O Preço da Perdição escrita por Stephany Damacena


Capítulo 7
Histórias de Aristeu


Notas iniciais do capítulo

Em toda viajem temos histórias para contar,
e essa é a de Aristeu...



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“Sua risada ecoou por toda a casa. Tinha um misto de satisfação e ira.

— Eu sabia que ele iria até Aristeu. Ah Caio, acaba de cavar sua própria cova. - Um de seus capangas cochichou em seu ouvido.

— O que você fez? — Porque Aristeu? — mamãe socou o peito de Kael, entre soluços e lágrimas contidas.

— Não fiz nada, ainda, ao seu querido Aristeu. — Seus dedos compridos se apertaram no punho de minha mãe. — Graças a Caio, ele está bem.  — Seu rosto se aproximou do dela, com um sorriso sarcástico nos lábios. — Talvez só alguns ossos estejam quebrados. — Seu sorriso se intensificou, enquanto suas mãos se apertavam mais sobre o punho dela e, pude ouvir seus ossos se quebrando.

Reprimi o choro que começava como um nó na garganta. Temendo por irritar mais Kael, e assim ele machucaria mais mamãe.

— Não me subestime, irmãzinha. — Olhou para mim por cima dos ombros, por um breve segundo, e voltou sua atenção a sua face contorcida de dor. — Eu terei o que quero, nem que tenha que matar todos que se opuserem a mim. Entendeu? — Ele gritou, fazendo todo o corpo de Thamy tremer.

— Mas… mas você prometeu não machucar Aristeu.

— Tão tola. Se esqueceu que não deve confiar em mim? — Ele a lançou de encontro à parede oposta. Suas costas se chocaram com força e ela caiu no chão, se encolhendo sobre o próprio corpo.”

 

— Aconteceu de novo. — A voz de Filipe foi tomando altura e me dando consciência novamente da realidade.

— É a primeira vez que vejo isso acontecer. — Aristeu tinha um tom de curiosidade na voz.

— Kael sabe que estamos aqui. — Disparei sem rodeios. Piscando várias vezes para dissipar os resquícios dos pensamentos de Moska, que insistiam em permanecer em minha mente.

— Um deles deve ter fugido sem percebermos. — Filipe parecia preocupado ao passar uma mão sobre os cabelos loiros.

— Temos que sair daqui. — Aristeu sugeriu.

Ao meio dia, daquele mesmo dia já seguíamos novamente para a casa de Devdas. Seguimos com o velho carro de Aristeu, por um caminho que ele mesmo dizia conhecer e que seria quase impossível de sermos rastreados, porém era mais longo e mais difícil. Ao cair da noite, chegamos ao pé da montanha, e pela expressão de Filipe e Aristeu, percebi que o pior de nossa jornada havia chegado.

Senti minhas asas mexerem abaixo da pele, tomadas pelo instinto de se abrirem e me içarem da chão. Como ainda não sabia controlá-las, foi exatamente o que aconteceu.

Meus pés saíram do chão e minhas asas batiam com força. Antes que conseguisse ganhar alguma altitude, Filipe agarrou um de meus pés.

— Ordene para que elas parem. — Seu tom não parecia nada satisfeito.

Concentrei meus pensamentos nisso, senti elas se encolherem de súbito e despenquei sobre o chão rochoso.

— Ah. - Filipe soltou um suspiro. — Isso será muito engraçado. — Levou a mão a boca para reprimir o riso.

— Imbecil. — Levantei irritado e bati a poeira da roupa.

Ainda rindo Filipe passou por mim e se dirigiu ao pé da montanha. Olhou-me por cima dos ombros e com um balançar de cabeça entendi que era para eu o seguir. Aristeu manteve-se calado por todo o trajeto. Ao cair da noite montamos acampamento sobre as rochas, acendemos uma lareira com poucos gravetos que eu e Filipe encontramos, comemos algumas comidas enlatadas e dormimos sem conversar muito. Deitei-me e fitando o céu estrelado me perdi em pensamentos.

— Melhor dormir garoto, se quer aguentar mais um dia de caminhada amanhã. — brincou Aristeu, que parecia estar perdido em pensamentos como eu.

Apenas assenti com a cabeça e virando para o lado, adormeci. Acordei com um sol preguiçoso iluminando o céu ainda estrelado.

— Minha bela adormecida resolver acordar. — Filipe riu, colocando uma carne desconhecida sobre o fogo. Receoso com a resposta que ele poderia me dar, resolvi não perguntar que carne era aquela e apenas matar minha fome.

— Você gosta de testar minha paciência logo cedo, não é? — Levantei e fui até onde ele estava assando o bicho.

Comemos entre gozações de Filipe, meu mau humor matinal e as poucas e sábias palavras de Aristeu. Logo mais nos preparamos para prosseguir. No terceiro dia que estávamos subindo a montanha, enquanto passávamos por um caminho de pedras lisas pelo gelo que começava a derreter com o sol da manhã. Aristeu parou de repente, barrando eu e Filipe onde estávamos, e com um grito nos ordenou que corrêssemos e nos escondêssemos em qualquer lugar que parecesse seguro e assim o fizemos. Em meio a corrida encontrei uma caverna minúscula mas que bem apertado cabia eu e Filipe, quando tentei olhar para trás a procura de Aristeu, já não o vi mais. Tudo estava branco com a terra e o gelo que deslizava montanha abaixo. Antes de entrar na caverna, vi algo negro como a noite passar voando do lado de fora da caverna. Estava muito preocupado com Aristeu, mas Filipe parecia confiante que ele estava bem. Quando o barulho ensurdecedor parou de ecoar do lado de fora, Aristeu surgiu na pequena fenda e nos instruiu que podíamos sair.

— Como você sobreviveu? — Foi a única coisa que consegui pensar e externizar.

— Achei um abrigo. — Ele sorriu nervoso e eu sabia que ele não estava me contando toda a verdade, mas resolvi não perturbá-lo com isso.

O restante de nossa viajem foi tranquila. Tirando as brincadeiras de Filipe que por vezes me fazia cair de cara no chão ao passar a asa por meu pé, o que o fazia rir por um longo tempo e me fazia demorar uma eternidade para tirar toda a sujeira que se agarrará a mim. No quinto dia ao anoitecer, chegamos ao topo da montanha. Eu não aguentava mais o peso das minhas próprias pernas e desmoronei no chão assim que soube que aquele era o pico. Filipe procurou um lugar onde pedras nos protegessem do frio, e acendeu uma lareira com gravetos que achou pelo caminho.

Eu quase tive que me arrastar até lá, mas depois de algum esforço levantei-me e fui até eles. Comemos rápido e nos preparamos para dormir. Aristeu me instruiu que descansasse bem, pois amanhã seria um dia longo. tentei questioná-lo mas nem para isso tinha forças, então apenas assenti e fui dormir.

Assim que levantei e me espreguicei, Filipe já tomava sua arma para mais um treinamento com espadas, mas Aristeu o interrompeu.

Jogou nosso armamento no chão, revirou-os provocando muitos barulhos de metais se chocando, até que deduzi que havia encontrado o que procurava, pois todo seu rosto se iluminou e seus lábios se contorceram em um sorriso de canto, que de início me deixaram arrepiado de medo.

— Yahta. — Seus lábios sussurraram para a lâmina prateada em sua mão. Percorreu com dedos enrugados o cabo da espada, e suspirou profundamente. A espada tremeu e brilhou em sua mão, tomando uma forma diferente. Sua lâmina fina e completamente lisa, tornou-se cheia de ondas nas laterais, além de aumentar de comprimento e tornar sua ponta tão fina que qualquer leve tocar, seria fatal. Algo como labaredas de fogo percorriam seu metal, deixando-a com um brilho vermelho. — Também estava com saudades.

— O que aconteceu! — Meus olhos se arregalaram tanto que achei que fossem sair das órbitas.

— Ah Caio, um homem nunca poderá fugir pra sempre de seu passado. Agora pegue, a luta será comigo. — Com o pé direito ele jogou minha espada para mim e eu a apanhei com dificuldades, ganhando um arranhão profundo no peito.

— Mas é um inútil. — Filipe disse, aparentemente estava se divertindo. —  Antes de lutar, aprenda a pegar sua arma. — Riu alegremente e se acomodou em uma rocha.

— Vamos ver como te treinaram. — Aristeu lançou um olhar ameaçador para Filipe.

— Da melhor forma possível, mestre. — Filipe piscou para Aristeu e entendi que ele o havia treinado.

Voltou seu olhar para mim e brandiu a espada em minha direção. Tomei a posição que haviam me ensinado, cravando bem os pés no chão e também apontei minha espada em sua direção.

— Ataque. — Ele esbravejou.

Dei um passo à frente e inclinando a espada lateralmente de encontro ao meu corpo, lancei-a sobre Aristeu, que desviou sem maiores problemas, tentei mais dois ataques, mas não obtive sucesso. No terceiro, estudei seu movimento corporal e consegui pega-lo de surpresa, provocando um rasgo em sua camisa. De imediato me senti mal por atacar aquele que havia me recebido tão bem e, de certa forma era idoso e isso ia contra meus valores.

— Sem dilemas morais aqui Caio. Isso é uma guerra, não existem inocentes ou culpados, velhos ou jovens, apenas aliados e inimigos. — Sua espada estava a centímetros de meu nariz.

— Entendeu rapaz! — Sua voz ecoava como trovão no topo da montanha, fazendo eco para todos os lados.

— Mas você é um aliado. — Deixei a espada pender ao meu lado. Lutar com Filipe ou Tarcísio era uma coisa, eu sabia que mesmo que eu os machucasse, eles logo estariam bem novamente. Agora Aristeu, eu não podia.

— Aqui não. Eu o estou treinando para que não morra no verdadeiro campo de batalha. Minha aparência o incomoda? Vou ajudar com isso.

Seu cabelo branco deu lugar a fios sedosos e negros como a noite. Sua pele enrugada, transformou-se em lisa e jovem, sua coluna levemente inclinada, endireitou-se. Seus músculos ficaram fortes e se comprimiam na roupa que agora era pequena. Quando voltei a dar atenção para seu rosto, me assustei ao perceber que ele havia tomado a forma de Kael, meu estômago se contorceu de repulsa.

— Agora lute como um homem de verdade. — Estreitou mais o espaço de sua lâmina contra meu rosto.

Me vi sem saídas, eu sabia que era um treinamento e que não era Kael a minha frente e sim Aristeu. Era apenas um treinamento e eu deveria me sair bem para poder vencer a guerra que viria.

Dei um passo para trás e empunhei a espada, totalmente determinado a mostrar que eu era capaz. Toquei as lâminas suavemente. Aristeu sorriu com o sorriso sarcástico de Kael e brandiu a espada contra a minha. O vento se intensificou, jogando meu cabelo para trás, com violência.

Cada investida de Aristeu era potente e me requeria muito esforço para defender e quase nenhum contra ataque. O suor corria por meu rosto, mesmo com as fortes rajadas de vento. E com meu fracasso o sorriso de Kael só aumentava.

— É o máximo que pode fazer Caio. — Suas palavras me contaram mais que sua lâmina.

Meu braços já fatigados fizeram um último esforço para suportar o peso da espada. Respirei profundamente várias vezes, foquei em Kael e me concentrei. De tanto ter recebido seus golpes eu já sabia seus padrões. Deu um passo a frente com a perna direita e golpeou no alto de minha cabeça, girei baixo e esticando a perna direita bati em sua perna de apoio e o fiz cair. Sem pensar muito pulei pra cima dele e coloquei minha espada em seu pescoço.

— Muito bem garoto. — Sua face foi mudando de forma, juntamente com seu corpo, ao assumir o de um homem moreno que dava o dobro do meu tamanho.

O homem se desvencilhou de mim com facilidade ao me jogar de lado como um saco de batatas. Levantei com dificuldade e ergui a espada a minha frente, sentindo um medo enorme crescer em meu peito. O homem jogou sua espada para o lado e levantou os punhos a sua frente. Com um giro do corpo chutou minha espada para longe em direção a Filipe.

— Agora a briga vai ficar boa. — Filipe se endireitou sobre a pedra que usava como apoio, e estalou os dedos da mão em sinal de sua animação.

O homem enorme correu a passos largos em minha direção. Golpeou várias vezes sem êxito pois eu consegui desviar, pelo fato de ser menor e portanto mais rápido. Mas ele não desistiu, chutou minha perna em um leve momento de distração, fazendo-me cambalear, seguido de um soco no queixo, outro no peito, o que me deixou completamente sem ar, tudo a minha volta já perdia a cor, e assumia tons de cinza e preto. Senti novamente seu punho de encontro ao meu rosto, seguido de sangue fresco que brotava da onde eu imagina ser uma fratura de nariz. Cai de costas no chão, sentindo o tudo girar à minha volta. Fechei os olhos e senti todo o meu corpo doer, ouvi a risada contida de Filipe e me senti novamente um fracassado.

Mãos pequenas e delicadas tocaram as minhas. Abri os olhos temeroso. E encontrei olhos castanhos femininos com cílios grossos a me fitarem. Sentei, limpei o sangue que vertia de meu nariz e mesmo sem querer observei seu corpo curvilíneo, que era coberto por uma armadura de guerra, que terminava como uma saia no meio da coxa. Demorei um pouco para me convencer que era Aristeu. Antes que pudesse estar totalmente em pé, a bela mulher de cabelos castanhos me atacou com a espada. Consegui abaixar a cabeça segundos antes de ser golpeado, e vi pequenos tufos de cabelo caírem ao meu lado. Corri de encontro a minha espada e deslizando sobre o solo a apanhei e já a coloquei a frente de meu rosto. A espada dela se chocou contra a minha, como agora estava deitado, apoiei os pés sobre sua barriga e a empurrei para trás, ouvi seu corpo cair com um baque surdo. Mas quando me virei ela não estava mais lá.

— Você aprende razoavelmente rápido garoto. — Aristeu agora era o Aristeu que eu conhecia.

Como já tinha provado que poderia assumir muitas formas, eu o questionei sobre sua verdadeira forma e ele a mostrou pra mim.

Seu corpo voltou a se contorcer e se transformar. Até que tomou forma de um homem de aparentemente trinta anos, cabelos vermelho como fogo, sobrancelhas grossas e vermelhas como o cabelo. Seu rosto era bonito e com linhas fortes e masculinas. Mas sua pele não parecia humana, se assemelhavam a pele de dragão, grossa e em camadas como escamas. Seu sorriso deixava à mostra dentes finos e afiados nas pontas. Unhas afiadas e grossas cresciam de seus dedos finos, como garras. A neve ao seu lado derretia com a temperatura que emanava dele, pois seu corpo todo parecia arder em.chamas. A atmosfera se tornou pesada e sombria, além de levemente sufocante, como se estivéssemos em uma sauna. As plantas ao nosso redor morreram e secaram rapidamente, as nuvens se tornaram negras e relâmpagos surgiram no céu. Tudo parecia sem cor e morto, como se a vida não pudesse habitar o mesmo espaço que Aristeu.

Trajava roupas pretas que não se consumiam ao fogo. Em seu peito uma armadura com entalhes de um dragão vermelho se destaca. Uma armadura densa e negra se materializou sobre seu corpo, cobrindo-o por completo, eu não entendia nada de armaduras, mas poderia jurar que deveria ser do mais resistente metal.

— Sou um anjo da morte, ou dragão se preferir. — Ele gargalhou. Deu uma piscadela para Filipe. — Alguém tem que aquecer o inferno, não é mesmo!

— Que seja um dragão. — Filipe sorria. — Que seja o melhor deles.

— Um dragão? Aquecer o inverno… Você? — meu cérebro se perdia em pensamentos e imagens de Aristeu em toda a sua fragilidade e idade, misturada com a imagem dele que tinha a minha frente, jovem e imponente. E agora dragão. Nada parecia fazer sentido, e eu só conseguia dizer e pensar coisas desconexas.

— Ah. —  Ele suspirou. — Uma longa história Caio.

Felipe se apressou em se juntar a nós.

— Eu particularmente adoro essa história. — Ele parecia uma criança feliz ao seu pai sentar-se com ele para lhe contar um conto de fadas.

— Você já a ouviu milhares de vezes. — Aristeu sorria alegre.

— Mas essa é daquelas histórias que nunca perdem a graça. — Seus olhos brilhavam de excitação.

— Primeiro vamos preparar algo para comer e um lugar para dormir e aí eu conto a minha história.

Após andarmos uns bons metros a frente, achamos uma abertura em uma rocha que comportava muito bem a nós três e nos apressamos até ela. Fizemos uma fogueira com a ajuda do fogo de Aristeu, e comemos carne de coelho que Aristeu havia trazido de sua casa.

— Ah como é bom poder usar essa forma. — Andar meio arcado como um velho já estava me dando dores reais nas costas. - Direcionou o olhar para mim e sorriu.

Curioso, mas ao mesmo tempo receoso, olhei a nossa volta e percebi que dessa vez nada havia morrido. Cocei a nuca, completamente confuso.

— Eu posso controlar isso também. — Aristeu disse como se entendesse o que eu estava pensando. — Não gostou do coelho.

Percebi então que não havia comido nem metade do coelho que tinha a minha frente.

— Gostei sim, está delicioso. — Voltei a mordiscar a carne a minha frente, novamente me perdendo em pensamentos.

— Acho que está muito curioso, não é Caio?

— Estou sim. Muito curioso. — Sorri nervoso para ele e comi um generoso pedaço do coelho.

Aristeu inspirou profundamente e fechou os olhos, como se voltasse ao passado.

“ Eu era um anjo jovem e um pouco mais curioso do que os outros. Fazia as minhas obrigações como anjo da guarda e pouca vezes era encarregado de trazer ao céu a alma de pessoas boas. Gostava particularmente dessa atividade. Essas pessoas não costumavam reclamar, mas sempre sorriam ao me ver, e me perguntavam se era chegada a hora. Essas alma era leve como sua consciência. As trazia até os portões celestiais e as entregava ao responsável. Mas um dia, fui encarregado de buscar uma alma muito má. Foi horrível. Era necessário quatro de nós pois sua alma era extremamente pesada. O levamos para os portões do inferno. E foi aí que me perdi.

Ao chegar lá, me deparei com a criatura mais linda criada por Deus, pois eu me recusava a aceitar que Deus não a tinha feito em toda a sua plenitude e beleza. Lilith era o nome dela. A filha de um dos maiores demônios depois de Lúcifer. Sua pele tinha um tom acinzentado, seu rosto era bem definido e forte. O olhar que lançou para mim, com aqueles olhos grandes de pupilas vermelhas, emanava nojo e repulsa, mas eu só queria toca-la. Seu cabelo liso e negro, se agitava junto com as labaredas que ardiam no chão do inferno. Pequenos chifres se projetavam de sua testa e um rabo longo, fino e com uma ponta pontuda como uma flecha, balançava a suas costas.

Ela bateu o tridente que segurava na mão esquerda no chão e os portões se abriram.

— Bem vindo as suas melhores férias, querido. —  Ela tomou com violência aquela alma. Passou a língua pontuda na lateral de seu rosto e riu de forma maléfica.

Lançou a alma para dentro e então os portões se fecharam. Demônios vieram busca-lo e tudo virou um misto de gritos de horror e dor, e risadas satisfeitas dos demônios. Eu fiquei parado fitando-a o que para mim pareceram segundos, mas quando ela voltou sua atenção para mim, percebi que todos os outros anjos já tinham ido embora e só eu ainda permanecia ali.

— Os anjos costumam sair daqui o mais rápido que podem depois de concluírem seu trabalho, mas você não, porque?  — Ela inclinou a cabeça para o lado e me fitou curiosa.

— Só estou curioso. — Voltei a mim, e percebi que realmente estava curioso.

Me aproximei dos portões e fitei lá dentro. Labaredas vermelhas consumiam tudo, subiam pelas paredes e deixavam um tom de cinza e vermelho. Corpos chamuscados se debatiam dentro das chamas que pareciam contidas dentro de uma espécie de piscina enorme e demônios se divertiam com o desespero deles. Um deles chutou no peito uma alma que tentava escalar as bordas para fugir do fogo. Me sentia enjoado e enraivecido com tamanha maldade. Toquei os portões e minhas mão queimaram.

— Idiota, anjos não podem tocar esses portões. — Ela tomou minhas mãos nas suas, e nesse momento um choque elétrico percorreu meu corpo e nossos olhos se encontraram.

Ela também deve ter sentido pois soltou minhas mãos de imediato e se afastou. Sem saber o que fazer saí de lá e fui para o céu. Voei por horas tentando organizar minha cabeça, me apaixonar por um demônio era loucura.”

Aristeu fez uma pausa, suspirou e voltou sua atenção para mim.

— Já entediado garoto?

— Não, estou ainda mais curioso, isso sim. — Sentia minhas mãos suarem.

— Eu disse que era boa. — Filipe abraçava as pernas. — E ainda não chegou na melhor parte.

Todos rimos e Aristeu prosseguiu.

“Descobri um tempo depois que eu tinha o dom de mudar de forma e todo o meu tempo livre eu usava para aperfeiçoá-lo. Foi um erro meu achar que Deus nunca saberia minha real intenção, mas descobri depois de um tempo que estava errado.

Mas antes disso, consegui assumir a forma perfeita de um dragão, treinei arduamente depois de uma segunda conversa com Lilith, onde ela me revelou que seu sonho era conhecer um dragão de verdade. Passei tempo sem voltar a vê-la, primeiro porque minha consciência insistia em dizer que aquilo era um erro, mas meu coração insistia por mais tempo com ela e meus pensamentos só estavam nela.

Assim que me senti seguro naquela forma, sai em uma das minhas horas vagas e fui vê-la. Ao pousar próximo aos portões, ela me olhou com olhar de espanto. Me apressei em mostrar que ela não precisava temer, lhe fiz uma reverência e me aproximei devagar. Cheguei perto o bastante para que ela pudesse me tocar, inclinei a cabeça para ela e novamente aquela eletricidade dela percorria todo meu corpo, e eu sabia que só podia haver uma conexão entre nós.

Os dias se passaram e nós só nos aproximávamos mais. Um tempo depois ela também usava seu tempo livre para ficar comigo. Montava em minhas costas e voávamos céu a fora, conversávamos sobre tudo e eu podia jurar que ela era feliz naqueles momentos. Às vezes parávamos em uma colina e víamos o pôr do sol no horizonte.

— Você só é dragão, ou pode ser humano também?

Um dia ela me pegou de surpresa com essa pergunta, fitei aqueles olhos vermelhos e eu podia ser o que ela quisesse, só para ter aquele olhar. Para ela eu era Zayn. Tomei a forma que vê agora e seus olhos brilharam para mim. Nunca mais vou esquecer esse dia. Ela tocou meu rosto, maravilhada com minha pele e com as variações de vermelho que o sol produzia em mim. Percorreu toda a minha face e se demorou ao delinear meus lábios com o polegar. Sem pensar direito eu a tomei nos braços e a beijei, ela resistiu no início, mas se entregou para mim, de corpo e alma e lá nós nos amamos completamente.”

Seus bochechas coraram e seus olhos brilhavam radiantes.

“Deus me chamou para vê-lo e de certa forma eu já sabia do que se tratava. Seu olhar carinhoso me encontrou e suas palavras doces me perdoaram e me consolaram. ‘ Eu os criei para o amor’ ele disse, ‘mas, não dessa forma, entende?’. Me senti completamente culpado, não conseguia nem responde-lo.

— Entendo seus sentimentos por ela, mas ela terá um filho seu, e seu pai quer que eu lhe puna por isso. — Ele inspirou. — Tenho duas opções para você. Primeira. — Ele levantou um dedo no ar. — Deixo você ir para o inferno, mas sofrerá como uma alma que merece estar lá, e provavelmente ele mate a criança, mesmo que Lilith não queira fazer isso. Segundo. — Ele levantou outro dedo. — Recebo ela aqui no céu, com outro nome e ela cria essa criança. — Ele fez uma pausa e meu coração se alegrou. — Mas, você irá para o inferno ser o dragão da morte e ceifará as vidas que lhe forem confiadas. — Ele tocou meu ombro de leve e sorriu. — Sei que gosta desse trabalho. Poderei cuidar delas até que a bebê atinja idade, depois disso não sei o que poderei fazer por elas.

— Aceito, o segundo. — Sabia que era a coisa certa a fazer.

— Tem certeza? — Seu olhar bondoso me indagou mais do que seu tom de voz.

— Sim. — Eu teria que fazê-lo, mesmo que soubesse o que vinha com essa escolha.

— Mas não poderá mais vê-las. —  Essas foram suas últimas palavras para mim, e com olhos marejados eu apenas concordei com a cabeça.

Eu sofri muito, mas aceitei minha punição. Quando vi já havia me acostumado com meu trabalho e com os demônios, não que deixei de ser bom, mas a maldade invade a gente quando se convive muito com ela. Sabia às vezes notícias delas, e no dia do nascimento dela, tomei a forma de um pássaro pequeno e fui testemunhar, ela me viu ao longe e de certa forma sabia que era eu.

Depois de algum tempo, ouvi o pai de Lilith falando com Irá dela, para um jovem que eu achava ser uns 5 anos mais velho que minha filha. E conclui que ela havia tido um filho antes de nos conhecermos.

Tempos depois soube que ele havia sumido com Lilith e a filha, e foram morar fora dos territórios que Deus podia palpitar livremente. Chegava informações deles com frequência, minha criança havia atingido idade e seu irmão tentava envenená-la com a maldade que habitava nele, além de discriminá-la e maltrata-la, ela e a mãe. Irritado, pedi permissão a Deus pois só a ele que eu me submetia, e fui salva-las.

Consegui mante-las em segurança por um tempo. Mas Gaius me encontrou e matou-a.' 

Aristeu fez uma pausa e respirou profundamente, antes de ter forças para continuar.

' Ele matou minha amada Lilith, na minha frente, sem dó e nem piedade. Consegui, por Deus, fugir com minha filha e me esconder.”

Secou as lágrimas que corriam por seu rosto. Nos últimos momentos da história eu sabia que ele falava de Thamy e entendi que ele faria tudo para salva-la, mais uma vez.


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Notas finais do capítulo

O silêncio pairou por nós,
agora eu entendia o porque dele cuidar tanto dela,
e em partes eu me senti culpado por não ter sido capaz de protege-la até o fim!



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