Era um bom dia para dormir, preparar algo quente para comer e talvez ler um pouco. Porém, Jaan trocou a leitura por outra coisa. Ao olhar para o lado avistou a capa do dvd, e não resistiu à tentação de assisti-lo novamente.

Amava aquele filme, a forma como retrataram os monstros nele. Tinha de admitir que os humanos chegaram bem perto de mostrar como ele realmente é, em sua pelagem felpuda e grandeza. A diferença é que, na realidade, nenhuma garotinha se apaixonaria por ele. Ninguém o admiraria.

Enquanto Monstros S.A. rodava em seu aparelho dvd antigo, Jaan cozinhava sua sopa. Tinha certeza que as pessoas pensariam o pior dele, achando que é um ser carnívoro e maldoso. Mas Jaan gostava mesmo era de cenouras bem cozidas.

Sua casa era pequena. Dentro havia apenas o necessário para sua sobrevivência, a fim de evitar ter de sair por qualquer motivo. Infelizmente, a comida acabava. A pequena horta de Jaan não era suficiente para mantê-lo. Se não fosse por Akki, teria que sair sempre que precisasse de comida, e então correria o risco de ser visto por aí. Isso não acontecia com Akki, que misturava-se aos humanos com muita facilidade, e nunca seria descoberto se não tirasse o chapéu e o sobretudo, deixando a mostra seus pequeninos chifres e as manchas nas costas.

Todas as quintas Akki vinha visitá-lo, trazendo consigo as compras da semana. Akki sentia muita pena de Jaan, condenado a viver preso ali. Enxergava nos olhos do amigo muita dor, vontade de ser aceito. Mas Akki sabia que as coisas não seriam legais se olhos humanos encarassem Jaan, com seu corpo azul em tons de verde e roxo e seus bons dois metros de altura, as mãos tão grandes e peludas.

Mesmo que alguma criança distraída pensasse ser apenas uma fantasia, os olhos de Jaan não mentem, mudando de cor a todo momento, de acordo com o local para onde olha. E os chifres, bem, estavam começando a aparecer acima da cabeça, mostrando que Jaan já não era mais criança.

Todos os dias Jaan esperava ansiosamente pela madrugada, quando podia sair e sentir o ar fresco. Não se atrevia a ir muito longe, o risco de ser pego era grande demais, mesmo às 3h30. Jaan adorava o luar, as pequenas estrelas que, naquela parte da cidade, mais próxima à floresta, podiam ser vistas. Era como se, por breves momentos, Jaan pudesse ser livre. Livre do esconderijo, livre da monstruosidade.  

Ele não apreciava a nomenclatura “monstro”. A palavra, que representa coisas ruins, não mostra o que ele de fato é. Claro, há aqueles que fazem jus ao título. Mas Jaan nunca havia feito nada para merecer ser chamado assim. Seu coração doía cada vez que ouvia a palavra, a maldita palavra que o excluía do resto do mundo e obrigava-lhe a se esconder, dia após dia.

E Jaan era bom demais para apenas andar por aí, sem se preocupar com a reação dos pobres seres humanos, enganados a pensar que todos os monstros são maus.

Por isso ele se escondia naquela casinha, em sua rotina pacata e solitária, esperando pelo dia em que o mundo seria capaz de vê-lo, não por sua aparência, mas por seu coração, que ainda bateria por muitos e muitos anos.