A Lâmina de Jade escrita por Siadk


Capítulo 1
Capítulo Único




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A Lâmina de Jade

 

   A luz laranja do sol se esparramava pelo céu limpo, espantando as poucas nuvens preguiçosas que ainda descansavam sobre aquela cidadezinha na Inglaterra. Em algumas horas seria possível contar as estrelas neste mesmo céu, se a luminosidade festiva da sexta-feira não arruinasse nada. Não que Marcos realmente se importasse com o ambiente agradável a sua volta, não que ele se importasse com muitas coisas nos últimos séculos. Estava apoiado na mureta de concreto da ponte que passava por cima do único rio da cidade, olhando distraidamente para o movimento calmo da água. Sua aparência não era das melhores naquele momento, seu terno cinzento estava amarrotado e aberto no peito, a camisa estava em igual estado e manchada de suor, até mesmo a cartola apoiada ao seu lado não parecia tão altiva quanto deveria aparentar. Soltou um suspiro quando viu as horas em seu relógio de bolso, alguém estava atrasado, claro que estava. É assim quando se convive com o tipo de pessoas que ele convivia, ninguém dava muita importância para o tempo. Coçou a barba mal feita e praguejou em uma linguagem antiga.

   – Não diga isso da minha mãe, ela era uma mulher de respeito. – Marcos se virou sem demonstrar interesse e encontrou o que esperava.

   Um homem com aparência mais velha, trinta e cinco ou quarenta anos, usando seu terno impecável e corretamente abotoado, além do chapéu coco exageradamente limpo em sua cabeça gorducha. Apoiava seu peso em um guarda-chuva preto e sorria por trás do bigode. Por um tempo nenhum dos dois disse nada, apenas ouviram o tumulto de fim de tarde na cidade. Até que por fim Marcos voltou a encarar o rio enquanto o homem tomava a liberdade para se aproximar.

   – Você está atrasado Victor. Cinco horas atrasado. – Murmurou Marcos em tom cansado. – Espero que tenha um motivo de meu interesse.

   Victor tinha o motivo, a única coisa em todo o mundo que realmente importava para Marcos, mas não podia simplesmente dizer o que era. O assunto era delicado e deveria ser tratado como tal, qualquer deslize e Marcos não conseguiria se controlar por mais que alguns segundos. A jogada que o homem do chapéu coco tinha em mente era arriscada, mas talvez divertisse pelo menos um dos dois.

   – Você se lembra do que aconteceu na Transilvânia? – Começou e quase deixou a voz falhar. – Coisa de louco, não concorda? Ainda me faz rir durante as noites em que não consigo dormir...

   – Qual o motivo desse encontro? – O tom na voz de Marcos parecia ainda mais cansado e, de alguma forma, irritado. – Você não me chamou aqui para falar de um idiota que enlouqueceu, certo?

   – Não, Marcos, eu vim falar sobre o que matou aquele idiota.

   Marcos se virou tão rapidamente que Victor recuou um passo, fingindo um susto mal interpretado. O brilho no olhar do homem desarrumado era capaz de dar esperança mesmo às pessoas como eles. Mas não durou muito, logo desapareceu na escuridão de seus olhos. Ele não acreditaria tão depressa.

   – Victor, se você está aqui para zombar de minha cara, peço que vá embora agora.

   – Não tenho muito para te dizer, mas garanto que não digo nada com a intenção de ofender sua paciência. – O homem de chapéu coco retirou um papel amassado do bolso e o estendeu. – Eis aqui o lugar onde deve ir se quiser mais informações.

   Assim que Marcos tentou pegar o papel, Victor o tirou de seu alcance. Reconheceu a irritação no olhar do homem desarrumado, mas não teve medo e não hesitou.

   – O homem de quem estávamos falando agora a pouco não era mais idiota do que nós, Marcos. Nós passamos pelo mesmo que ele passou, a única diferença é que nós sobrevivemos.

   – Sim, nós sobrevivemos. – Agora o papel já estava entregue a Marcos, ainda amassado. – E eu daria tudo para ter levado o mesmo destino que ele. Não me importaria se tivesse que perder minha sanidade e começar a beber o sangue de humanos para isso.

   O vento soprou forte enquanto Victor ria do comentário e uma folha de jornal rolou para o meio dos dois. A data estava claramente aparente: 17 de Setembro de 1932. Nenhum dos dois tinha mais a noção do tempo e o significado de meses ou mesmo anos para as senhoras que passavam com olhares suspeitos pela ponte não chegava perto do significado que tinham para os dois. Ou da falta de significado. Marcos desamassou o papel e o analisou minuciosamente, sua expressão não mudou quando ele terminou de ler.

   – Então Dominic está de volta à cidade?! Vejo que ele abriu um cabaré novo, mas ainda não entendo porque ele poderia ter alguma informação de meu interesse. – A falta de esperança voltara a dominar sua voz. – Você sabe que eu já o procurei antes, Victor.

   – Se passaram oito anos. Por mais difícil que seja para você acreditar, oito anos são o suficiente para adquirir novas informações.

   O homem gorducho ajeitou o chapéu coco em sua cabeça e deu uma melhor analisada no estado do sonhador em sua frente. Ele estava mais acabado do que poderia parecer. Morto por dentro e, o pior de tudo, aquilo não era o suficiente para ele. Victor não conseguia culpá-lo, apesar de Marcos parecer mais novo que ele, tinha vivido o dobro da vida de Victor Landeri na terra. E passado por mudanças necessárias para não se deteriorar em mais um estado de loucura. Marcos pegou a cartola suja e a colocou desajeitadamente sobre o cabelo bagunçado, em seguida guardou o papel no bolso interno do paletó.

   – Seguirei sua informação, mas você não ficará grato se eu me arrepender.

   – Suas ameaças pré-históricas me divertem. – Respondeu com um tom divertido e sem seguida jogou algo em direção ao companheiro de maldição. – Pegue isso, talvez melhore sua aparência moribunda.

   O reflexo foi rápido o suficiente, assim como Victor imaginava que fosse, assim como ele temia que fosse. A mão direita de Marcos segurava firmemente o guarda-chuva preto, sua expressão demonstrava clara confusão, ele pensou por uns segundos olhando para o céu limpo e o devolveu com outro arremesso.

   – Não acho que vou precisar... – Mas não teve tempo de terminar a resposta, sua mão se moveu mais rápido que seu pensamento para pegar de novo o guarda-chuva pomposo novamente arremessado para ele.

   – Sabe quando você tem aquela sensação de que algo vai dar errado? Bom, imagino que não saiba, mas mesmo assim acho melhor você ficar com ele. – Victor se virou e começou a caminhar na direção de onde veio. – Além do mais, é simplesmente errado recusar o presente de um amigo.

   Marcos seguiu seu rumo logo em seguida, se Victor estava realmente falando sério então não havia tempo para se preocupar com um guarda-chuva. Teria que caminhar metade da cidadezinha para chegar ao cabaré, mas não se preocupou com isso. Olhou para o céu limpo mais uma vez e se permitiu desejar uma última vez pelo fim de sua busca. E aquele desejo jogado no anoitecer seria, de fato, o último desejo de Marcos Van Isidorio.

 

-   -   -

 

   “O Olho Velho

   Dizia a placa em cima da porta de madeira barata. Era ali com certeza, aquele era o tipo de nome horrível que Dominic daria a um de seus estabelecimentos. Marcos deu dois passos em direção à porta antes de ser parado por um homem truculento de dois metros de altura. O brutamonte não disse nada, apenas ficou entre o homem desarrumado e a entrada do cabaré. Legalmente só existia uma maneira de entrar ali, “ter o nome na lista”, de maneira ilegal os dois sabiam pelo menos uma dúzia de maneiras diferentes. Uma delas arrancaria um pouco do esforço de Marcos e provavelmente um braço do segurança. Marcos colocou a mão no bolso e tirou algumas notas consideravelmente altas, não pretendia gastar seu suor com um reles serviçal, o resultado instantâneo foi uma porta aberta diretamente para uma escadaria de pedras. Ele desceu e ouviu a porta sendo fechada em suas costas, pretendia sair dali com um fim para tudo o que sua vida significava ou então enlouquecer.

   Mais uma vez.

   O lugar parecia exatamente como qualquer outro cabaré da cidade. Musica de terceira (poucas musicas eram apreciadas pelos ouvidos antiquados de Marcos.), pessoas conversando ainda mais alto que a musica e prostitutas se vendendo por todos os cantos. Marcos sentou-se em uma mesa esquecida encostada na parede oposta ao balcão cheio de bebidas do lugar, uma hora ou outra um dos seguranças informaria sobre a presença de um homem suspeito no local e Dominic logo estaria ali. Colocou o guarda-chuva na cadeira ao lado, mal percebendo que ainda o tinha em sua posse e quase não percebeu a mulher se aproximando. Seus reflexos estavam enferrujados.

   – Um homem belo como você não deveria estar desacompanhado em um lugar como esse, não acha? – Seus lábios macios carregavam malicia em cada palavra que pronunciava. – O que você me diz de uma companhia um pouco mais calorosa?

   O homem não respondeu, continuou analisando o lugar procurando pelo dono do mesmo. Sexo não era sua meta no momento, deixara de ser já fazia algumas décadas e atualmente não passava de uma maneira de matar o tédio.

   – Vejo que você faz o tipo calado. Gosto disso em homens, acho que é o que falta em muitos deles. – Continuou dizendo, procurando uma maneira de fisgar um novo cliente.

   Talvez, com mais algumas frases para cima do homem cansado sem sucesso, ela fosse embora a procura de outro cara, mas naquele momento Marcos realmente queria segurar o delicado pescoço da vadia com uma de suas mãos e torcê-lo. Simplesmente pelo gosto de poder descontar o peso sobre seus ombros em alguém, talvez até ouvi-la gritar por socorro ou pedir desculpas. Sim, ele pretendia fazer tudo aquilo, a loucura estava novamente fincando suas garras em sua carne. Uma voz diferente interrompeu seus pensamentos.

   – Se manda daqui, ruiva. Você não vai querer esse cliente. E se eu encontrar você ou qualquer de suas amigas desse lado do bar durante essa noite, você se verá comigo.

   – S-Senhor Dominic?! Desculpa, não imaginei que estaria lhe causando algum mal, eu irei sair imediatamente, eu não quis...

   – Tire essa bunda gorda da minha frente de uma vez por todas!

   A prostituta não esperou uma segunda chance de se mandar, acelerou o passo em direção a outra de suas amigas para deixar bem claro que chegar perto daquela mesa não era uma boa idéia. Marcos não percebera que Dominic tinha se aproximado de sua mesa até ouvi-lo gritar com a vadia, seus reflexos realmente estavam cegos. O dono do cabaré também se vestia corretamente, ao contrario dele, usando o paletó abotoado e um chapéu coco em sua cabeça, o cavanhaque cuidadosamente feito lhe dava um charme quase admirável. Se não fosse o nanismo, talvez ele fosse o cara mais cobiçado daquela cidade. Ele pulou para poder sentar na cadeira à mesa de Marcos, parecia uma criancinha diabólica sentada ali.

   – Pelo visto, o dinheiro que ofereci para calar a maldita boca gorda de Victor não foi o suficiente.

   – Então você realmente tem informações de meu interesse. – O brilho de esperança começava a voltar para os olhos de Marcos. – Quanto me custará?

   Dominic riu uma risada engasgada.

   – Como se você tivesse o suficiente para pagar minhas informações. Ainda me lembro do trabalho que você me deu da última vez. Tive que reformar todo meu estabelecimento por causa de uma maldita briga.

   – Não acontecerá novamente. Quero a informação e se for preciso a conseguirei a força. – Mesmo Marcos sabia o quão inútil era aquela ameaça. Se Dominic não queria oferecer uma informação, nada a tiraria dele.

   – Tudo bem, tudo bem. Não precisa ficar todo esquentado quanto a isso. Mas antes, – Dominic se ajeitou na cadeira, tentando ficar mais confortável. – responda-me uma coisa. Para que você a quer?

   Em qualquer outra circunstancia Marcos ignoraria aquela pergunta, mas ele estava tão perto agora. Conseguia sentir isso, tudo chegaria a um fim muito em breve. Decidiu responder, coisa que só tinha feito uma vez até o presente momento.

   – Vingança...

   – Típico. – Começou Dominc, como se tivesse acabado de ganhar uma aposta.

   – Não terminei. Vingança vem em primeiro lugar, quero certificar que o maldito que começou tudo isso esteja finalmente morto. – Marcos suspirou ao se lembrar da face do homem que havia enfrentado tantas vezes em sua vida eterna. – Mas o que mais importa é que ela pode acabar com minha dor, de uma vez por todas.

   Dominic ficou sério, era a primeira fez que ouvia isso de um companheiro de maldição.

   – Você quer se matar?

   – Não, acho que já morri ha muito tempo atrás. Quero apenas tornar isso oficial.

   Os dois ficaram em silêncio, Dominic ainda estava impressionado com a sinceridade de Marcos e a coragem necessária também.

   – Durante minha vida como um Eterno eu vi muitas coisas, sabe como é. Segui o fluxo de vida dos malditos. Primeiro me senti o maior sortudo de todos os tempos, não podia morrer, nada podia me ferir gravemente. Então comecei a perder todos ao meu redor, um por um, durante séculos. Foi quando enlouqueci, como sempre acontece com os Eternos, e me afoguei na insanidade por mais muitos anos, incontáveis anos. E cansei da loucura também, foi o que aconteceu com você duas vezes certo? – Dominic parecia realmente demonstrar emoções, aquilo era raro. – Quando voltei da loucura entrei na terceira faze do Eterno, me tornei um monstro. E é onde estamos agora. Frios, despreocupados, assassinos perfeitos. Não nos apegamos a ninguém, não nos importamos com ninguém.

   Ele parou para tomar um pouco da bebida que um garçom deixara em sua frente alguns minutos atrás. Parecia anos mais velho apenas por ter começado aquele assunto. Marcos se lembrava de sua própria historia à medida que ouvia a dele. Quando sua amada fora assassinada por recusar seu amor a outro Eterno, Marcos o caçou apenas para se deparar com o inevitável. Eternos não morrem e não podem matar uns aos outros também.

   – E mesmo depois de passar por tudo isso, eu não conseguiria colocar um fim a minha própria vida. Engraçado, não?! Masoquismo talvez. – Dominic suspirou uma última vez antes de descer da mesa. – Ele chegará em breve, seu informante. Ultimamente passa todas as noites de sexta feira em meu cabaré, assim como você fazia antes.

   – Obrigado pela informação Dominic. Mas quem é este informante?

   – Um forasteiro recém chegado na cidade. Tome cuidado com ele Marcos, algo me assusta quanto a este homem. – E então se perdeu em meio ao cabaré ainda mais movimentado.

   Marcos se permitiu beber um pouco. Dessa vez tudo finalmente chegaria a um fim.

 

-   -   -

 

   Quando Marcos o viu descendo a escada de pedras e olhando ao redor para analisar o lugar, teve certeza que aquele era o informante de quem Dominic tinha falado. Não havia duvidas de que ele era um Eterno também, “Um maldito consegue reconhecer outro maldito pelo cheiro.” Victor costuma dizer, e terminava a frase com uma piadinha da qual Marcos não se lembrava naquele momento. Mas o problema no homem só ficou claro depois que ele finalmente entrou no salão de recepção e uma das prostitutas foi falar com ele. Daquela distancia era impossível conseguir ouvir o que ela falava, mas o forasteiro apenas a observava com um sorriso familiar no rosto. Marcos podia não conhecer aquele homem, mas conhecia aquele sorriso. O homem finalmente reagiu, acertando um tapa com as costas da mão no rosto frágil da mulher, deixando-a caída no chão com uma expressão de surpresa encravada em seu rosto agora vermelho. Sim, aquele sorriso representava perigo. O forasteiro estava enfrentando a pior fase que um Eterno pode enfrentar, o momento da loucura em que o mundo deveria venerar sua presença, afinal... Ele era um deus.

   Não demorou muito para que ele percebesse a presença de Marcos no canto escuro onde se encontrava, caminhou em sua direção com o sorriso maluco no rosto. Andava de maneira altiva, se sentia um rei e tinha nojo de todo e qualquer mortal ao seu redor. Quando chegou à mesa de Marcos não disse nada, apenas puxou a cadeira em frente a ele e se sentou. Os dois ficaram se encarando em silêncio por minutos, as pessoas sentadas nas mesas ao redor começaram a estranhar aquilo, havia algo perturbador ao redor dos dois.

   – Ora ora ora! Parece que essa cidadezinha está lotada de colegas de trabalho, não acha? – Disse ele, sua voz era arrastada, parecia ter aprendido a língua ha pouco tempo e tinha um sotaque que não pertencia a um lugar e sim a uma época. – Que me diz de pagar uma bebida para seu mais novo amigo?

   Antipatia. Era a palavra que resumia a opinião de Marcos quanto ao forasteiro insano. Só de pensar que ele havia passado por aquela mesma situação lhe deixava perturbado.

   – Diga seu nome antes de pedir algo, forasteiro. Não é de minha utilidade pagar uma bebida a um ninguém.

   O homem riu uma risada pateticamente forçada.

   – Pode me chamar de Forasteiro, estou acostumado. Esqueci meu nome ha muito tempo atrás. – E novamente aquela risada irritante. – Mas suponho que para um homem como você, só de me ouvir dizendo que esqueci meu próprio nome deve ser o suficiente para te irritar, certo?

   Ele estava certo, esquecer o próprio nome era uma desonra absurda para um antigo cavaleiro como Marcos. Apenas o fato de se esquecer de algo importante, qualquer que seja, já tirava ele do sério. Mas o antigo cavaleiro se controlou, precisava da informação que aquele homem possuía. Apresentou-se apropriadamente e pediu duas bebidas fortes o suficiente para distrair um mortal comum.

   – Você tem informações sobre algo que... – Marcos tentou ir direto ao assunto, mas foi interrompido pelo Forasteiro com mais uma de suas risadas.

   – Não, não. Você começou errado, o certo seria: Conte-me sua história, ó grande Forasteiro, alimente-me com seu conhecimento. O que acha de tentar isso?

   Novamente silêncio, aquilo estava divertindo o homem louco de maneira inimaginável. Ele escondia algo, Marcos sabia disso, mas qualquer erro naquele momento poderia adicionar mais algumas décadas em sua procura.

   – Tudo bem então. – Recomeçou o Forasteiro. – Já que você insiste tanto, irei te contar um pouco sobre mim. Sinto te informar que também não me lembro em que época eu nasci, espero que não fique muito irritado, mas eu me lembro perfeitamente qual foi a última época em que vivi.

   Seu olhar divertido se dissipava em seu rosto e seu sorriso já não existia mais. Marcos reconheceu o ódio na expressão do Forasteiro e aquilo tornava a história menos irritante. Uma pessoa sem honra merecia o sofrimento.

   – Foi uma época de trevas, os mortais não conseguiam entender meu poder, não conseguiam perceber que eu fui mandado pelos deuses. Me trancaram, me enterraram e me deixaram em uma ruína para apodrecer durante a eternidade. Foi quando eu percebi que não tinha sido mandado pelos deuses, eu sou os deuses. Todos eles!

   O copo do Forasteiro agora vazio se chocara contra a parede mais próxima espantando os poucos que ainda sentavam perto daquela mesa. O ódio começava a ser substituído por prazer novamente.

   – Você não imagina o que aconteceu com a equipe de pesquisadores que me encontrou, pobres coitados. Toda minha fúria divina focada em cinco vermes. E minha surpresa ao perceber que o mundo havia seguido adiante sem minha presença. Veja o que virou, você acha que esse mundo merece meu amor? – Outra risada histérica, algo estava errado. – NÃO! Eu irei recomeçar tudo, primeiro preciso exterminar as pragas. E adivinhe só, vocês que se julgam Eternos também são pragas.

   – Você pretende usar a...

   – A Lâmina de Jade! Sim, me delicio apenas em pensar. A única arma que pode matar um Eterno. É o que você procura, certo?

Antes que qualquer um dos dois pudesse pensar sobre o que estava acontecendo, Marcos já estava em pé, debruçado sobre a mesa e segurando o pescoço do Forasteiro em suas mãos ossudas. Já não possuía mais a paciência necessária para se segurar. O louco apenas ria da situação.

   – Espere, espere! – Disse calmamente o Forasteiro. – Não vamos apressar o seu destino, certo? Eu ainda não falei sobre Judith, a dama de corpo tentador que encontrei em Paris.

   Instantaneamente as mãos de Marcos se afrouxaram. Aquele bastardo entrara em contato com Judith, a única mulher que ele conseguira amar por séculos sem se arrepender. A mulher que o tirara da primeira loucura que quase o engoliu por inteiro. O que ele fez com ela? Porque aquele sorriso se alargava quando tocava naquele assunto?

   – O que você...

   A risada histérica agora era mais alta.

   – Ela me ensinou sobre o novo mundo, ela confiou em mim. – Ele se aproximou do rosto de Marcos. – Ela me amou!

   Da pior maneira possível ele podia ver aquilo acontecendo. Era o fraco de Judith, ela confiava facilmente em qualquer um que compartilhava da mesma maldição. Ele conseguiu imaginar a falsidade do Forasteiro para conseguir o amor de Judith, mas pra que propósito? Antes que pudesse chegar a alguma conclusão outra risada interrompera seus pensamentos.

   – E depois que eu consegui o que queria, o que mais eu poderia fazer?! Eu a matei!

   Marcos não pensou no que aquilo poderia significar, não pensou em muitas coisas antes de reagir instintivamente. Quando percebeu já havia pulado por cima da mesa se jogando em cima do Forasteiro, jogando-o no chão frio de pedra. Ouviu o barulho da mesa e das cadeiras caindo atrás dele e o ignorou. Acertou o punho duas vezes na face do louco, resultando em sangue escorrendo de seu nariz e uma risada ainda mais histérica ecoando no cabaré. Só quando conseguiu raciocinar sobre o assunto percebeu que não perdera a paciência pela noticia da morte de Judith, na verdade não se importava muito com aquilo. Surtara porque Judith era uma Eterna, se estava morta significava que aquele insano possuía o que ele queria. Antes de acertar mais uma seqüencia de golpes no Forasteiro sentiu uma mão lhe puxando pela gola do paletó. Marcos não percebeu Dominic se aproximando e quase o golpeou por tentar impedir aquela briga, errando por pouco.

   – Olhem aqui, seus bastardos insanos, pouco me importa o que esteja acontecendo entre vocês e se pretendem lutar por duas semanas a fio, mas façam isso fora do meu estabelecimento. – Ele estava agora entre os dois, empurrando cada um pela barriga para que se evitassem.

   O Forasteiro sorria.

   – Você pode acreditar, cavaleiro? Todo esse tempo ela esteve em posse de uma Eterna ignorante. – Ele colocou a mão por dentro da jaqueta rapidamente.

   Dominic percebeu sobre o que os dois estavam falando um pouco tarde demais. O movimento foi rápido e preciso. Dominic continuava olhando para Marcos, sua expressão era de pura surpresa. Os olhos claramente abertos estavam sem cor. O Forasteiro retirou a adaga da nuca do anão e riu novamente enquanto ele caia morto no chão de pedras. Marcos estava sem reação, ignorava a morte de Dominic e se preocupava apenas com a adaga nas mãos do Forasteiro.

   – É completamente diferente do que você pensava, não é? – Disse o louco entre uma pausa de suas risadas.

   E novamente ele estava certo. Marcos passou toda sua vida imaginando a Lâmina de Jade como uma espada feita inteiramente da própria pedra preciosa verde. Mas o que ele via em sua frente era uma adaga, uma lamina de aproximadamente vinte e cinco centímetros de prata pura, com um cabo enfaixado em couro. Na verdade o único verde na arma era uma escritura na lâmina:

   L. J. Jade

   – Isso mesmo, Lucie J. J. a caçadora de malditos. Quem diria que seu último nome fosse Jade.

   Marcos conhecia Lucie, tivera um encontro com ela quando ela ainda estava viva e recém iniciada no ramo de caçadora. Nunca imaginou que ela teria criado a arma capaz de matar imortais. Pouco se importava, Dominic estava morto e aquilo só podia significa que a arma era verdadeira. E ele a queria. Passou por cima do corpo do anão.

   – Opa, companheiro. Quer mesmo adiantar sua morte?

   Só então percebera sua situação. Pela primeira vez na vida ele estava correndo risco de vida. Marcos queria sim um fim a sua maldição, mas não se perdoaria se perdesse sua vida para um desonrado. Sem mencionar que ainda tinha assuntos inacabados com o assassino de seu primeiro amor. Parou antes de se aproximar demais, o que resultou em mais uma risada de triunfo ecoada no cabaré agora vazio. Nenhum dos dois percebera quando os mortais saíram correndo e gritando de pânico.

   – Finalmente entende sua situação. Bom, muito bom. Diga cavaleiro, o que pretende fazer em seus últimos minutos de vida?

   – Sobreviver.

   O que aconteceu em seguida foi o suficiente para deixar o louco temporariamente surpreso. Marcos investiu em um salto, acertando o Forasteiro com o ombro direito e segurando seu braço armado com a mão esquerda. Ele teria conseguido imobilizá-lo se os dois não tivessem caído no meio de algumas mesas do lugar. A quina de uma das cadeiras acertara as costelas desprotegidas do cavaleiro, fazendo-o soltar o braço do louco. Não teve tempo de se xingar por perder a oportunidade ideal, pulou rapidamente para trás ha tempo de se esquivar de um corte que abriria sua garganta facilmente.

   – Como ousa se voltar contra o deus desse maldito mundo? – O ódio se implantara novamente no Forasteiro, algo naquela situação o lembrara da última vez que alguém se voltara contra ele. – Te matarei e me esquecerei de ti, cavaleiro. Como se sente, sabendo que será esquecido?

   Marcos não respondeu, se desviou de mais um corte da adaga e tentou ganhar distancia entre ele e seu agressor. Não sabia se teria outra chance como aquela e seus reflexos de campo de batalha estavam completamente perdidos no tempo. Deu mais dois passos para trás tentando desviar de mais um ataque, mas dessa vez recebera um corte em seu nariz. Aquilo ardia e o cavaleiro sabia que nunca se regeneraria como os outros ferimentos que recebera em sua vida. Ele estava perdendo aquela batalha, não possuía arma e a pericia de combate de seu inimigo era levemente melhor que a dele. Seria golpeado no próximo ataque, sabia disso, mas tentou esquivar mesmo assim.

   Viu a lâmina que tanto procurou se aproximando de seus olhos. Morreria de maneira desonrada no fim das contas. Mas seu pé não encontrou o chão no último passo, tropeçara em alguma coisa, um pedaço de cadeira quebrada ou coisa do gênero, e aquilo salvara sua vida por centímetros. Aproveitou da queda para empurrar o louco com um chute certeiro. Suas costas colidiram com o chão duro antes de ele perceber que se aproximara novamente da mesa onde estava sentado ha pouco tempo atrás. E então percebeu no que tinha tropeçado. Ali, caído e esquecido, se encontrava o guarda-chuva que ganhara de presente. Devia sua vida a Victor. O Forasteiro se aproximou novamente, gritava de ódio. Pretendia se jogar em cima de Marcos, acertando seu peito com a Lâmina de Jade. A reação foi rápida, sobreviver estava revivendo o instinto de batalha do cavaleiro. Marcos pegou o guarda-chuva e o levantou a tempo, acertando o olho direito do Forasteiro, perfurando-o e alcançando o topo de seu crânio. Ele rugia de dor enquanto caia de lado e rolava no chão, usou as duas mãos para tentar tirar o guarda-chuva de seu rosto e essa foi sua falha. Morreu naquela posição lastimável. A adaga agora estava encravada em seu peito, ainda presa pelas mãos de seu mais novo dono. Marcos não a perderia enquanto não terminasse sua vingança e sua vida.

   Depois de incontáveis séculos, tinha finalmente dado o primeiro passo.

 

-   -   -

 

   A polícia interditara o lugar e procurava por pistas do crime. Marcos e Victor olhavam aquilo de longe. Os dois em silêncio absoluto, Marcos ainda apertava a Lâmina de Jade por dentro de seu paletó.

   – Pretende partir ainda hoje, imagino. – Disse Victor assim que teve a chance de quebrar o silêncio. – Aconselharia você a dormir em minha casa essa noite pelo menos.

   – Não. Não te envolverei mais em minhas buscas. Está livre de mim por toda a eternidade.

   – Literalmente.

   – Sim, literalmente.

   Nenhum dos dois se falou por mais um tempo, enquanto voltavam para a mesma ponte onde se encontraram mais cedo. Marcos seguiria adiante, roubaria um carro talvez e sairia da cidade para nunca mais voltar. Victor o seguiria mesmo sem ele saber. E quando Marcos terminasse tudo o que tinha que fazer se certificaria de que aquela arma nunca mais fosse encontrada.

 

   O cavaleiro seguiu viagem sob o céu estrelado e limpo, carregando a única arma que podia matar qualquer coisa em sua mão e um guarda-chuva manchado de sangue em seu ombro.


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Notas finais do capítulo

Notas do Sádico: Para dizer a verdade, não sei se fiquei muito feliz com o resultado final desse conto. Acho que eu poderia ter feito algo melhor, quem sabe. Bom, realmente espero que tenham gostado assim mesmo.