A macabra fábrica de chocolate escrita por Saulo


Capítulo 1
Capítulo 1




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Todas as manhãs Charlie tinha que buscar jornais. E panfletos também. Não podemos nos esquecer deles. Alguns drogados ficavam nos becos mais escuros ou pontes. Jovens se reuniam nesses lugares para tragar seus cigarros ou engolir vodka goela adentro, como fazia ele. Tinha dias que mal conseguia chegar em casa, já que era difícil se locomover na bicicleta naquele estado.
Mas o que chamava atenção não eram os jovens, e sim a rede de indústrias de doces Willy Wonka. A porra da cidade girava em torno delas. A cidade inteira. Os produtos eram como heroina para caretas. Altamente viciantes. A única coisa de chamativa naquela merda de cidade.
Charlie saiu da escuridão do túnel numa tentativa de se afastar da fumaça das chaminés. Pegou sua bicicleta vermelha e acelerou. Já estava anoitecendo. Verificou seu suéter verde e sua calça jeans. Era praticamente a única roupa que tinha. Uma mancha vermelha se alojava na roupa, resultado de uma briga que teve a poucos instantes. Ninguém o fazia de idiota. Mesmo bêbado conseguia espancar uns otarios.
Andou por algumas quadras até achar a sua casa. Era difícil manter o equilíbrio naquele momento. Um pequeno lote de três cômodos o esperava. Entrou e colocou sua bicicleta em um canto.
A cozinha/sala possuía um chão de madeira que rangia sobre qualquer passo. Uma panela de barro fervia sobre o fogão. Charlie verificou o caldo de feijão rapidamente. Era o que tinha pra hoje.
Seus avós e avôs dormiam sobre duas camas que se posicionavam uma ao lado da outra. Um lençol servia de porta para o quarto dos seus pais. Charlie imaginou em que momento teriam privacidade para trepar. A resposta era simples, pensou. Passava a maior parte do tempo fora de casa e seus avôs não ouviriam nada. Nem que sua mãe berrasse.
Tirou suas meias enfeitadas com furos e deitou sobre o colchão no canto da sala.
—Charlie -Sua mãe entrou no cômodo repentinamente. Um cheiro forte veio até suas narinas. Ela estava naquele buraco chamado de banheiro. -Eu preciso que vá ao mercado amanhã e compre algumas coisas. E outra coisa... Você viu se seu pai já chegou?
—Não. Não vi -Respondeu olhando para as goteiras no teto. -Deve estar quase chegando.
Marla, sua mãe, andava ansiosamente de um lado para o outro. Remexia o caldo com a colher de pau nervosamente. Charlie observou os cabelos cacheados e escuros dela. Sua mãe era demasiado esquelética e pálida. Vestia alguns trapos escuros. Apesar da vida simples estava sempre sorrindo. Ele desejou ser assim.
No momento em que o pai atravessou a porta, Marla começou a preparar a mesa. Ela a cobriu com um forro, pratos e talheres. Seu avô Joe era o único que conseguiu chegar até os pratos. Comeram silenciosamente. Charlie terminou sua refeição e foi ajudar os seus outros familiares a se alimentar. Era engraçado: os quatro velhos pareciam ser a mesma pessoa. O rosto ossudo, o cabelo grisalho, as rugas. Os olhos pretos como a escuridão. Duas mulheres e dois homens.
—Então, Charlie, como foi o trabalho?- Bob perguntou a mesma pergunta de sempre. Charlie revirou os olhos.
—Normal -Respondeu balançando os ombros. -E o seu? -Perguntou tentando não olhar o caldo escorrendo pela barba grisalha e espessa de um dos seus avôs.
—Você sabe. Pescar, vender e depois voltar pra casa cheirando a peixe.
Quase todos riram. Os que ouviram, pelo menos. Charlie tentou forçar uma risada.
Levou o prato vazio se encaminhando para a cozinha de forma desajeitada. Lavou a louça e se recolheu novamente em seu canto. Seus pais foram para o quarto. O álcool o deixava agitado. Levantou-se e ligou a TV, um pequeno presente dos antigos donos. E o único também. Eles tiveram seus pertences roubados por uma gangue e sofreram múltiplas facadas na barriga. Seus pais não contariam isso para ele, mas a vizinhança tinha ouvidos e boca. Charlie permaneceu com os olhos escuros vidrados na tela. Um rapaz adulto de cabelos castanhos com topete anunciava algo em uma grossa voz.
—...E que jovem nunca desejou visitar a incrível fábrica do senhor Wonka? É uma oportunidade rara. Você não pode perder! Passe na loja de doces mais próxima e tente a sua própria sorte. Os cinco sortudos que tirarem o bilhete premiado que pode ser encontrado em barras de chocolate Wonka terão a incrível chance de visitar a fábrica central onde habita Willy e o maior e mais incrível acervo de doces do mundo. Isso mesmo! Você não pode perder! Não existe restrição de idade. Qualquer um pode tentar.
Charlie analisou se conseguiria. Decidiu pensar nisso amanhã. Percebeu que seu avô Joe olhava atentamente para o comercial.
—Não era aí que o senhor trabalhava?
—Sim. Até que o maldito me dispensou.
—Você chegou a ver ele... Cara a cara?
—Quase. Ele se fechava muito. Resolveu trocar mão de obra humana por tecnologia.
—Que triste -Disse, e não conseguiu pensar em mais nada para dizer. Joe assentiu com a cabeça.
O pai passou na sala rapidamente e interrompeu a conversa. Seus olhos eram escuros, os cabelos loiros e lisos. Possuía estatura alta e era magro. Muito magro. Comeu o resto de caldo que estava na geladeira e se retirou.
—Então -Continuou o avô. -Tive que passar vários anos desempregado dependendo do seu pai, por mais que eu odiasse isso. Se algum dia ficar rico, não se transforme em um mesquinho Charlie.
Teve vontade de rir. Ficar rico? Poderia pensar nisso depois que tivesse um chão decente. Olhou para Joe com cara de bobo. Se bem que já recebeu convites para entrar no mundo da prostituição uma vez. Não achava que o pai iria gostar muito. Imaginou o diálogo na sua mente.
—“Como foi o seu dia de trabalho, filho?”
—“Você sabe. “Pescar” os clientes, se vender e depois voltar para casa cheirando porra.”
Teve de se segurar para não rir.
—Vou dormir. Mas eu iria para essa fábrica se ganhasse o bilhete premiado. Nem um ressentimento me impediria de comer doce.
—Foda-se -Respondeu, mas não alto o suficiente para ele ouvir. Virou-se de costas no colchão.
Esperava que o amanhã fosse um dia diferente. Quem sabe receber um aumento ou ganhar o bilhete premiado, refletiu enquanto adormecia.


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