A menina, o trem e a ilha escrita por Dani Cavalcante


Capítulo 1
A menina, o trem e a ilha




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Marcela tinha um grande um chifre solitário que brotava no meio de sua testa e, com uma curva suave, apontava para o alto. Claro, exceto se Marcela estivesse deitada. Nesse caso seu chifre apontava para a cabeceira de sua cama, o que era bastante incômodo, pois com frequência a menina acordava no meio da noite com dores na cuca por bater involuntariamente com ele na madeira durante o sono, que era sempre agitado.

Além de ser um chifre no meio da testa, ele era negro como o café que sua mãe preparava pelas manhãs. Eu usei o café como metáfora porque Marcela gostava de pensar assim. Afinal, o café da manhã era seu momento favorito do dia porque era a única ocasião em que via o pai e a mãe juntos.

Muniz, o pai de Marcela e esposo da digníssima Cristila, era um funcionário do alto governo de Artoria, o que significa que a viagem desde a vila onde moravam até o grande palácio dos Ministros durava cerca de duas horas. A família fazia questão de acordar às cinco da manhã para passar aqueles momentos juntos, pois Muniz só chegava em casa às vinte horas, quando as crianças já estavam dormindo.

Claro que era difícil para todos, principalmente para Marcela. Ao menos era o que ela pensava, já que seu desempenho na escola ia de mal a pior devido a esses horários. Na metade do dia já começava a cochilar durante as aulas, por isso pedira à mãe que lhe permitisse tomar café puro e forte, mesmo que ainda não tivesse idade suficiente pra isso. A mãe concordara, e assim Marcela passava a olhar para sua nova e estranha bebida como uma espécie de companheira – ela tinha um acessório tão estranho e tão negro quanto. Só não entendia porque, ao contrário do café, as pessoas não gostavam. Talvez fosse para carregar também o sabor amargo, sem direito ao açúcar.

O problema, como você deve supor, é que Marcela era a única criança a possuir um chifre na Pequena Vila – sim, o nome é este, pois é tão pequena que mesmo você, cidadão letrado das metrópoles de Artoria, não deve ter ouvido falar. Todas as demais crianças, naturalmente, contavam com seu par de chifres, cada um em um lado da cabeça. Além do mais, onde já se viu um chifre preto? Mesmo as pessoas de pele negra possuíam chifres brancos, pois chifres fazem parte do esqueleto – que é branco. Tem que ser branco. O branco dos chifres é a cor que mostra que todos são iguais.

Menos Marcela. Marcela era diferente. Teria Marcela esqueleto preto?

Claro que os pais da menina tinham consciência da hostilidade que ela poderia sofrer na escola. As crianças da Pequena Vila e mesmo as de Prodense não eram famosas por sua gentileza e compreensão. Ainda assim, com o conselho da Grande União dos Anciãos Sábios Dos Cinco Continentes, decidiram que seria problemático isolar a criança das demais por causa de sua peculiaridade.

Deixem-na descobrir por si mesma o que o mundo a espera, mas nunca tirem os olhos, nunca a deixem enfrentar sozinha os desafios.

Eu sei o que alguns de vocês devem estar pensando. A Grande União dos Anciãos Sábios Dos Cinco Continentes é importante demais para lidar sobre questões tão pequenas como uma criança de uma vila que não tem qualquer importância. Bem, eles não teriam “sábios” no meio do nome de seu grupo se não agissem diferente do senso comum.

Mas deixemos de lado as questões políticas e o mundo dos adultos, pois a própria Grande União dos Anciãos Sábios Dos Cinco Continentes sabe que é entre as crianças que acontecem algumas das coisas mais importantes do mundo, que influenciarão a vida de todos amanhã.

Naquela manhã ensolarada, Marcela estava decidida a não dormir durante a aula, ou seja, não passar vergonha. Se alguém fosse tirar sarro, seria por fatores fora de seu controle, dos quais não teria nenhuma culpa. Não que tinha muito controle sobre o sono, mas faria o possível para ter.

Guardou na mochila o lanche que a mãe preparara e, depois de uma caminhada de quinze minutos por um caminho de terra que atravessa um matagal, parou ao lado de um poste branco, de frente para um trilho, onde diariamente aguardava o trem que segue em direção à Prodense, a cidade vizinha. A locomotiva a deixaria em frente à escola depois de vinte e cinco minutos de viagem.

O trilho cortava o caminho de terra, que seguia até a margem do rio Goia, onde os aldeões costumavam pescar.

Apesar do sol torrar a cabeça, Marcela sentia-se satisfeita com seu atraso naquele dia, pois todas as crianças embarcavam no trem anterior. Até que sua tranquilidade foi abruptamente interrompida por uma conhecida voz debochada:

— Cuidado, monochifre! Chega mais pra trás ou o trem vai arrancar essa coisa preta da sua cabeça.

Marcela não precisava olhar para saber que era a voz de Alecrim.

Apesar de ter nome de tempero, o menino loiro e forte não admitia jamais que rissem dele, assim como não reagia bem quando não riam de suas piadas sobre outras crianças. Você não devia rir dele também. Como filho dos administradores da Pequena Vila ele futuramente terá a sorte de ser enviado às academias jurídicas de Prodense, onde aprenderá a criar as leis do país.

— Se bem que talvez seja um lucro. Melhor chifre nenhum do que carregar esse carvão na testa.

Não é que a menina não tivesse respostas na ponta da língua. Ela tinha a língua afiada e seria capaz de metralhar dezenas, mas sabia que se o fizesse corria risco de ser repreendida por algum adulto. Afinal, quem era ela para ofender Alecrim?

O menino pegou uma vareta no chão e começou a cutucar o chifre de Marcela.

— Eu só queria saber do que isso é feito. Mas tenho nojo de encostar.

Aquilo já era demais! NINGUÉM encostava no chifre de uma menina, mesmo que fosse o de Marcela. Até mesmo as crianças percebem que tocar nos chifres era coisa que adultos faziam quando tinham uma grande intimidade, é uma noção intrínseca – bem, você sabe disso, às vezes parece até que estou escrevendo para pessoas que não possuem chifres! – Como eu dizia, aquilo era o cúmulo, e nem mesmo Alecrim poderia ter tanta audácia. Ainda mais daquela forma. Além de tocar seu chifre, o fez manifestando uma repulsa, é ao mesmo tempo uma violação e uma deturpação do significado que um chifre, o lembrete das deusas de que todos possuem dignidade, representa.

Marcela não pensou mais. Simplesmente virou-se para o menino, que recuou assustado, e gritou. Ela gritou, gritou, e – pelas deusas – gritou. E quanto mais gritava, mais intenso era aquele som, que ia se tornando cada vez mais agudo, mais agudo... progressivamente mudava de tom, adquiria ritmos quase musicais, e Alecrim podia jurar que o som ganhara cores!

Cada vez mais alto, o grito de Marcela atingiu um nível que Alecrim não podia mais ouvir. Ele pensou no apito para cães, mas diferente dos apitos, ele podia sentir e ver aquele som.

Então, ela parou tão repentinamente quanto começara. Aparentemente sem entender o que fizera e porque fizera, Marcela cobriu a boca com as mãos, assustada.

— Pelas deusas, você é esquisita... – começou Alecrim, mas não teve oportunidade de concluir seu pensamento, porque era de fato apenas pensamento. Ele movia os lábios, sua mente enviava os comandos para as cordas vocais, mas não saía som algum.

O menino começou a entrar em desespero, apalpava o rosto, e se afastou de Marcela, tentando verbalizar “aberração! Demônio! ”

Antes de Alecrim cair por tropeçar em um montinho de terra atrás dele, uma forte ventania soprou, atrapalhando a respiração das duas crianças. Levantou tanta terra que tiveram que fechar os olhos para protege-los, e quando abriram, tomaram um susto! O trem estava parado na frente deles, apitando e fumegando.

Não parecia o mesmo trem que pegavam todos os dias para chegar à Prodense. Na verdade, definitivamente não era! Este era ainda mais robusto, suas múltiplas cores metálicas brilhavam com o reflexo da intensa luz do sol, havia muitas janelas – todas abertas, sem vidros – e Marcela notou a ausência de portas. Era uma autêntica máquina a vapor que caminhava sobre trilhos, mas essa era a única semelhança entre aquela maravilha e o monótono trem enferrujado, enegrecido pela fuligem e barulhento, que tomavam diariamente.

Na verdade, Marcela estava ansiosa para subir naquele colosso. Além disso, estava sobre os trilhos que só poderiam leva-los a Prodense.

— Modernizaram os trens, finalmente – disse ela, mais para si mesma, pois já nem considerava a presença de Alecrim.

— Mas... de onde ele veio? – Alecrim, novamente, apenas conseguiu pensar – Chegou de repente, sem apitar nem nada...

A menina, ignorando-o, subiu a escadinha que permitia a entrada no vagão vazio. Sentia-se encantada pelo novo veículo.

Alecrim não queria ficar ali sozinho. De fato, estava assustado. Correu atrás de Marcela, admirando-a pela coragem, mas ao mesmo tempo, impelido a convencê-la a mudar de ideia. Estava com medo, aquele trem não era algo comum. Era coisa dos diabinhos conhecidos por Bê’s, devoradores de crianças. Certamente seriam levados para o caldeirão.

Claro que se Alecrim pudesse dizer isso a Marcela, ela responderia que os Bê’s jamais fariam mal algum aos humanos; aliás, ela ficaria ainda mais empolgada se essas criaturinhas misteriosas fossem os autores de tal maravilha.

Mas ele não conseguiu pronunciar seus temores, e quando ambos embargaram começaram a sacolejar com o movimento da locomotiva, que já deslizava sobre os trilhos. A menina sentou-se, sorridente, sem saber porque se sentia tão feliz e porque o rapaz se sentia tão miserável.

— Por que está com essa cara de medroso?

Alecrim só conseguiu gesticular.

— O gato comeu sua língua? O que foi? Está com medo de quê? Esse trem é uma maravilha, é moderno e parece ser bem mais rápido. Estamos atrasados para a aula, você sabe.

Alecrim gesticulava apavorado. Marcela o fitava intrigada. Ele apontou para a janela veementemente.

— Mas o que... Ah.

Pela janela, Marcela percebeu que estavam voando.

Mal deu tempo para eles apreciarem a terrível visão que era sobrevoar Artoria a uma velocidade assustadora. Prondense já ficara para trás e Marcela, que tentava olhar pela janela sem se aproximar muito – afinal elas eram abertas e não possuíam vidro ou qualquer proteção, mas estranhamente o vento não invadia o vagão. Ela não fazia ideia de qual cidade estava logo abaixo. Mais ao horizonte, podia ver uma ampla planície, plana de leste a oeste, onde aqui e ali rios costuravam a paisagem. Àquela altitude, a luz do sol parecia dar colocação diferente e relaxante ao céu, e Marcela sentiu-se nostálgica.

— Bilhete por favor.

Marcela se assustou e virou para enxergar uma criaturinha que parecia saída dos desenhos de sábado de manhã na TV. Embora tivesse o dobro do tamanho de Marcela, parecia infantil, com sua cabeça enorme semelhante à de um alce. Seu corpo era todo coberto de pelo azul muito brilhoso e dava vontade de abraçar. A voz, macia e cordial, também tinha uma certa inflexibilidade, e soava como um adolescente tentando parecer confiante para um adulto quando precisa dar respostas sobre onde estivera depois das aulas.

— O bilhete, jovem senhor.

Alecrim, se dando conta de que a criatura falava com ele e, se recuperando do espanto de encarar aquela cabeça de alce, os largos chifres e a pata peluda estendida para ele, entregou o bilhete do trem que costumava tomar todas as manhãs.

A criatura-alce pegou o bilhete, cheirou, lambeu, mastigou e cuspiu, enojada.

— Isso não é um bilhete! Você precisa de um bilhete válido para viajar nessa locomotiva, ou teremos de arremessa-lo porta abaixo.

Marcela, pela primeira vez percebendo o perigo em que se encontravam e prevendo que seria a próxima a ser ameaçada de ser atirada a milhares de pés de altura, interveio.

— Podemos pagar na volta?

— Na volta?

— Sim, acontece que perdemos os bilhetes porque o trem sacudiu durante o voo, e eles voaram pela janela.

A criatura-alce inclinou a cabeça para o lado, olhando para a menina.

— Vocês precisam resolver esse problema da janela, é um perigo.

— Problema?

— Sim! Precisam colocar vidros. Sorte que foram os bilhetes que caíram, e não a gente – disse Marcela incisiva, avançando quase em postura de acusação.

A criatura azulada levantou as mãos como quem pede trégua.

— A queixa da madame será devidamente levada à diretoria, mas preciso de um bilhete.

— Não temos, e você não pode nos jogar daqui.

— Tem razão, eu não posso. Oh, céus, o que será de mim? – o ser-alce começou a lamentar.

— Como assim? Nós que estamos encrencados... – Marcela quis acariciar os pelos da criatura quase sentindo necessidade de consolar.

— Não, não. Você nunca. Você nunca. Você sabe disso... oh, você não sabe...

O ser azulado se recompôs em uma sua postura de quem está sob o controle da situação e detentor das explicações.

— Era pra apenas você ter entrado no trem, não seu amigo. Por isso ele precisa de bilhete, e você não.

— Eu? – replicou Marcela – Por que eu? E por que não ele?

— A verdadeira pergunta é por que ele entrou? Vocês crianças são sempre tão inconvenientes! Só me arrumam problemas.

— O que acontece se não houver bilhete? Sem mentiras dessa vez – Marcela fez posição de ameaça novamente, que fez a criatura recuar assustada.

Se Alecrim pudesse falar, teria dito como tudo aquilo era ridículo, que ele sim deveria ser temido, e que seu pai iria saber de tudo o que estava acontecendo nos novos trens do itinerário de Prondense.

— Se ele não tiver bilhetes, eu sou castigado. – declarou, por fim. – O bilhete não é para ele, é para mim. Nós recolhemos os que precisam ser recolhidos, e pra cada um de vocês entregamos um bilhete para os controladores.

— Bem, o pai dele é importante. Deve haver algo que ele possa fazer.

— A única pessoa importante em todo o mundo é você, Marcela, e espero que apenas por trazê-la eu seja perdoado.

Com a nova declaração, Marcela não soube o que dizer, principalmente por ele saber seu nome.

— Mas você deverá entender tudo quando encontrar-se com a Grande Mãe.

Então, a porta da frente do vagão se abriu e uma criatura ainda mais fantástica apareceu. Ele era tão grande que precisou se abaixar para passar pelo topo da porta. Seu pelo era marrom e o corpo truculento fez Marcela se lembrar de um lenhador. Um par de dentes caninos enormes desciam da boca até a altura do peito. O focinho preto e os bigodinhos espetados para os lados eram a única característica que tornavam aquela criatura menos amedrontadora. Ele vestia um macacão e usava um boné, ambos de jeans.

— É um prazer recebe-la, madame. – disse, e curvou o enorme corpãozil diante de Marcela.

— P-prazer...

— Espero que a viagem esteja do seu agrado. Faremos de tudo para que se sinta confortável. Espero que nossa desajeitada e antiquada máquina não seja motivo de muito incômodo.

— Não... está tudo ótimo... – respondia Marcela, ainda sem saber como agir e, ainda mais, porque estava sendo tratada com tanto respeito. E ainda, porque aqueles seres bizarros pareciam conhece-la.

— Quem é o jovem acompanhante? – Perguntou a criatura gigantesca apontando para o pequeno Alecrim.

— Ele é... bem, é um colega de classe.

— É um prazer receber os amigos da Madame.

Alecrim quis gritar desaforos. Além da estupidez do que estava vendo, estava cansado de ser considerado apenas um acompanhante de uma garota que deveria estar limpando seus sapatos. Gesticulou, mas desistiu, e sentou-se emburrado.

— Quem é você? – perguntou enfim Marcela.

— Sou o piloto. Edmond é meu nome. Prazer, madame – respondeu curvando-se ligeiramente.

— Prazer – Marcela fez uma mensura desajeitada. – Mas se você é o piloto... quem está no controle?

— Deixei a máquina no modo Piloto Mágico. Em breve estaremos em nosso destino. Mas seu amigo está um tanto... quieto. – voltou-se para Alecrim com os olhos desconfiados.

— É... parece que perdeu a voz.

— Sim – disse Edmond, aproximando-se do menino, que recuava assustado – Foi exatamente isso o que aconteceu. Ele está assim desde que você nos chamou, certo?

— Eu? Eu chamei vocês?

— Mas é claro – disse a criatura-alce – Nós esperamos por tanto tempo pelo seu chamado! E quando você chamou, nós viemos.

— E o chamado fez isso a ele. Pois ele esconde algo de você, Marcela – decretou Edmond, aproximando a enorme cara, quase encostando o focinho preto no nariz de Alecrim.

— Veja, já estamos chegando – apontou o ser-alce para a janela.

As crianças olharam e se maravilharam com a visão. Com aquele estranho diálogo com criaturas ainda mais estranhas, não haviam se dado conta de que sobrevoavam o mar, e à direita do trem voador havia uma ilha. A luz do sol refletia sobre as águas e as nuvens, pouco abaixo deles, entrecortavam a vista.

— Vou assumir os controles para o pouso – disse o piloto, que desapareceu pela porta do vagão muito mais rápido do que seu tamanho parecia sugerir que fosse capaz.

A locomotiva fez uma curva no ar e dirigiu-se rumo à ilha, que se aproximava cada vez mais. Quando o trem começou a se inclinar para baixo e diminuir a velocidade, as crianças foram jogadas para a frente pela inércia. Seguraram-se nos bancos com medo de cair pelas janelas, mas a criatura-alce permanecia inabalável. De repente tudo estava parado.

— Bem-vindos à Ilha Original.

Se Alecrim pudesse, diria que aquele nome era ridículo e não havia nenhuma “Ilha Original” nos mapas de Artoria. Ele já estava cansado daquilo tudo e queria voltar para casa, mas não era muito bom em gesticular.

— Bem, se conseguirmos passar pelos controladores, eu poderei leva-la até a Grande Mãe.

Marcela esperava colocar os pés em uma grande e moderna estação de trem, cheia de gente e controladores carrancudos se movimentando para todos os lados e cobrando bilhetes. Porém, estavam mais ou menos a cem metros de uma praia completamente deserta. Não havia o menor traço de civilização, e Marcela começou a duvidar de sua própria cabeça.

— Venham –sussurrou o peludo, correndo sorrateiramente até atingir a vegetação, seguido pelas crianças.

De repente, um enorme tentáculo emergiu da areia bem na frente deles. Não era exatamente um tentáculo, mas uma espécie de verme gigante, que tinha um olho em sua extremidade, e logo abaixo, uma boca com dentes afiados. Logo em seguida, outros vermes gigantes semelhantes emergiram, um após o outro, dezenas deles. O primeiro, o maior e aparentemente o líder, fitava a criatura alce, ameaçador.

— Bong, você não está tentando fugir novamente, está? Os bilhetes desses aí, onde estão?

— Houve um acidente, mas irei recompensá-lo...

— Acidente? Recompensar? Bong, eu não sou idiota.

— Nos deixe passar – uma voz grave acompanhou o corpo de Edmond que surgiu atrás das crianças – Veja, olhe para essa pequena, olhe bem o que temos aqui!

O verme controlador mediu Marcela com seu olho único e fez silêncio.

— Vocês podem passar. Mas depois acertaremos nossas contas, Bong.

Marcela quis defender Bong, afinal, ele parecia tão simpático. Mas, diferente de quando se sentiu valente com a criatura-alce no trem, sentia-se intimidada e ameaçada pelo verme gigante. Mal seria capaz de falar, quase como Alecrim.

Quando os quatro passaram pelos controladores-vermes, Marcela sentiu-se mais aliviada, como se um peso saísse de suas costas, e lembrou-se da conversa anterior e começou a metralhar perguntas enquanto caminhavam por entre árvores.

— O que você quis dizer quando disse que eu chamei vocês? Como eu fiz isso? E porque disse que Alecrim está assim por esconder algo? Vocês precisam me explicar tudo...

— Nós faríamos isso – respondeu Edmond – Se não houvesse alguém que pudesse responder muito melhor a essas questões, princesa.

— Eu não sou princesa! E quem é que pode me responder, então?

Edmond apenas parou de andar, assim como Bong, e apontou.

— Ela. A Grande Mãe. Rainha da Ilha Original. A primeira e última unicórnio dos chifres negros.

Marcela e Alecrim olharam para a direção onde ele apontava. Havia uma clareira e no meio dela, a uns cinquenta cem metros de distância, as chamas de uma fogueira se erguiam. Ao lado, a silhueta de uma pessoa sentada.

Marcela olhou para o piloto do trem, que apenas indicou para que as crianças avançassem.

— É por isso que estão aqui. Você também, garoto.

Eles andaram. Lentamente, a princípio, mas à medida que avançavam em direção ao centro da clareira, sentiam uma urgência de chegarem até a figura ali sentada.

Quando enfim chegaram, puderam distinguir os traços de uma senhora pequena e muito idosa, sentada em cima de um tronco de árvore e aquecendo-se junto ao fogo. Tinha em suas mãos uma cuia e no rosto um sorriso. Seu único chifre negro era pequeno, e emergia do meio de sua testa.

— Finalmente – disse sorrindo ainda mais, as rugas acentuando-se na face redonda. – Sentem-se.

Marcela e Alecrim sentaram-se, admirando aquela pequena mulher por alguma razão.

— Alecrim, você deseja voltar a falar. Aposto meu chá que sim. Você não tomou o trem por engano. Não, isso foi depois de sua necessidade de recuperar a fala. Marcela, você deseja dormir sem chorar todas as noites. Aposto meu chá que sim. Foi por isso que nos chamou.

Alecrim sentiu-se mais envergonhado que Marcela, pois compreendia que aquela anciã conhecia os segredos de ambos, e ele tinha mesmo motivos para se envergonhar. De repente, pensou algo como “então esse sentimento é o que chamam de remorso?”

— Eu não entendo – disse, por fim, Marcela – Eu nunca vi ninguém com um chifre igual ao meu. E como você sabe disso tudo?

— Um dia você saberá muitas coisas também, minha criança. Afinal, somos iguais. Mas primeiro, meu jovem, se você quiser voltar a falar, precisa dizer a coisa mais importante. Aquilo que você esteve escondendo por muito tempo. Algo que você sempre soube, lá no fundo, o silêncio que guardou tanto que a mágica do chamado de Marcela transformou em mudez.

Alecrim se sentiu atingido por um raio. Ficou todo vermelho e se encolheu como Marcela nunca vira alguém se encolhendo. A menina apiedou-se dele. Olhando assim, ele não parecia tão mau...

O menino emitiu alguns sons que pareciam engasgos. Gaguejou, tossiu, bateu no peito e, finalmente, declarou e voz mais alta do que gostaria:

— EU SINTO INVEJA DA MARCELA!

A velhinha aplaudiu, rindo. Marcela, por sua vez, corou.

— Eu sinto inveja porque eu sei que ela faz parte de uma tribo extinta de magos poderosos e fiz de tudo para humilhar, eu não queria que ela se tornasse uma maga. Me perdoe!

Alecrim chorava, daqueles choros com gemidos e soluços.

— Finalmente! Já era hora. Sua família tem posse de informações privilegiadas que não devem mais ser escondidas, Alecrim, pelo bem de Artoria.

— Eu não estou entendendo... – disse Marcela.

— Minha querida – a velhinha se levantou e, com a ajuda de uma bengala feita de um galho resistente, se aproximou da menina – você é parte de uma linhagem quase extinta. Eu sou a última maga, o que significa que quando eu partir, você será a última. Eu fui banida nesta ilha e condenada a viver aqui, há séculos, por crimes que cometi, mas você... você pode concluir o que comecei.

Marcela, no entanto, só podia pensar em uma coisa e começou a chorar.

— Quer dizer que eu... eu sou... adotada?

— Bem... pense na raça dos magos como simbiontes. Duas almas. Biologicamente, você nasceu dos seus pais. Mas espiritualmente... você é minha filha. Eu gerei você. Um dia você entenderá.

— Por isso eu tenho essa coisa...? – A menina perguntou apontando para o chifre.

— Seu lindo chifre será símbolo de orgulho, um dia. Você conheceu Bong? Edmond? Os controladores?

Marcela assentiu, ainda confusa.

— Existem centenas deles nesta ilha. Nós vivemos aqui porque as leis de Artoria não admitem criaturas que não possuem os chifres brancos como os de Alecrim. Chifres assim são sagrados, o símbolo e lembrete das deusas de que todos são idênticos e possuem a mesma honra... bem, seria, caso nós não existíssemos. Nossa existência coloca tudo isso abaixo.

— E como maga, você é uma líder aqui.

— Eu sou a Grande Mãe dos renegados, e esta é a Ilha Original, onde todas as criaturas, inclusive as de chifres como os de Alecrim, começaram sua história antes de descobrirem Artoria. E agora é tempo de Artoria se lembrar de sua origem, esquecida há muito tempo, e apenas conhecida por poucas famílias. Famílias privilegiadas como as de Alecrim, que infelizmente, também são cegas.

— Então essa é minha missão? É por isso que sou assim? – perguntou Marcela.

— Não – respondeu a Grande Mãe.

— Na verdade... é minha tarefa – disse Alecrim, ainda enxugando as lágrimas. – Foi por isso que tive um sonho estranho que me fez perder o primeiro trem, e embarcar com Marcela, não foi? Você me escolheu, porque minha família é de legisladores, e eu serei o futuro legislador de Artoria.

— Sim – respondeu a Grande Mãe. – Você também já deve ter entendido o que vai acontecer.

— Para entender o que devo fazer – disse Alecrim com uma maturidade que fez Marcela se lembrar de seu pai – devo conviver com vocês... eu vou ficar aqui, não é?

— Não – respondeu a Grande Mãe.

— E eu? Por que estou aqui? – perguntou Marcela.

— Você nos chamou quando tudo estava pronto para acontecer. Não me pergunte, é assim com a magia, e você vai se acostumar com isso. Quer um exemplo? Você vai salvar Bong de seu castigo por causa dos bilhetes assim que você voltar para o trem.

— Voltar? Mas... eu não quero voltar – Marcela se surpreendeu com sua própria afirmação. Se Alecrim ficaria naquele lugar incrível, porque ela, um ser mágico, deveria voltar?

— Nós precisamos de chifres-brancos aqui, e eles precisam de chifres-negros lá. Não vou mentir, para ambos será difícil. Mas não impossível. Não há garantias de sucesso, mas sim de possibilidades.

A Grande Mãe deu um beijo no rosto de Marcela, e a menina a abraçou.

— Agora vá. Mas ainda não fale sobre nós. Não diga onde encontrar Alecrim. Você saberá a hora certa de fazer os movimentos certos. E um dia você levará as mais diversas criaturas de volta ao convívio com os chifes-brancos, o que também será conturbado. É aí que entrará Alecrim. Até lá, aprenda magia, e viva da melhor maneira possível. Adeus, minha filha.

A Grande Mãe tomou Alecrim pela mão e ambos se afastaram, caminhando para a outra extremidade da clareira. Marcela sentiu-se órfã, mas ao chegar em casa na Pequena Vila, esse sentimento desapareceria – quase completamente. Sempre se lembraria de que a mãe de uma outra parte de sua essência estava bem longe.

Ao voltar por onde veio, Marcela encontrou-se novamente com Bong e Edmond. Enxugou lágrimas e recebeu o abraço que desejou dar nos dois quando os conheceu. Voltaram juntos, por onde foram novamente confrontados pelos controladores.

Marcela então se lembrou que Bong tentou comer o bilhete de Alecrim. Era óbvio, os bilhetes eram coisas comestíveis. Tirou da mochila o lance que a mãe preparara para a escola e deu ao líder dos controladores. Aparentemente ele gostou bastante e prometeu até um bônus para Bong.

Ao lembrar das palavras da Grande Mãe de que ela salvaria Bong do castigo, pensou no que poderia fazer pelo mundo de Artoria. Infelizmente, só depois que desembarcou do colorido trem de volta na Pequena Vila, e após se despedir dos simpáticos novos amigos com mais lágrimas nos olhos, pensou que os Bê’s e toda a mitologia de deusas maravilhosas que sua família venerava talvez fossem também habitantes da Ilha Original.


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