Carta de desespero escrita por haroPXG


Capítulo 1
Carta de desespero


Notas iniciais do capítulo

Primeiramente, obrigada novamente ao meu beta maravilhoso, eu tenho uma admiração especial por você agora e eu vou sempre recorrer a você se eu for escrever algo novo.



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O carro parou em frente à escola, um homem de terno saiu pela porta do motorista e abriu a do passageiro para sua esposa sair. Ele segurou seu braço, ela deitou a cabeça em seu braço e deixou ser guiada até dentro da escola.

O Diretor os recebeu com lamentações ensaiadas tão clichês quanto adaptações de Romeu e Julieta. A Mulher dava um sorriso desolado cada vez que alguém dizia que sentia muito, ela sabia que não era verdade, mas mesmo assim deveria ser educada.

Eles se sentaram na fileira da frente, logo após um monte de alunos chegaram, sentando-se em grupos e não parando de conversar sobre como isso seria chato ou estúpido.

Os professores, Diretor e codiretores se sentavam em cadeiras no fundo do palco, algum servente qualquer posicionava o microfone no meio enquanto outros ajeitavam os alto-falantes e tudo estava quase pronto quando o Diretor começou a fazer um discurso idiota para poder chamar o Homem de terno até o palco.

— Olá, eu peço desculpas por atrapalhar suas aulas de hoje, quando o Diretor nos chamou, pensamos em não vir, não temos nada para fazer aqui, não temos nada para falar para vocês e não queremos ouvir lamentações, pois é muito tarde para isso. — O homem puxou um papel dobrado no bolso do paletó e o desdobrou cuidadosamente. — Essa folha de caderno rosa com alguns desenhos bonitos é o meu último contato com a minha filha e, após pensar muito, eu acho que ela merece que entendam sua dor.

O homem tossiu em seu punho para limpar a garganta, olhou para os professores atrás dele e voltou a atenção na plateia de alunos desinteressados. Ele respirou fundo e começou a ler:

“Eu gostaria de ter feito tanta coisa...!Vocês sabem de todos os sonhos que eu tinha para minha vida:o balé, a música, a faculdade, o casamento e os filhos. Eu nunca quis sucesso, eu apenas queria reconhecimento, mas nunca o tive, desde criança. Meus pais lembram o quanto fui chamada de burra ou doente, tinha dificuldade para resolver problemas de matemática e para guardar matérias “fáceis”. A única coisa que eu era boa era em artes e, mesmo assim, me chamavam de ‘down’ por isso.

Eu nunca tentei ser perfeita, ainda mais depois de passar quatro anos ouvindo pelas costas o que diziam sobre mim, sobre o meu cabelo naturalmente cacheado e volumoso, sobre o meu nariz fino e pontudo, sobre o meu peso. Depois da crise de bulimia, de tanto eu me rejeitar, de tanto eu me cortar por não gostar de mim mesma, resolvi me juntar ao resto da sociedade: parei de comer o que gostava, emagreci, fiz uma progressiva e então fiquei igual a elas!

Mais aceitável. Mais normal (...)”

O Homem parou de ler, respirando fundo enquanto olhava sua esposa na plateia, com a mão na boca e os olhos fechados. Os alunos aos poucos foram ficando em silêncio absoluto, esperando pelo fim da carta e a hora da saída. O Homem passou a mão na testa e voltou a ler:

“(...) não funcionou, nada funcionava. Eu ia para a escola com medo, sentava na última cadeira e fazia os deveres sozinha; quando era em grupo ou em dupla, ninguém aceitava fazer comigo, diziam que eu cheirava mal, que eu era estranha. Que tinham medo.

Eu sempre segui o que me diziam, eu ignorava.

Ignorava os insultos, ignorava as bolinhas de papel que me jogavam, ignorava o que falavam de mim pelas costas. Ignorei quando escreveram no banheiro que eu era prostituta e que tirava boas notas por “dar” para os professores. Ignorei quando me empurraram no chão e pegaram meu celular. Ignorei quando leram minhas mensagens com o Juan, meu único amigo, que morava no outro lado do país. Ignorei quando quebraram meu celular, e não contei para meus pais. Apenas ignorei, como diziam para fazer.

Havia essa professora de Filosofia. Eu contei para ela e, por esse motivo, ela se tornou quase como minha única amiga, eu sempre gostei de falar com ela e ela me ajudava. Mesmo que ela não fizesse ideia do que eu estava passando, ela era como os outros, me mandava levantar a cabeça e...

...eu continuava a ignorar.

Mesmo assim, mesmo com Juan e a prof., eu não tive amigos, eu nunca tive, eu não tenhoporque todos me odeiam e o único que fala comigo é tão legal e tão maravilhoso comigo que eu poderia fazer qualquer coisa por ele. E isso me deixa desconfortável, como se ele só estivesse falando comigo para que eu continuasse a comprar coisas para ele ou financiar todos os seus vícios. Eu me afastei de propósito, eu ignorava. Eu me isolei porque eu não queria ser imposta a isso, eu não queria ser um entretenimento. Eu me sinto desesperada.

Eu me sinto perseguida.

Todos os lugares que eu vou que tem algum daqueles garotos ou garotas, eu me sinto obrigada a sair, a simples presença deles me faz sentir medo. Um dos motivos pelo qual eu parei de sair sozinha ou sair. No meu quarto, não havia perigo de encontrar nenhum deles. Eu não sabia o que fazer, ninguém poderia me ajudar.

Nada funcionava, nada funcionaria, nada funcionou (...)”

O Pai da garota novamente interrompeu a leitura, ele passou a mão no olho e recuperou o fôlego. No canto da plateia, um garoto que estava conversando ficou em súbito silencio, ele era provavelmente aquele que havia sido citado, ele não fazia ideia do que ela sentia.

Os outros pararam de rir de qualquer piada idiota também, a ideia de perseguição não os agradou; quando alguns deles abaixaram a cabeça, o Homem voltou a ler a carta com completo desânimo:

“(...) eu passei a sentar ainda mais no fundo, no canto da parede. Achei que me deixariam em paz. Não deixaram. Eles vinham até minha mesa, riscavam meu caderno, me xingavam e levavam minhas coisas apenas para se divertirem, para ver eu chorar. E eu chorava. Não conseguia mais ignorar, não conseguia mais deixar para lá, não conseguia mais.

Eu diversas vezes matei aula, mas minha mãe descobriu. Não contei o motivo para ela, decidi voltar a frequentar as aulas, entrar de cabeça erguida e encarar a todos. Mas não foi tão fácil, logo naquela época eu havia passado por um corte químico, foi o preço por tentar ser aceita pelas aquelas pessoas horríveis com as quais estudava, (...)”

Ele foi obrigado a parar de ler, pois houve um pequeno grito descontente, no fundo, dos estudantes. Algumas garotas zombaram dessa parte da carta, sentindo-se um tanto ofendidas com isso.

— O que vocês sabem sobre se sentir ofendidas? — a Mãe da garota disse em voz alta, sem se levantar da cadeira ou virar para trás.

Todos ficaram quietos, não tinham muito o que falar, apenas deixaram que a carta continuasse a ser lida.

“(...) mas estava tudo bem, eu apenas os via durante a escola, não é? Era só prestar atenção na aula e não os ouvir...

Não, não era bem assim. Não tinha como prestar atenção na aula com todos pulando na frente; se eu sentasse na primeira carteira, não teria como prestar atenção com todas as risadas, as bolinhas de papel e as figurinhas sendo coladas nas minhas costas. A maior parte do meu ano foi no fundo, me esforçando para terminar o dever enquanto chorava.

Eu sei, eles deviam achar isso engraçado, mas não era. Não é nem um pouco engraçado rir do sofrimento alheio, rir da dor alheia. Eu sofri muito e nem sei por que me odeiam, isso é o que mais dói. Eu perguntei nos comentários da publicação no Facebook que fizeram sobre mim, e ainda me marcaram, perguntei o que eu havia feito para eles, por que me odiavam, o que eu fiz.

Eles foram diretos, comentaram para mim como se fosse a coisa mais fácil e mais normal do mundo: “Você nasceu, isso não é um motivo?” Ou “O que tá fazendo aqui, se mata!”

Foi então que a página surgiu. Seu nome era um atentado de ódio, injúria, seja lá como se nomeia isso. Começaram a fazer montagens minhas no corpo de atrizes pornô, postar coisas. Eu não quero falar o nome, eu apenas quero que tirem do ar.

Porém, sei que eles não vão fazer isso.

Mãe, pai e irmãozinho... talvez eu não sinta saudades de vocês, mas vocês vão sentir de mim e eu sinto muito por isso.

Colegas de classe, eu sei que é pecado fazer isso, Deus não gostaria que eu tivesse rancor e eu deveria perdoá-los, mas não consigo. Contudo, apesar de não conseguir perdoar vocês, vou fazer o que me pedem desde o momento que me viram, quando tínhamos doze anos.

Estou tirando minha vida. Talvez agora vocês possam viver em paz sem a pessoa que vocês odeiam.

Minhas sinceras desculpas por ter causado desconforto e raiva para vocês por três anos e meio, mas pelo menos vocês vão vestir suas becas e jogar seus chapéus para cima. Também usarei uma roupa preta, mas será um vestido para o meu enterro.

Mãe, me desculpe por me afastar. Eu nunca quis te deixar triste, mas contar não iria melhorar nada, poderia até mesmo piorar. Eu te amo, eu amo vocês.

Adeus!”

O pai acabara de ler a carta no palco de apresentações da escola, dobrou-a em três partes e a guardou novamente no bolso do paletó preto. Desceu silenciosamente e se sentou ao lado de sua esposa, que ainda chorava baixinho ao ouvir a carta, poisela nunca teve real coragem para lê-lasozinha. Ele mesmo estava com lágrimas nos olhos que não tinham tempo para descer, ele as limpava com o polegar bem rápido.

Por um momento entre o minuto de leitura até quando o homem começou a descer a escada, a plateia ficou estranhamente em silêncio, o Diretor olhou bem para os alunos, podia ver todos de onde estava sentado: alguns tinham traços de arrependimentos, alguns de deboche e outros faziam piadas, mas a maioria estava quase chorando ou com a mão no coração. Os mais afetados eram, claro, crianças e adolescentes que sofrem ou já sofreram bullying.

Os professores estavam assustados, eles nunca esperaram que as brincadeiras feitas em sala eram assim tão grave e muito menos que eram levadas para fora da escola, como se fosse uma espécie de esporte legal. Nenhum deles nunca havia parado para prestar atenção, afinal, “são crianças ainda, todos um dia vão parar.”

Foi uma única professora, a de Filosofia, que mais gostava da garota, que se levantou e desceu as escadas, saindo do local, aparentemente chorando. Nada aconteceu por longos minutos até que a mãe se levantou com a ajuda de seu marido, arrumou o vestido preto, enxugou as lagrimas e respirou fundo.

Ela subiu até o palco, abaixou o microfone e chamou a atenção de todos. Abriu a boca para falar algo, mas antes enxugou o rosto. O silêncio perdurou por mais um tempo, até que ela estivesse pronta para falar.

— Ela perdoou vocês — ela disse no microfone, brevemente, desceu as escadas com a mão no peito, sentou-se no último degrau e ajeitou seu salto preto.

— Não perdoou, não — uma garota gritou do fundo. — Qual foi o sentido disso? Nos fazer sentir horríveis com nós mesmos?

— É muito pior diminuir, excluir e oprimir uma pessoa até que ela não tenha mais saídas — O pai da garota se levantou para ajudar sua esposa.

— Querem ouvir que estamos arrependidos? — um dos garotos se levantou, rindo.

— Cala a boca, idiota — o garoto que foi citado na carta disse e o outro se sentou. — Vocês não ouviram? Ou fui eu que ouvi uma coisa diferente? Vocês acabaram com a vida de uma pessoa, não é um motivo para orgulho.

Os pais da garota que escreveu a carta se despediram sem muita alegria ou vontade, o Diretor os acompanhou até a saída, repetindo as mesmas lamentações clichês de quando eles chegaram, porém, dessa vez, a mulher foi obrigada a interrompe-lo, fazendo-o voltar para dentro.


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Notas finais do capítulo

Obrigadx por ler até aqui, se você leu.

Essa história foi feita em um momento de criatividade, eu não sei se eu especifiquei no texto o modo como ela se matou, mas acho que não vi necessidade. Na verdade, eu não sei se eu pensei muito na questão "como ela se matou?", não achei necessário. Essa carta pode ser de uma personagem que se matou, mas simboliza a "morte mental" de uma pessoa que sofre bullying todo dia durante anos de sua vida. Mesmo aquela que não teria coragem de tirar sua própria vida sofre uma "morte mental", ela perde a vontade, o ânimo, pode se tornar depressiva. Isso varia de pessoa a pessoa.

Diga não ao bullying, não pratique, não seja testemunha, defenda e denuncie.

E lembre-se, o Snape sofreu bullying do Almofadinhas, Pontas, Rabicho e Aluado (não tanto do aluado).



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