Eu via você em minha mente quando era jovem. Os lábios entre abertos, o cabelo loiro acastanhado cobrindo uma parte da testa, as mãos cerradas e frias, a gola da camisa alta e aquele mesmo olhar. Como da primeira vez.

Era como um demônio pra mim.

 Naquela época eu possuía os cabelos mais encaracolados, a camisa desabotoada. Com uma impressão que jurava nunca ter possuído.

Era fevereiro, e estava nevando. 

Me lembro perfeitamente das janelas embaçadas, meu pai atolando suas botas na neve do lado de fora.

Uma leve e doce melodia nos acompanhava para o jantar naquela tarde. Foi a época em que comecei a degustar de novas comparações. E vinho. Branco.

Havia fechado a minha mente para coisas sem importância e perda de tempo. Achava que relacionamentos e ficar embriagado nos bares da cidade era duas dessas coisas. Então comecei a comprar as bebidas e trazer para casa.

Principalmente, o vinho.

O que se tornava uma boa companhia quando decidia me sentar ao lado da lareira enquanto esperava por meu pai que estava por fora caçando. Então eu bebia a noite toda.

Acho que herdei isso dele.

A caça.

Foi também quando comecei os meus maus hábitos.

Tenho vários. Você foi um.

 Foi o pior deles.

Sempre gostei de cachorros. Mas não podíamos ter.

Então, se tenho muitos agora, talvez foi para compensar aqueles que não pude ter.

Uma pessoa me disse que esse era um dos meus bons hábitos

Parece ser. Eu não sei.

(...)

Quando fecho os olhos, lhe vejo e sinto as mãos frias sob o meu rosto. Acordo ouvindo sua voz dizendo-me coisas. Até nos meus piores pesadelos, há algo relacionado a você que não consigo distinguir.

Uma imagem borrada. Algo cresce por trás da sua cabeça. Algo grande, realmente muito grande.

Você é o demônio.

Você é a pior forma humana que um demônio poderia ter.

Mas acho que estamos quites agora.

(...)

Meus óculos estão manchados de sangue.

Olho para o chão e há sangue se esparramando e fazendo formas e desenhos que eu não consigo desvendar.

Encontro os estilhaços das taças ao chão. Minha visão está borrada. Minha cabeça está dando voltas...

Você está lá fora. E parece não ter reação nenhuma com aquele frio. Na verdade, parece apreciar.

Há uma sombra atrás de você. Está apoiado sob o seu ombro. Mas não parece pesar.

Era exatamente como você fazia.

Então, você sorri.

Eu hesito em me aproximar. Mas você faz questão.

E então eu tive certeza de que um monstro, por vezes, poderia não ser considerado um monstro.

Isso acontece, quando você começa a adora-lo.

(...)

Na minha última defesa você tentou me avisar o quanto tudo isso era bonito.

A escuridão.

E o quanto nós dois pertencíamos a ela.

(...)

Eu via você em minha mente quando era jovem, mas eu estou mais velho. E digo que ainda o vejo.