante de convites para atividades fora das ruas à noite. enfim, coisas que levavam Mindy a se perguntar o que estaria escondido por trás da máscara sempre confiante.

Mas era nos treinos que aquilo prevalecia. Nos últimos dias, Mindy vinha ajudando a outra com sua habilidades, aprimorando-as, principalmente com relação á armas. Num geral, os avanços eram notáveis e rápidos, o problema estava nas lutas corporais. Sempre que Monique começava a evoluir, conseguindo quase imobilizar Mindy, recuava. Seus olhos se arregalavam e ela pedia desculpas, distraída, pedindo para que tentassem de novo. Após várias tentativas, iria embora dizendo que estava em seu limite.

Mindy não era nenhuma adolescente ingênua. Estava disposta a tirar aquilo a limpo e conferir suas teorias, principalmente porque buscava entender como se sentia em relação á elas. Era um misto de confusão, no qual seu maior medo era descobrir repulsa pela nova amiga. Sua única naquela cidade, e a primeira em sua vida. Pelo menos do sexo feminino. Justamente por isso não sabia ao certo o que pensar, que reações ter. Mas enquanto pudesse adiar as reflexões, o faria. No caso estava decidida adiá-las até obter alguma confirmação.

Depois de mais um dos treinos típicos, ou seja, frustrantes, acompanhou Monique até sua casa. Praticamente não passava mais tempo naquele hotel barato e sujo no qual havia se hospedado, tamanha familiaridade sentia naquele novo ambiente. Cumprimentou Karen, a tia da moça com um breve aceno, e acompanhou-a escadas acima. A regra era clara, banho depois do treino, seguido de algum filme de teor ridículo para que conseguissem rir e relaxar um pouco.

— Sem clichês colegiais, Mindy. Esses filmes não te fazem rir, só fazem... Sei lá, você perder esperança na juventude. - Monique entrou, deixando a porta do quarto aberta enquanto dirigia-se ao guarda-roupas. Atrás de si vinha a loira, deixando para fazer o mesmo quando Dawnton já estivesse embaixo do chuveiro. Até lá, já começaria a ligar o computador e procurar um filme que agradasse a ambas.

— É só achar o clichê certo. Que tal sobre líderes de torcida? - Recebeu uma peça de roupa na cara. Golpe certeiro! Começou a reclamar, afastando a camiseta dos olhos, mas sua fala foi interrompida.

— Traumatizada. - Não podia evitar a provocação, sabendo já do passado como líder de torcida de sua idolatrada Hit Girl. Era o tipo de coisa que tirava um pouco a pessoa de seu pedestal, com todo respeito às devidas líderes, é claro. Em todo caso, não foi aquela simples palavrinha que desarmara Mindy. Mas o fato de que, pela primeira vez, a morena se mostrava confortável para ficar sem camisa diante de si.

E bem, ao menos uma coisa estava certa para Mindy. Ela não sentia repulsa. No começo, achou um pouco estranho ter acesso visual aos seios fartos da amiga, devidamente seguros por uma peça de roupa escura, cujos padrões traziam um animal bastante incomum.

— Morcegos? - Perguntou automaticamente, transformando a blusa que antes estava em seu rosto numa bola amorfa. Não soube porque, mas sentiu-se meio idiota pela pergunta. Abaixando o rosto para conferir os desenhos, Monique riu.

— Algumas meninas tem flores, eu tenho morcegos. Problema? - Encolheu os ombros, forjando um ego inflado não tão falso assim. E começou a caminhar na direção do banheiro, roupas devidamente escolhidas, não percebendo a ligeira confusão nos olhos da amiga.

Muito bem, agora que Mindy estava sozinha, que porcaria foi aquela? A sensação trazia memórias agora humilhantes de quando encontrava-se na casa das meninas que viriam a trair sua confiança. Aquele videoclipe que lhe haviam mostrado, os abdômens definidos trazidos por rapazes não muito mais velhos que ela. Cena que tempos mais tarde repetiu-se ao ver Dave fazendo algum exercício para fortalecimento dos músculos.

Ela sabia que era normal sentir tudo aquilo. O peito acelerado, a sensação de calor sufocante por baixo das roupas. Até aí, nada demais. Mas sentir reflexos daquilo através da amiga? Certo, já era abusar de sua boa vontade. Não conseguindo evitar que uma onda de pavor percorresse seu corpo, correu até a porta do banheiro, gritando uma desculpa rápida que explicaria sua ida. Ouviu apenas a amiga perguntar um "o quê?" incrédulo, e colocou-se a explicar superficial, mas decididamente. Deu só mais alguns segundos para ouvir a confirmação de Monique, decida a sair dali caso a resposta final demorasse demais.

Só não esperava que tal resposta fosse a porta sendo aberta, deixando visível o corpo da amiga encoberto por uma toalha azul felpuda.

— Você não vai a lugar nenhum, é noite de filme, lembra? - Ficava difícil dizer não para toda aquela autoridade. Mas principalmente, para a fragilidade por ela escondida. O tom que pedia para que Mindy ficasse. Por favor.

A loira abaixou a cabeça, refletindo sobre as possibilidades. Ficar ali não estava sendo nada saudável para si, mas ela não era moça alguma de fugir das dificuldades. E principalmente, não tinha seguido a morena justamente para compreendê-la melhor? Ergueu o rosto decidida, fraquejando com o retorno das sensações anteriores. A falta de ar e forte embaraço, disfarçados quando atropelou-se na justificativa.

— Eu só não to me sentindo muito bem hoje, mas se estiver disposta a correr o risco, ta. Você quem pediu. - Ao final, fez o melhor que pôde para parecer a de sempre, com o mesmo sorriso descontraído, quase desafiador. Receber uma mão molhada em seus cabelos, desalinhando-os quase completamente. Porém internamente agradeceu aquele ato. Dava-lhe uma bos desculpa para ignorar quando Monique disse:

— Deixa que cuido de você, garota.

Porque de outra forma, a coragem falharia mais uma vez. A porta foi fechada, e trancada por puro costume da moradora. Ali Mindy recostou-se, deixou que a cabeça se apoiasse na madeira, e deslizou até estar sentada no chão.

Abortar missão, haviam prioridades para serem resolvidas.

Felizmente para ela, não foi difícil recompor-se. Principalmente depois de um bom banho gelado - ainda que mais tarde as consequências, resumidas numa boa gripe pudessem dizer o contrário. O fato é que conseguira assistir ao filme, colegial com líderes de torcida, e tirar algumas risadas da morena. Pelo resto da noite, sentiu-se confortável novamente, julgando as reações do corpo não mais que um lapso devido às teorias criadas anteriormente. Besteira para ser ignorada, empecilho imaginário criado por uma mente confusa.

E ela até compraria aquilo, não tivesse, em algum momento da noite, cedido ao sono e acordado com o corpo enroscado no de Monique. Levantou-se assustada, não compreendendo porque aquilo mexia consigo. Certo, certo, compreendia sim. Só era um pouquinho complicado conceber a imagem. Não era como se ela tivesse algum problema em estar, vocês sabem, aquele termo, aquele verbo, seja qual for. Tanto faz!

A cada dia que saía de casa determinada a descobrir a verdade sobre sua parceira, desistia na metade do caminho por mais momentos como aquele primário. Situações ridículas do cotidiano passavam a mexer consigo. Caminharem juntas até a faculdade da morena, a partir de onde Mindy partiria sozinha em busca de um novo serviço, exigia-lhe um esforço absurdo para manter uma conversa coerente. Simplesmente acabava distraída, sendo puxada por fluxos de pensamentos indesejados, fazendo comentários desconexos e muitas vezes embaraçosos.

Quando foi que se tornara tão patética? Mas não era pior, de jeito nenhum, do que ajudar Monique a cozinhar algo. Em algum daqueles filmes ridículos, deparara-se com uma personagem muito mal interpretada, da qual pelo menos uma frase fora salvadora. Cozinhar podia ser um ato de grande intimidade entre dois parceiros. Somente agora conseguia compreender o porquê.

— Que acha da cobertura? - Perguntara distraída, oferecendo a colher lambuzada para Dawnton. Somente ao ouvi-la num gemido grave e baixo, virou-se em sua direção, observando pela primeira vez a expressão agradável da morena. Agradável e agradada, diga-se de passagem, com as pálpebras meio fechadas numa contemplação exagerada ao gosto.

Ah, qual é, era realmente necessário?

— Você tem um talento nato. - Tivera por resposta ao fim da suposta degustação, recebendo a colher novamente.

— Ta. - Foi a coisa mais esperta que seu cérebro pôde articular. Isso quando Monique não sujava as próprias mãos, oferecendo-as para que Mindy provasse o gosto, rindo de si mesma. Por dentro, os pensamentos da loira formavam um caos absurdo. Estavam num filme adulto por acaso?

Por ironia do destino, se por um lado Mindy sentia-se cada vez mais confusa e distante de Monique, maior era a reação contrária da amiga. Ao contrário de antes, Dawnton sentia-se cada vez melhor inseria naquela amizade, cruzando limites antes impostos por si mesma. Tomava-lhe o braço quando caminhavam pelas ruas, mexia em seus cabelos quando assistiam filmes juntas, ia além nos treinamentos. O ápice foi ter conseguido imobilizar Macready, sentando sobre suas coxas e prendendo os pulsos cruzados sobre o peito.

— Venci. - Exclamou vitoriosa, mantendo firme o aperto das mãos independente do quanto a loira se debatesse.

— Também. Olha o tamanho dessas coxas. - Arfou em desistência, jogando a cabeça para trás. Aquela montada em si riu gostosamente, podendo respirar com calma e, com isso, sentir-se relaxada o bastante para liberar o alvo. Mas não saiu de cima dele.

— Quer ficar aqui a tarde toda?

— Tem uma coisa que quero perguntar, e essa é uma situação bastante conveniente. - Apontou para os quadris imobilizados de Mindy, o que fez a loira sentir um vazio desesperador em seu peito. Aquele era um gesto claro para impedir sua fuga. Apoiou-se nos cotovelos, tentando soar intimidadora.

— Não é possível que não exista nenhuma outra situação favorável, Nick.

— Mas vou usar essa assim mesmo. - Fez com que suas mãos ladeassem o rosto da loira, empurrando-a novamente ao chão. Estava próxima. Próxima demais na opinião de Mindy. - Você ta me evitando.

Tecnicamente não era uma pergunta. Então, tecnicamente, Mindy não tinha nada a responder. Até porque negar seria algo ridículo, considerando as tantas vezes nas quais tentara formar novas desculpas para fugir da companhia de Dawnton. Apenas remexeu-se, tentando ficar mais confortável no chão, e aguardou sua sentença final.

— Escuta. - Monique fechou os olhos, respirando forte antes de continuar. Aquilo nunca seria tão fácil quanto gostaria de acreditar. - Eu não sou cega e não sou burra. Eu sei que você sabe. Sou tão discreta quanto um elefante desorientado, e você sempre foi minha maior inspiração. Mas eu sou lésbica, ta legal? Não sou um predador ou monstro da mitologia grega. Eu não vou fazer nada com você. Mas se isso for atrapalhar na parceria, eu preciso saber.

Jamais havia sentido tamanha firmeza nas palavras antes. Mesmo assim ficava difícil dar uma resposta imediata. Quer dizer, havia uma pergunta implícita por trás daquela declaração, e uma pergunta que nenhum termo técnico podia contornar. Mas era tão direta, objetiva e expositiva que exigia alguns segundos de fôlego. Tempo que para Monique era demorado demais. Com um suspiro derrotado, imaginando compreender a resposta, Dawnton jogou-se para o lado, recolhendo as pernas e passando os braços ao redor delas. Estavam na velha academia de sua mãe, há muito abandonada, mas cujo equipamento ainda podia ser usado. Um lugar que automaticamente trazia de volta lembranças de Monique, tal como sua fragilidade. As lembranças de Angelique Dawnton quando viva, da primeira namorada que havia trazido ali, de seu primeiro beijo, coisas assim, despertavam em si um medo quase primitivo de perder aquilo que considerava importante.

E no momento, a coisa mais importante de sua vida a estava rejeitando.

— Eu não vou guardar mágoa de você por isso, sério. - Bagunçou um pouco os cabelos, incapaz de olhar Mindy nos olhos. Sentia que desabaria com aquilo. - Só me deixa saber se ainda quer ser minha amiga.

Muito bem, chega de falar, já estava se sentindo ridícula.

Mas aquele silêncio também era cruel demais. Sua visão periférica mostrava Mindy já pondo-se a sentar e respirar com calma, provavelmente uma resposta na ponta da língua. Então por que não falava? Vamos, dê logo a facada final.

— Eu tenho andado meio confusa ultimamente, e admito. - Pra piorar quando respondia, deixava tanta coisa no ar. Mas tudo bem, Monique estava preparada para aquele tom hesitante e a voz acanhada. - Mas eu já tomei minha decisão. E espero que não se importe com isso.

Agora percebam, não é como se Monique quisesse contradizer suas palavras anteriores. Ou mesmo estivesse realmente brava com Mindy. Apenas precisava descontar sua raiva de algum jeito e salvar o que restara do orgulho ferido. Portanto não tinha intenção de realmente ofender à outra quando ergueu o rosto, dando início a alguma boa ofensa, daqueles palavrões que deixam até adolescentes constrangidos.

Mas se havia um jeito eficaz de fazê-la ficar em silêncio, era ter os lábios de sua inspiração colados aos seus. Trêmulos, muito inseguros com o que faziam, evidenciando a falta de experiência. Como que confirmando se era aquilo mesmo que Mindy queria fazer, os olhos da parceira correram até os seus, os lábios permanecendo entreabertos e apenas encostados nos que nem avançavam, nem retrocediam.

Pacientemente, Mindy deixou que as pálpebras encobrissem sua visão, dando a resposta final. Pôde apenas expirar o ar de seus pulmões num único suspiro antes de sentir sua boca ser tomada, lentamente, pela de Dawnton. Sentia o calor de sua pele, a respiração nasalada e lenta. Os lábios ágeis deslizando pelos seus, como que capturando alguma essência dali. Ousados, tal como a língua a experimentar sua boca, descobrindo a cavidade com movimentos pacientes. A sensação voltava mais forte do que nunca, ainda mais intensa do que quando tivera seu primeiro beijo com Dave. O sufoco pelo aumento da temperatura, os batimentos tão fortes que ensurdeciam-na. E uma explosão começando do peito, lançando tremores leves pelos braços e pernas. Tudo bem, ela tinha de ser franca, ainda era meio estranho. Ser beijada daquela forma, com a língua de uma pessoa - de uma garota - serpenteando por sua boca, era algo que ainda lhe exigia muita prática até vir o costume. Mas não podia dizer que era ruim.

Certo, depois que um gemido baixo escapou de sua garganta ao sentir a mão de Monique entremeando-se em seus cabelos, ela definitivamente não podia dizer que era ruim.

Afastaram-se, ambas pela mesma necessidade de compreender o que haviam feito. Não se olharam por alguns bons instantes, enquanto Mindy arrastava-se para sentar ao lado de Monique. Como prosseguir agora?

É, boa pergunta.

— Então acho que você quer continuar sendo minha amiga. - Monique exclamou, a voz impressionada enquanto afirmava algo com a cabeça. Mindy riu, conseguindo relaxar um pouco enquanto apoiava a cabeça em seu ombro.

— Eu disse que estava procurando alguma ação depois que vim pra cá. E esse... - Um breve pausa, na qual refletiu sobre o que estava prestes a deixar implícito. Sorriu em seguida, mesmo que a outra não pudesse ver, pela total ausência de motivos que a impedissem. - Esse é um bom motivo pra ficar.


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Notas finais do capítulo

I regret nothing!



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