Quando Nós Não Estávamos Bem escrita por scarecrow


Capítulo 1
E nós ainda não estamos.




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        QUANDO NÓS NÃO ESTÁVAMOS BEM

        Dentre todos os sentimentos que pensou em ter naquele momento, nunca imaginara que seu peito se encheria de tanto orgulho.  A sensação de trabalho bem feito estufou suas veias e pressionou suas artérias, aliviando a tensão dos seus músculos à medida que as palmas aumentavam exponencialmente. Segurou o sorriso linear no rosto enquanto recebia o prêmio de Contribuição a Paz Mundial das mãos do Diretor.

            Não disse nenhuma palavra de agradecimento – não era preciso. Ninguém veio lhe parabenizar pessoalmente e, assim que deixou o grande palco de acontecimentos gerais, percebeu o peso imenso daquele troféu vazio em suas mãos.

            E então, depois de tamanho e inexplicável orgulho, sentiu o alívio fazer extremo sentido. Ninguém sabia ao certo o que acontecia com os cientistas que não demonstravam resultados dentro do tempo estimado. Nenhum dos pesquisadores, ajudantes, estudantes ou coordenadores; ninguém dentro da Corporação tinha uma hipótese clara. Existiam, claro, os rumores, e o estranho fato de que muitos deles iam para sigilosas reuniões e nunca mais voltavam.

            Ainda assim, mesmo entre aqueles que conseguiam mostrar algum resultado, poucos chegavam a receber o prêmio que carregava nas mãos. Ele mesmo nunca conhecera um caso, desde que entrara na empresa nacional, de algum pesquisador que o tivesse. Pensar nisso inflava seu ego ao auge da sua existência, até se lembrar do quão mal isso faria para grande parte da população de seu continente.

            Cansado de segurar o peso em suas mãos, Brian decidiu aproveitar o dia de folga do único jeito que conhecia, e foi direto para casa.

            Considerando o peso de seu tão renomado emprego, ele não tinha a melhor casa e muito menos morava no melhor bairro da região. Mas, ainda assim, havia algo de importante naquele pequeno espaço. Não só por ter a sensação gostosa de poder chamar um lugar de seu, ou por ter onde dormir depois de horas seguidas no laboratório. Muito menos por poder guardar toda a sua bagunça do jeito que achava mais confortável, apesar de concordar consigo mesmo que isso era uma enorme vantagem em ter uma casa só para si.

            Havia algo bom sobre aquele lugar, e tudo isso era por causa de um único quarto.

            Um quarto que tomara o cuidado de esconder o máximo possível das poucas visitas que recebia e dos vários olhares curiosos que passavam na rua. Um quarto cheio de jeitos e manias, vontades pregadas na parede. Um quarto com uma única grande cama, de lençóis sempre velhos e desarrumados, sem aquecedor para os dias mais frios do ano, com muitos livros antigos contrabandeados escondidos debaixo do colchão.

            Um quarto em que ele vivia.

            Julio, tão cheio de esperanças e afazeres, vivia naquele quarto.

            Há alguns anos, quando Julio bateu em sua porta pedindo por uma cama e um cobertor quente, Brian não conseguiu acreditar no que via. Depois de dez anos sem dar nenhuma mísera notícia, o amigo de infância voltara cheio de pedidos e sorrisos irresistíveis.

            Desde então, nenhuma novidade surgira em suas vidas, todos os ocorridos que aconteceram posteriormente eram terrivelmente previsíveis – Julio, com seus discursos supostamente revolucionários e magicamente egoístas de sempre, transformou-se em um dos líderes mais infalíveis da Rebelião. Brian, apesar dos remorsos e da insegurança, deixou o amigo ficar uns dias escondido na sua casa.

            É claro que, com alguns beijos e muitas risadas, ele o deixou ficar mais um tempo. Um tempo que, com o passar dos dias, transformou-se em inúmeros meses. E, antes mesmo que pudesse perceber, tê-lo ali todos os dias, alguns mais do que os outros, tornou-se uma rotina soberbamente agradável. Por isso – e não mais do que isso – Brian não conseguia pensar em outra maneira de aproveitar o dia de folga se não ao lado do amigo.

            Julio, com seus cigarros fortes e cabelos presos, estava esperando-o na cozinha, bebendo qualquer coisa que achara debaixo da pia, ouvindo mais uma de suas desconhecidas músicas preferidas.

            Logo ao chegar a sua casa, Brian largou o inesperado prêmio na mesa de jantar, por descobrir que não havia sequer um espaço para guardá-lo. Beijou os lábios do seu melhor amigo, deleitando-se com o sabor do uísque puro.

            “E o que você fez para merecer tal honraria do seu tão querido Governo?” Julio perguntou, cheio de ironias, terminando em poucas goladas o resto da bebida.

            “Você sabe que não posso te contar” respondeu o óbvio por não saber o que dizer.

            De todas as relações complicadas que ouvira falar no passar de sua vida, desde as reclamações bem fundamentadas de sua mãe já velha até os comentários maldosos dos amigos de trabalho, Brian não esperava tantas implicações no único relacionamento sincero que conseguira até então. Julio, com sua eterna participação nas famosas tentativas da Revolução, aceitaria qualquer coisa do amigo de infância, exceto sua alienação consciente aos desejos do estado.

            Todavia, ele não tinha culpa; ou, no mínimo, acreditava não ter. Brian fora criado para ser o que era, e tinha medo demais para tentar mudar. Sua mãe o matriculou nas mais importantes escolas, de modo que seu sucesso dentro da Corporação viria de um jeito ou de outro, mais cedo ou mais tarde. Tirara as melhores notas, recebera os melhores elogios, integrou-se ao Governo a ponto de não saber o que fazer caso abandonasse o emprego.

            Agora, cheio de prêmios e responsabilidades, Brian sequer tinha a opção de deixar o cargo de pesquisador – guardava muitos segredos em sua tão eficiente memória e, caso surgisse a mínima hipótese de abandonar a Corporação, com certeza fariam algo para impedi-lo.

            Percebeu, então, que não poderia finalizar aquela conversa sem sua covardia voltar como assunto principal. Não poderia, mesmo, contar a Julio pelo que levava tanto crédito, uma vez que sua pequena descoberta com uma quantia significativa de dinheiro poderia acabar instantaneamente com o próximo ato de rebelião.

            Sem saber o que fazer, voltou a beijá-lo. Seus lábios secos apertaram de modo desajeitado os lábios de Julio, que rapidamente apagou o cigarro que insistia em fumar. Brian conhecia cada pequeno detalhe daquele beijo, porém sempre sentia que ainda estava só experimentando. Sentiu as mãos do amigo agarrarem sua cintura, e tropeçaram sem jeito até o quarto escondido.

            Por mais que tivessem todo trabalho para manter aquele lado da casa escondido, sempre era muito fácil achar o caminho até a porta pequena atrás da grande estante de livros.

            Soltou os cabelos escuros de Julio; sempre gostou do jeito em que os fios extremamente lisos caíam sem jeito nos seus olhos castanhos. Arrancaram as blusas, desfizeram-se dos cintos, das meias, dos toques desnecessários. E então, entre os beijos mornos e molhados, olharam-se.

            Havia algo de bom naqueles olhos castanhos.

            Algo que ele nunca gostaria de perder, nem mesmo por um dia. Parou os toques por um instante, tentando, inultimente, compreender-se.

            “Aconteceu alguma coisa?” Julio perguntou, curioso, ao ver que o cientista parara no meio dos beijos. Agarrou-o com mais força, trazendo-o para mais perto do peito. Era estranhamente raro ver o amigo tão fora de orbita; nem mesmo quando o Brian passava horas na sala, debruçado na mesa pequena no meio das suas imensas apostilas, grossos livros e folhas soltas, ele se desligava tanto.

            “Não vá amanhã” pediu, baixo, com medo de ouvir sua própria voz. Deitou o rosto no ombro forte do amante, e seus longos e escuros fios fizeram cócegas em seu nariz. Abraçou Julio com ternura antes de aumentar o tom: “por favor, não vá amanhã.”

            E Julio, tão cheio de respostas e ironias na ponta da língua, não soube o que dizer.

            “Eu tenho que ir amanhã” afirmou com a voz firme. Deixou seus dedos brincarem nos cabelos curtos de Brian, esperando que ele falasse mais alguma coisa, mais qualquer coisa.

            No entanto, nada veio.

            E Brian sentiu medo, pela primeira vez em muito tempo. Lembrava-se dos medos de infância, bobos, que deixaram de atormentar suas noites de sono antes dos catorze anos. Não vinha a sua mente qualquer vez que teve tanto medo quanto naquele momento, por imaginar viver um mundo sem aqueles olhos castanhos. O pavor veio em lágrimas que nunca chegaram a cair. Deixou de sentir a ponta dos dedos por alguns segundos, e a falta de oxigenação apropriada aumentou seu batimento cardíaco.

            “O que foi que aconteceu, Brian?” Julio voltou a perguntar, apreensivo. Perguntou a si mesmo o que teria acontecido nesses últimos vinte minutos, em que o dono da casa chegara mais calado que o de costume, tentando descobrir o que raios tanto o incomodava. Lembrou-se, então, do troféu bem ornamentado em cima da mesa de jantar. Empurrou-o para longe do abraço. “O que foi que você fez?”

            Não conseguiu olhar Julio nos olhos; sentia frio.

            “Você fez algo para conseguir aquele prêmio, não foi mesmo? O que é?”

            “Mesmo que eu te contasse, de nada adiantaria” Brian respondeu, seco. Isso era um fato que sequer ele, que pensou na estratégia de grande parte do equipamento novo de guerra, conseguiria contrariar. “Eu não sei desligá-la.”

            Voltaram a fazer silêncio por um tempo. Alguma música sem graça ainda tocava na cozinha, enquanto os dois, no quarto, pensavam nas poucas possibilidades de diálogo que ainda os restava.

            “Você pode não ir uma vez, não? Por que todas as vezes você tem que estar lá, no meio da bagunça?” Interrogou, já meio puto, enquanto virava-se para deitar contrário ao amigo, com os pés encostando nos travesseiros.

            “Você sempre foi medroso demais para tentar vir comigo, mesmo naquela época.” Julio disse, rindo de leve sem querer.

            “Claro” retrucou, sem conseguir evitar o sorriso no rosto. Mesmo na infância, antes dos seus dezesseis anos, Julio sempre teve a incrível capacidade de criar todos os tipos de confusões, protegendo Brian de todos os supostos perigos – mesmo que, em muitos casos, ambos estivessem extremamente errados. “Nunca fui muito bom de briga.”

            “Ah, mas você sempre soube escolher os melhores sabores de doce. Eu levaria mais um soco ou dois em troca disso” Relembrou. Caíram na risada, os dois, e voltaram a lembrar de cada uma das coisas que fizeram com o passar do tempo.

            Lembraram desde a primeira brincadeira, até a vez em que ficaram ambos de castigo durante uma semana inteira, em que suas mães haviam proibido de conversarem por algum motivo, que não sabiam mais qual era. Lembraram dos doces, das roupas, dos cortes de cabelo embaraçosos na adolescência. Do primeiro beijo, da primeira noite juntos, e toda a timidez que existia naquela época. Das colas que Brian passava na escola antes do último dia de Julio, que decidira largar as aulas para viver nas ruas, e nunca mais dar notícias.

            Riram, juntos, do dia em que Julio apareceu na porta da sua casa, sem uma muda de roupa satisfatória. Das brigas sem motivo que tiveram desde então, e das boas noites de pouco sono. Lembraram de como fora difícil construir, pouco a pouco, aquele quarto sem janelas, e esconder de cada pessoa que aparecesse por ali. Das vezes em que quase viram Julio entrando pela porta da frente, ou fazendo barulho demais na porta de trás.

            Antes mesmo que percebessem, as memórias se tornaram recentes demais, e perderam a graça.

            Porque, se pensassem só um pouco, uma hora aquilo tudo iria acabar, por bem ou por mal. Brian tinha uma vida inteira só sua, assim como Julio. E, caso não sofressem por descobrirem que viviam juntos, durante todo esse tempo, outro motivo sempre iria aparecer pela frente.

            “Só não vá amanhã, Julio. Por favor. O mundo vai sobreviver mais um dia se você não estiver lá.” Pediu mais uma vez ao sentir o aperto no peito.

            “Oh, Brian, você sabe que isso nada tem a ver com as pessoas, ou com o continente. É uma luta minha.” Julio respondeu, descontente com sua própria teimosia.

            “É um egoísmo seu.”

            “Se você puder me contar no mínimo...”

            “Não, eu não posso!” Brian retrucou alto, perdendo a paciência. Sentou-se, desajeitado, na frente do amigo. “Se eu contar, qualquer mínimo detalhe de qualquer informação sigilosa, eles vão saber que fui eu. Eles vão descobrir você, Julio.” Voltou a falar, atropelando as palavras fáceis. Sentiu as lágrimas densas pesarem seus olhos, e sua garganta secar.

            Respirou fundo mais uma vez, confiante de que não começaria a chorar agora, e disse o que tanto queria: “Eles vão te tirar de mim.”

            Julio, tão seguro firme e seguro de si, sentiu seus motivos fraquejarem o mínimo, pela primeira vez. Riu sem graça.  “Ora, deixa disso. Não há nada que tenha saído dessa sua cabeça que eu não possa destruir amanhã.”

            Brian ouviu, calado, e voltou a deitar, contrário ao amigo.

            “Eu vou voltar, bobo. Pode ter certeza disso.” Afirmou mais uma vez, sem ter coragem de levantar e encarar o pesquisador nos olhos. Apertou sem força a cintura magra do outro antes de voltar a falar: “Ei, acredite em mim, okay?”

            “Não duvido que você volte. Mas não consigo acreditar que você vai, mesmo assim.” Contou, deixando todas as mágoas e medos presos dentro de si saírem por alguns minutos. Sem perceber, as lágrimas, que tanto se esforçara para não deixá-las cair, correram pelas suas bochechas avermelhadas.

            “Você está completamente apaixonado por mim, não é mesmo?” Julio perguntou, sarcástico, fazendo cócegas leves no pé de Brian, ouvindo as risadas fracas mesclarem com o aumento do choro.

            “E você não, estúpido?” Brian perguntou, com o resto de fôlego que tinha.

            “Eu estou bem.” Brincou, apesar de sincero. Logo Julio, tão bonito e tão cheio de certezas, tinha tanto medo de contar como se sentia de verdade. “E você, Brian? Você está bem?”

            Brian parou para pensar antes de responder. Pensou no seu troféu em cima da mesa de jantar, na falta de espaço em sua casa, no seu emprego, na sua relação quase amorosa inesperadamente complicada.

            Enxugou as lágrimas e encolheu as pernas.

            “Não.”  


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