Fogo de Santelmo escrita por Joana Guerra


Capítulo 1
Fogo de Santelmo


Notas iniciais do capítulo

Perdi a vergonha na cara e resolvi tentar uma one-shot Fabine. Mil desculpas à rainha MAA, por atentar contra o shipp (e mil chibatadas mentais para mim). A música-tema é Fire meet gasoline, da Sia. Dedico o capítulo à Daniela, que forneceu a linha-base para o escrever.



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“It's dangerous to fall in love

But I want to burn with you tonight

Hurt me

There's two of us

Bristling with desire

The pleasure's pain and fire

Burn me”

(Sia, Fire meet gasoline)

— …e você é um babaca!

Aquela frase não tinha sido pronunciada, mas sim atirada com tanta violência quanto o prato de porcelana fina que Giane arremessou na direção de Fabinho e que falhou o alvo por milímetros, graças aos reflexos rápidos do ex-bad boy, que se protegeu atrás da porta.

Em poucos minutos, a discussão tinha transitado desde a sala até à cozinha. Não que algum dos dois tivesse especial carinho por aquele cômodo, que agora parecia uma zona atacada por uma bomba nuclear.

As paredes tinham sido redecoradas com o que minutos antes tinha sido uma lasanha acabada de sair do forno; a pia estava emporcalhada com os restos da torta de limão que a corintiana tinha enfiado na cara do noivo e o chão estava cheio de cacos de um serviço completo de loiça importada.

Malu também ia ficar no chão quando descobrisse que o presente antecipado de casamento, comprado com tanto carinho, estava reduzido a um quebra-cabeça sem solução.

Já o irmão da pedagoga, sacudindo os restos de chantilly da cabeça como se se tratasse de uma praga de gafanhotos, só tentava interpretar as pistas e descobrir o que é que ele tinha feito de errado daquela vez.

Tentar decifrar o enigma que era Giane seria para sempre o puzzle mais complexo que Fabinho iria encontrar, o que só o instigava a continuar tentando.

Eles já estavam juntos há alguns anos e, depois de muita insistência, o publicitário tinha finalmente convencido a fotógrafa a leva-lo ao altar e a fazer dele um homem sério. Com eles, as coisas sempre tinham sido pouco comuns.

Ela já não tinha mais desculpas. Eles se amavam, estavam os dois com as carreiras firmadas, tinham viajado meio mundo e já estavam a viver praticamente juntos na casa com campinho de futebol escolhida com todo o carinho por Fabinho.

Podia ser coisa de mulherzinha, como Giane lhe fez questão de esfregar na cara muitas vezes, mas ele exigia um casamento. Não um casamento de cinco minutos no cartório, como aquela louca queria, mas um casamento com tudo aquilo a que ele (e ele por ela) achavam ter direito.

Muita gente, muita comida, música pela noite dentro, animação, mas, principalmente, com Giane dentro de um vestido de noiva de verdade.

Foi quase uma luta entre David e Golias, ou melhor, entre Fabinho e o monstro de olhos verdes que tomava conta de Giane, quando ele revelava mais uma surpresa para o dia de casamento e ela tinha que se controlar para não lhe dizer na cara que só estava aceitando aquele circo por ele.

Em abono da verdade, a maloqueira estava tentando ceder no que conseguia. Não é isso o amor? Um dos problemas foi estar descobrindo que Fabinho tinha passado ao lado de uma grande carreira como wedding planner.

Fabinho também achava estar encarando de uma forma estoica o crescente nervosismo da noiva à medida que o dia de casamento se aproximava, mas a discussão daquele dia tinha transbordado em muito os limites do flirt indiferente do “tô nem aí pra você”, que era marca deles.

Fazendo contas rápidas, o publicitário descartou a hipótese de ser a TPM, a culpada pelo comportamento da maloqueira. Pelo menos, tivesse sido esse o caso, seria um problema fácil de resolver. O Campana já tinha uma check-list mental do que tinha a fazer para domar a fera e mantinha, num local secreto do armário, um stock de chocolate e um ou dois DVDs de filmes lamechas, de que Giane alegava não gostar, mas devorava nesses dias.

Controlando a falta de vontade de o fazer, Fabinho admitiu que a raiva de Giane também não era sofrimento pelo time do coração da tranqueira. O Corinthians ia muito bem no campeonato, para desgosto do São-paulino da casa.

Nesse quesito, o único consolo de Fabinho era a animação que tomava conta da noiva, quando ela decidia levar as celebrações das vitórias do Timão para o quarto. Não que ele alguma vez o confessasse em público, nem sob tortura, mas talvez não fosse mau de todo se o clube inimigo ganhasse o campeonato…

Não tendo a capacidade de um Sherlock Holmes moderno, Fabinho continuava na ignorância em relação ao motivo daquela redecoração que Giane aplicava freneticamente na casa. Ela nunca lhe tinha parecido grande adepta de arte moderna (ou seria antes de arte pós-apocalíptica?)

Ele tinha acabado de chegar em casa quando, no lugar de ser recebido com o beijo habitual e um puxão de orelhas por ter voltado a chegar tarde, Giane o recebeu com os olhos faiscando e uma cara que teria feito com que o exército de Gengis Khan fugisse correndo, para evitar aquela batalha perdida.

— O que é que está pegando, sua malo….

Um condenado sem direito a tribunal de recurso, só restou a Fabinho também sair correndo da frente da fotógrafa, antes que ela o atingisse com um dos objetos de decoração da sala, que se estatelavam à sua volta.

Nem a cozinha serviu de refúgio perante a tempestade.

Como um jogador de futebol americano de duzentos quilos, Giane se lançou sobre o noivo, o estapeando enquanto ele a tentava segurar. Fabinho a imprensou contra o balcão e usou as suas pernas para prender as dela.

Sem poder usar os membros inferiores, envolvidos pelos dele, fortes como dois troncos de madeira, Giane resolveu dar retaliar com os braços.

Ela apertou com força a cabeça de Fabinho, mas recuou perante o gemido grave que se escapou da boca daquele degenerado. Não era possível. Aquele safado estava adorando aquelas violências.

— Seu filho de uma……

Ela acabou se detendo no momento crucial. Nem Irene, nem Dona Margot mereciam ser insultadas daquela forma. Soltando-o do aperto, Giane o empurrou para bem longe dela, mas o desgraçado teimou em não lhe dar muito espaço:

— Fala comigo, maloqueira. O que é que foi dessa vez?

Apertando os olhos, ela saiu do cômodo para regressar segundos depois, segurando com nojo a sacola que ele habitualmente levava para a academia.

— Que é que foi, Giane? Se você não quer lavar a minha cueca, então não lava. - comentou ele, encolhendo os ombros, sem nada entender.

— Mas é preciso ser muito cara de pau…- retorquiu ela, enquanto procurava um garfo no meio dos destroços que jaziam no chão.

O talher serviu para a inusitada função de retirar uma minúscula calcinha de renda vermelha de dentro da sacola. A falta de elegância do estilo da lingerie era prova suficiente de não ser pertença da única ocupante feminina da casa. 

No lugar de protestar com um “Eu não faço ideia de como é que isso foi aí parar”, o que, no caso, até era verdade, Fabinho gargalhou com a situação, o que só contribuiu para enfurecer ainda mais a sua noiva.

— Cê tá com ciúme, maloqueira? – perguntou ele.

— Eu não tô com ciúme. Eu tô com raiva! - vociferou ela.

Atirando aquela aberração de poliéster para dentro o caixote do lixo, juntamente com o garfo inutilizado, Giane se voltou a aproximar de Fabinho, brandindo o dedo indicador como a uma lança prestes a ser atirada contra o Campana:

— Eu parto essa Paloma em duas, mas você vai ser o primeiro.

O riso de Fabinho só foi atiçado pela cena. Paloma era a mais recente contratação da Crash Media. Na realidade, ela apenas tinha conseguido o emprego porque Verônica tinha pena da moça e a tinha recomendado a Érico.

Uma incompetente em todos os sentidos, ninguém sabia muito bem como é que ela continuava trabalhando na área.

Todos tinham visto como, desde o primeiro dia, Paloma se tinha insinuado para cima do Campana, pensando usá-lo como step para avançar com a sua carreira, mesmo sendo Giane uma visita constante na agência. Todos, menos o alvo.

Divertido com o que ele considerava uma demonstração de amor por parte de Giane, Fabinho recorreu ao seu habitual tom de deboche, que só o colocava em maus lençóis:

— Cê acha mesmo que, tendo filet mignon em casa, eu ia sair para comer carne de segunda categoria na rua?

Ela ficou capaz de o esganar apenas com o dedo mindinho.

Ele aproveitou a desconcentração dela para a puxar para ele.

Se, para poder estar perto dela, Fabinho teria que arriscar ser mordido por uma jaguatirica, então ele o faria sem medo. Ele nunca tinha tido vontade de domesticar o indomesticável. Essa era uma das características de Giane que mais o atraíam.

— Olha pra mim. – pediu ele mansamente, envolvendo a cintura da fotógrafa com uma mão e com a outra guiando o queixo dela – Giane, essa não é você. A minha maloqueira confia em mim.

Ela fez tenção de se libertar do abraço, mas não tinha a força para o fazer:

— Todas aquelas noites chegando tarde…

— Estava trabalhando na agência. Você sabe que eu não quero ficar pensando em trabalho na nossa lua de mel.

A racionalidade poderia querer estar voltando a entrar na cabeça de Giane de Souza, mas a porta estava apenas entreaberta:

— E aquela sirigaita te rondando…

Sentindo a tensão diminuindo, o publicitário deixou cair a mão que levantava o queixo da noiva e encostou a testa na dela, quando ambos fecharam os olhos:

— Eu sei o que você está sentindo, tranqueira. Isso é medo de me perder. Eu sei disso porque eu sinto o mesmo. Todos os dias.

Fabinho tinha percorrido um caminho muito longo até chegar ao ponto de se sentir à vontade para verbalizar o que sentia daquele modo. Ela sabia disso.

Giane abriu os olhos, soltando aquele contato e, pegando no único pano de louça limpo, o utilizou para limpar, com movimentos suaves, os restos de comida de cima do ex-bad boy. Na linguagem da antiga florista, o gesto equivalia a uma bandeira branca:

— Você se acha, não é?

Ele respondeu com um dos seus sorrisos tortos e correu os dedos pelos cabelos macios dela:

— Eu não quero um bando de mulher. Eu nunca vou querer outra. Eu quero você. Só você. Eu juro pela nossa lua.

Mesmo estando amolecida a carapaça de ferro que Giane colocava quando tinha medo de se machucar, a fotógrafa ainda tinha algo remoendo em loop dentro da sua cabeça:

— Aquela porcaria na sua sacola….

Fabinho usou os braços como asas para a abrigar e a corintiana encostou a cabeça no peito dele.

— Giane, os outros só nos podem atingir se a gente deixar. Se alguma maluca fez isso com a gente, deixa pra lá.

Para a impulsiva Giane de Souza, nunca seria possível esquecer a ofensa e a ameaça:

— Essa bisca que não pense em pegar o que é meu….

— Nunca, minha maloqueira. – assegurou Fabinho rindo.

Passando as mãos pelo rosto, Giane se sentia muito mais leve:

— A gente passa a vida brigando…

— … e depois fazendo as pazes. Tem coisa melhor, sua doida? – completou ele sorrindo.

Puxando e limpando uma cadeira intata dos cacos, o publicitário se sentou e fez com que a noiva se sentasse nos seus joelhos:

— Me desculpa. Te deixei no limite com essa história do casamento. Se você quiser, a gente esquece isso e assina os papéis no cartório.

Dividida entre o arrependimento e a noção de que tinha dado um vexame sem necessidade (já para não falar no fato de ter destruído parte da casa), Giane entrelaçou os dedos com os do noivo:

— Não, cara. Se a festa é importante para você, é importante para mim também.

Fabinho sorriu com a resposta, agradecendo sob a forma de beijos estalados pela face e pelo pescoço da noiva. Constatando o desastre à sua volta, o publicitário permitiu-se gargalhar com o cenário:

— Olha, eu sabia que você ia virar uma velhinha reclamona e rabugenta. Nunca pensei foi que fosse tão cedo. A nossa cozinha parece um cenário de filme do Michael Bay.

— Para de rir, desgraçado. Eu quero ver é quem é que vai arrumar essa confusão. – contrapôs a corintiana.

Ele já tinha a resposta pronta. A mesma que ele utilizava para tudo na vida:

— Nós dois, maloqueira. Juntos.

A derretida maloqueira, catavento de emoções, já tinha mudado mais uma vez de ideia quanto aos planos para fechar aquela noite:  

— Depois a gente trata disso. Agora, quero fazer outra coisa.

Ele já tinha antecipado o movimento e a ajudou quando ela se levantou para se voltar a sentar no colo dele de frente.

Fabinho e Giane não seriam eles mesmos sem aquelas pequenas violências e doces afrontas. Esse sempre seria o combustível que alimentaria aquele amor como a uma chama eterna.

Eram aqueles beijos em que eles se devoravam até ao ponto de não precisarem de oxigénio para continuar, que iniciavam uma combustão, fogo que resultava em explosão. E no lugar de tudo terminar, tudo renascia de novo.

— Você é difícil pra caramba… - comentava Fabinho, enquanto a impaciente Giane arrancava os botões da sua camisa, na ânsia de a retirar.

— Cala a boca e me beija, fraldinha. - contrariou ela sorrindo.

O publicitário cumpriu a ordem, segurando as pernas da noiva em torno do seu tronco, quando se levantou da cadeira para a depositar com cuidado em cima da mesa, enquanto retiravam o resto da roupa.

Camões descreveu o amor como um fogo que ardia sem se ver. Talvez se o poeta tivesse visto o lume nada brando que naquele momento tomava conta de uma cozinha na cidade de São Paulo, tivesse mudado ligeiramente a metáfora.

Se o amor não fosse contrário a si mesmo, não seria amor.


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Notas finais do capítulo

Beijo para todos os leitores!P.S. - A parte final foi beber a um conhecido poema de Camões: Amor é um Fogo que Arde sem se Ver.